Marco Milani
(Texto publicado na revista A Senda, mar/abr 2022, p. 12 a 14)
Nas
diferentes áreas do conhecimento, quando se pretende traçar linhas de tendência,
com maior ou menor subjetividade, busca-se vislumbrar panoramas futuros e
adentra-se no escorregadio campo previsional.
Allan
Kardec e diversos Espíritos costumavam apontar cenários otimistas com relação à
propagação e aceitação do Espiritismo pela humanidade, embasados na certeza de
que o progresso naturalmente favoreceria a compreensão racional das ideias
espíritas.
Da
mesma maneira que os discípulos de Jesus supuseram que ele retornaria
rapidamente após a sua morte, muitos adeptos interpretam as palavras dos
próprios Espíritos sobre a chegada do período de regeneração e sobre a plena
aceitação das ideias espíritas como um momento de rápida realização.
Os
fatos demonstram, portanto, um claro distanciamento temporal entre as
expectativas de encarnados e desencarnados sobre os eventos futuros.
Se,
por um lado, o progresso intelectual e moral dos homens sinaliza para a
compreensão da realidade espiritual e para a construção de uma sociedade mais
caridosa, justa e fraterna, por outro deve-se ponderar que as transformações
vindouras decorrerão do ritmo evolutivo dos indivíduos no processo
reencarnatório. Alguns séculos ou milênios, conforme o relato dos próprios
Espíritos, assemelham-se a um piscar de olhos na imortalidade, ou seja, a
percepção do tempo é relativa.
Dentre
os fatores relevantes para a consolidação e generalização das ideias espíritas,
Kardec apontou a necessidade de se manter a unidade doutrinária como ponto
central para a união dos adeptos.
Torna-se necessário
distinguir, para efeito de análise e considerações sobre os rumos futuros, os
termos Espiritismo e movimento espírita.
Enquanto o corpo
teórico do Espiritismo apresenta-se estruturado e com sólida consistência
interna em suas obras fundamentais, o movimento espírita, formado por pessoas e
instituições, mostra-se heterogêneo em determinados aspectos, caracterizado por
diferentes graus de maturidade doutrinária.
Para Kardec, a
clareza e a objetividade dos princípios doutrinários, aliadas às ideias
práticas que se afastam de propostas utópicas e inviáveis, deveriam ser
suficientes para evitar ambiguidades e problemas de compreensão sob a luz da
razão, colaborando para a consolidação e propagação do Espiritismo como algo
natural e esperado em um mundo em evolução.
As divergências
interpretativas, entretanto, além de motivações egoístas e orgulhosas, podem
provocar cismas no seio do movimento espírita. Essa fragmentação foi alertada
por Kardec, ao afirmar que tentativas cismáticas seriam promovidas por
ambiciosos e vaidosos que gostariam de obter destaque ligando o próprio nome a
uma inovação qualquer, ávidos por se diferenciarem e dizer que são livres e não
pensam nem fazem como a maioria.[1]
Nas décadas
imediatamente seguintes à desencarnação de Kardec, o movimento espírita francês
fragilizou-se por diferentes fatores, dentre eles a inserção de elementos
místicos e fantasiosos que deturparam a compreensão doutrinária, promoveram
rupturas entre instituições e adeptos e, ainda, prejudicaram a propagação do
Espiritismo. Exemplificando essa infiltração, Pierre-Gaetan Leymarie, então
responsável pela continuidade das edições da Revista Espírita, permitiu a publicação
de textos teosofistas, orientalistas e roustanguistas nesse periódico, fazendo
com que os princípios e valores espíritas fossem apresentados ao lado de
propostas mirabolantes e antidoutrinárias.
A infiltração de
teorias e práticas estranhas ao Espiritismo em veículos de divulgação e nas
reuniões de grupos supostamente espíritas impactou o ritmo de propagação
doutrinária previsto por Kardec. Não causa surpresa o fato de algumas dessas
deturpações, como o roustainguismo, terem desembarcado no Brasil, ainda no
final do século 19 e influenciado os estudos e práticas de alguns grupos
espíritas nascentes. Ainda do século 21, sentem-se os reflexos dos conceitos
místicos em determinados grupos e instituições brasileiras.
A organização do movimento
espírita brasileiro (MEB), por meio de entidades representativas com diferentes
complexidades e peculiaridades, certamente foi relevante para fomentar a
criação e orientação de milhares de centros espíritas registrados atualmente, objetivando-se
respeitar a autonomia de cada grupo e a cultura local, sem o estabelecimento de
vínculos de subordinação e de dependência administrativa e financeira.
Os
recentes avanços tecnológicos na área de comunicação, contribuindo para uma
notável expansão da atividade de divulgação e promovendo a interação de adeptos
e simpatizantes sobre as temáticas doutrinárias podem ser considerados um novo marco
no desenvolvimento do MEB, fortalecendo a proposta kardequiana de disseminação
do conhecimento espírita sem a intenção de se fazer proselitismo.
Essencial
na leitura de qualquer comunicação mediúnica, a análise do conteúdo sob o crivo
da razão deve guiar a reflexão sobre a qualidade das informações que transitam
no mundo digital. Ao mesmo tempo em que se verificam informações corretas e adequadas sobre o ensino dos Espíritos, também circulam informações
pseudoespíritas, as quais iludem e confundem aqueles menos familiarizados com
os princípios e valores doutrinários. As obras de Kardec, como destacou o
saudoso escritor Herculano Pires, servem de pedra de toque para se separar o
joio do trigo.
A
plena compreensão doutrinária, que efetivamente deve unir os adeptos, só é
alcançada pela valorização da fé raciocinada e o reconhecimento da
superioridade do método do controle universal adotado por Kardec para a
composição das obras fundamentais do Espiritismo.
O público leigo e os neófitos
facilmente confundem informações ditas mediúnicas como se fossem verdades
espíritas, desconhecendo que desencarnados apenas manifestam opiniões e essas
estão bem distantes da legitimidade inerente ao conjunto de informações, ainda
que mediúnicas, submetidas ao método do Controle Universal do Ensino dos Espíritos
(CUEE) aplicado por Allan Kardec. Assim, é por uma questão científica metodológica
e pelo exercício da fé raciocinada que não se pode aceitar como novos ensinos e
substituir ou desejar “atualizar” os pressupostos doutrinários explicitados nas
obras fundamentais.
Um equívoco comum,
fruto do desconhecimento do método do CUEE e do amadorismo em pesquisa
científica, é validar uma informação mediúnica baseando-se na idoneidade moral
do médium, pois tal suposição de filtragem qualitativa contraria o que os próprios
Espíritos reafirmaram inúmeras vezes sobre a inexistência de médiuns
infalíveis. Além disso, o bom médium apenas intermedia a comunicação, sem
imiscuir-se animicamente na mensagem. Uma comunicação com teor falso e irreal
pode ser obtida por médiuns moralmente bons, pois a autoria do conteúdo é do
emissor desencarnado e não do intermediário.
Esse cuidado
analítico deve nortear qualquer informação, não somente aquelas aparentemente
mediúnicas. O critério para se examinar as mensagens que circulam pelos meios
digitais é, dessa maneira, o mesmo que pautava o zelo exercido por Kardec nas
comunicações da época.
Ao se refletir sobre
os caminhos do movimento espírita, a interação entre os adeptos, grupos e
instituições espíritas espalhados pelo mundo passa a assumir papel de destaque
para o fortalecimento do conhecimento doutrinário e busca da unidade prevista
por Kardec.
Os modelos de funcionamento
dos centros espíritas, tanto no Brasil como no exterior, estão sendo
aprimorados diante do momento pandêmico que exige adaptações inteligentes e
doutrinariamente coerentes das atividades desenvolvidas. O arquétipo de casa
espírita, formatado há mais de um século, exige aperfeiçoamentos para combater
a cristalização improdutiva de hábitos e costumes que não priorizam a prática
legítima e o estudo contínuo e aprofundado da teoria espírita apresentada por
Allan Kardec.
O Espiritismo não tem
nacionalidade nem pertence a alguma entidade federativa, logo não se restringe
a fronteiras geográficas e muito menos às tentativas de hierarquização e
subordinação institucionais. O cenário projetado para o movimento espírita
mundial considera os reflexos da maior diversidade cultural entre os povos na
interpretação, que é clara e objetiva, do conjunto de princípios e valores
espíritas.
A história já ensinou
sobre a nocividade das infiltrações místicas, supersticiosas e conceitualmente
deturpadas que corrompem o movimento espírita imprevidente. O sincretismo, presente em países com forte
cultura religiosa, é um desafio a ser vencido.
A caridade mal
compreendida faz com que a omissão prevaleça perante oportunidades de
esclarecimento e auxílio. Diante de alguma impropriedade conceitual ou prática
incoerente com os princípios espíritas, pondera-se sobre a melhor maneira de se
esclarecer e superar eventuais problemas gerados pela situação. O silêncio não deve ser usado caso outras
pessoas possam ser prejudicadas por informações que gerem confusão ou posturas
inadequadas, sob o risco da tolerância se converter em conivência. Ao se
reproduzir ou disseminar informações fantasiosas que se passam por espíritas,
falta-se com a caridade pois prejudica-se o entendimento do Espiritismo.
Outra infiltração perniciosa
no MEB é a militância político-ideológica que desarmoniza o ambiente e gera
cismas. Conforme sabiamente explicitou Kardec[2],
“Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas
reuniões tudo quando se refere à política e a questões irritantes”. Como
cidadãos, os espíritas possuem a liberdade de consciência e podem abraçar a
corrente ideológica que acharem a mais adequada. O fato de não levarem suas
preferências políticas para serem discutidas no centro espírita não justifica,
em hipótese alguma, que sejam rotulados de alienados, ao contrário, demonstra
maturidade, sensatez e respeito pela organização que colaboram e por seus
companheiros de trabalho.
A unidade doutrinária
é aquela que fará com que cada vez mais pessoas sejam esclarecidas sobre a
natureza, origem e destino dos Espíritos e suas relações com o mundo corporal.
Ao prezarmos pela divulgação séria e responsável do Espiritismo, contribuímos
diretamente para que a transformação moral da humanidade não seja adiada, mas
realizada o quanto antes, mesmo que o tempo seja relativo.
Fonte: https://www.feees.org.br/revista-senda/a-senda-marco-abril-2022/
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