Devotos
escandalizados
Texto publicado no jornal Correio Fraterno, ed. 498, mar/abr 2021, p.13
É
evidente o meticuloso trabalho realizado por Allan Kardec, demonstrando sua
capacidade intelectual e nobreza de caráter, angariando o devido respeito, até
de contraditores de sua época.
Não
só por uma questão de humildade, mas também por se tratar de ensino coletivo,
Kardec atribuiu aos Espíritos a origem da doutrina, mas seu protagonismo é
inegável e registrou seu nome na história.
Passados
mais de 160 anos desde o lançamento de O Livro dos Espíritos, o movimento
espírita mundial segue se fortalecendo, com peculiaridades regionais, mas tendo
as obras de Kardec como referência fundamental.
No
Brasil, o Espiritismo adentrou em diferentes segmentos sociais e, como era de
se esperar em um país predominante católico, muitas pessoas aparentam certo
apego a essas tradições. Esse traço se manifesta, principalmente, em alguns novos
adeptos espíritas, que de certa forma ainda refletem costumes religiosos
institucionalizados e pode perdurar em alguns outros adeptos mais antigos,
contribuindo para posturas sincréticas. Um desses costumes é a santificação
informal de pessoas que sejam consideradas modelos de caridade e moralmente
superiores.
O
adepto sincrético habituado à intermediação de santos nos acontecimentos
cotidianos, mesmo sem usar esse termo, considera-se devoto de Bezerra de
Menezes, Chico Xavier, Maria de Nazaré, Allan Kardec e outros. Em momentos de
dificuldades, apenas retiram o prefixo “santo” do nome do Espírito alvo de sua
devoção e a eles dirigem súplicas, não raramente, com promessas de ações
futuras mediante o atendimento de pedidos urgentes.
Tal
postura devocional não impede que o adepto continue estudando e praticando o
bem a si e ao próximo, entretanto, o fanatismo disfarçado de devoção pode
prejudicar o exercício da fé raciocinada, uma das bases do espiritismo. Um
exemplo recorrente é o devoto que acha uma heresia questionar o conteúdo da
mensagem de algum Espírito famoso recebida por um médium igualmente popular,
pois o médium “filtraria” qualquer mensagem menos edificante e a comunicação
sempre seria de elevado teor moral e verdadeira, mesmo que contrariasse o
ensino dos Espíritos apresentados nas obras fundamentais.
Outro
exemplo de fé cega é a atribuição da infalibilidade “papal” à pessoa de Allan Kardec,
de maneira oposta ao que o próprio mestre lionês sempre demonstrou.
A
honestidade intelectual de Kardec em momento algum desejou que os espíritas o
vissem como detentor da verdade absoluta. Ele mesmo revisou e desenvolveu
conceitos e aspectos doutrinários já publicados e até retificou afirmações que
fizera.
Um exemplo é o fenômeno da possessão. Demonstrando o compromisso com a verdade, Kardec afirmou:
Dissemos que não havia possessos no
sentido vulgar do vocábulo, mas subjugados. Mudamos de opinião sobre
essa afirmativa absoluta, porque agora nos é demonstrado que pode haver
verdadeira possessão, isto é, substituição, posto que parcial, de um Espírito
encarnado por um Espírito errante. (Revista Espírita, Dez/1863, Um caso de
possessão: Senhorita Júlia)
Dentre
os capítulos de A Gênese, foram identificados alguns itens cuja edição original
foi apontada por parcela dos estudiosos como mais adequada para se abordar
aspectos doutrinários do que as respectivas alterações ocorridas na 5ª edição.
Outros estudiosos não apontaram diferenças significativas e alguns chegaram a
apontar melhorias. No relatório final do grupo de estudos da USE-SP, destaca-se
a recomendação para que cada adepto compare e verifique por si mesmo as
alterações, sem qualquer imposição de preferência.
Interessante
fato, entretanto, foi notado. Algumas
pessoas se mostraram escandalizadas pela realização de análises comparativas
entre as edições, pois para elas, isso macularia a memória de Allan Kardec. Podemos
supor que os devotos escandalizados consideram a formação de grupos de estudos
comparativos de edições um sacrilégio, pois, para eles, questionar as
alterações seria duvidar da infalibilidade papal que atribuem a Kardec.
Apesar das resistências, o Espiritismo
progride e continua incentivando a fé raciocinada e a prática do bem. Sigamos!
1. https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Relatorio-Final-GVE-2020.pdf
Estimado Marco, o Espiritismo progride alheio ao que se pensa dele...(você tem razão)...o Espiritismo é progressista (sem nenhuma conotação ideológica)...entendendo isso é de se ficar esperando esses incautos acordem para a realidade...Grande abraço...
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