Comentários
sobre as alterações da 5ª edição de A Gênese – Cap. IV
O
Papel da Ciência na Gênese
Marco
Milani
(Texto
publicado no boletim Dirigente Espírita nº 173 - p.5)
Trata-se
de capítulo fundamental para se conhecer os limites e equívocos do
conhecimento religioso baseado em sistemas absolutos de crença para
a compreensão da realidade. Allan Kardec contextualiza, ainda, o uso
das religiões como instrumentos de poder e dominação apoiados na
fé cega e declarações normativas inquestionáveis por trazerem a
roupagem de palavra divina.
Contrapondo-se
às asfixiantes imposições religiosas, o conhecimento produzido
pelo método científico é caracterizado como aquele que pode romper
as superstições e interpretações dogmáticas sem evidências
para, efetivamente, promover a revelação das Leis da Natureza, em
marcha segura e progressiva. Certamente, a Ciência, tanto no século
XIX quanto no atual, não se propõe a apresentar verdades absolutas,
mas a edificar o conhecimento baseado em fatos e na razão. A própria
Ciência evolui e, necessariamente, para continuar a revelar a
Natureza de maneira adequada, deve-se considerar o elemento
espiritual.
As
religiões que não acompanharem os avanços científicos por estarem
cristalizadas em crenças que colidem com os fatos destinam-se à
autodestruição no tempo, pois somente o que estiver fundamentado na
verdade se sustentará. Assim, como afirma Kardec, se as religiões
se recusarem a caminhar com a Ciência, a Ciência prosseguirá
sozinha.
Importante
destacar que Kardec também não dogmatiza a Ciência,
transformando-a em um oráculo infalível, mas compreendendo-a como
um conjunto de conhecimentos em evolução produzidos por métodos
racionais conforme as especificidades de seus objetos de estudo.
Assim
como em todos os capítulos do livro A Gênese em sua 5ª edição
(1872) e posteriores, o capítulo IV sofreu alterações quando
comparadas à edição original (1868). No caso, destacam-se quatro
eliminações de trechos ou itens, apontados a seguir.
O
item 2 da edição original foi integralmente eliminado na 5ª
edição.
A
religião era, então, um freio poderoso para se governar; os povos
se curvavam facilmente sob as potências invisíveis em nome das
quais eram subjugados e das quais os governantes diziam ter seu
poder, quando não se consideravam iguais a essas mesmas potências.
Para dar mais força à religião era preciso apresentá-la como
absoluta, infalível e imutável sem o que ela teria perdido sua
ascendência sobre seres quase brutos, apenas nascendo para a razão.
Não era preciso que ela pudesse ser discutida, não mais que as
ordens de um soberano, daí o princípio da fé cega e da obediência
passiva que tinham assim, na origem, sua razão de ser e sua
utilidade. A veneração que se tinha pelos livros sagrados, quase
sempre considerados como descendidos do céu, ou inspirados pela
Divindade, impedia, por outro lado, todo exame. (A Gênese, cap. IV,
i.2, 1868)
A
supressão do item 2 faz com que se perca a análise crítica de
Kardec sobre o uso da religião como instrumento de poder e dominação
atrelada à fé cega. Essa alteração, portanto, ainda que não
afete o conteúdo doutrinário do capítulo, fragiliza a reflexão
sobre esse problema que ocorre até os nossos dias.
Outra
alteração ocorreu no item 3 da edição original. O primeiro
parágrafo, apresentado a seguir, foi integralmente cortado.
Da
mesma maneira que para compreender e definir o movimento correlativo
dos ponteiros de um relógio é preciso conhecer as leis que presidem
o seu mecanismo, avaliar a natureza dos materiais e calcular a
magnitude das forças envolvidas, para compreender o mecanismo do
Universo é preciso conhecer as leis que regem todas as forças
postas em ação nesse vasto conjunto. (A Gênese, cap. IV, i. 3,
1868)
Considerando
que o parágrafo eliminado introduzia o argumento lógico de Kardec
sobre a necessidade de se conhecer as leis que regem as coisas e o
Universo, ainda que não impacte negativamente o conteúdo
doutrinário do restante do item ou do capítulo, tal supressão
afeta o desenvolvimento das ideias do autor e priva o leitor de
conhecer esse aspecto lógico.
A
terceira alteração foi a eliminação do trecho a seguir, presente
no item 15 da edição original.
E isso não podia ser diferente, com as
religiões pretendendo possuir, cada uma, sozinha, toda a verdade; uma
afirmando-a de um modo, e outra, de maneira diversa, sem dar provas suficientes
de suas afirmativas para converter a maioria. Na indecisão, o homem se
restringiu ao presente.
Apesar
de não haver consequências doutrinárias significativas para a
compreensão do item, novamente retira-se do leitor a oportunidade de
conhecer a crítica às posturas dogmáticas e desprovidas de
fundamentação nos fatos das religiões tradicionais. Essa
constatação é relevante para diferenciar a proposta espírita e o
próprio dinamismo doutrinário, o qual amplia o horizonte do
conhecimento humano e lastreia-se no avanço científico. As questões
filosóficas fundamentais (quem somos, de onde viemos e para onde
iremos) podem, segundo Kardec, serem desvendadas mediante o progresso
do conhecimento científico, deixando de estar restritas às
discussões metafísicas nem as respostas serem artigos de fé.
A
última alteração de destaque foi a eliminação do parágrafo
final do item 18 da edição original, o qual também encerra o
capítulo, apresentado a seguir.
Quanto
à solução definitiva, talvez jamais seja dado ao homem encontrá-la
sobre a Terra, por se tratar de coisas que são segredos de Deus.
O
trecho eliminado sinaliza as próprias limitações do conhecimento
humano em nosso estágio evolutivo. O capítulo encerra-se sem essa
reflexão.
*
Diretor do Departamento de Doutrina da USE-SP. Presidente da USE
Regional de Campinas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário