sexta-feira, 8 de abril de 2022

Movimento espírita: para onde caminhamos?


 Movimento espírita: para onde caminhamos?

 

Marco Milani


(Texto publicado na revista A Senda, mar/abr 2022, p. 12 a 14)


               Nas diferentes áreas do conhecimento, quando se pretende traçar linhas de tendência, com maior ou menor subjetividade, busca-se vislumbrar panoramas futuros e adentra-se no escorregadio campo previsional.

               Allan Kardec e diversos Espíritos costumavam apontar cenários otimistas com relação à propagação e aceitação do Espiritismo pela humanidade, embasados na certeza de que o progresso naturalmente favoreceria a compreensão racional das ideias espíritas.

               Da mesma maneira que os discípulos de Jesus supuseram que ele retornaria rapidamente após a sua morte, muitos adeptos interpretam as palavras dos próprios Espíritos sobre a chegada do período de regeneração e sobre a plena aceitação das ideias espíritas como um momento de rápida realização.

               Os fatos demonstram, portanto, um claro distanciamento temporal entre as expectativas de encarnados e desencarnados sobre os eventos futuros.

               Se, por um lado, o progresso intelectual e moral dos homens sinaliza para a compreensão da realidade espiritual e para a construção de uma sociedade mais caridosa, justa e fraterna, por outro deve-se ponderar que as transformações vindouras decorrerão do ritmo evolutivo dos indivíduos no processo reencarnatório. Alguns séculos ou milênios, conforme o relato dos próprios Espíritos, assemelham-se a um piscar de olhos na imortalidade, ou seja, a percepção do tempo é relativa.

               Dentre os fatores relevantes para a consolidação e generalização das ideias espíritas, Kardec apontou a necessidade de se manter a unidade doutrinária como ponto central para a união dos adeptos.

Torna-se necessário distinguir, para efeito de análise e considerações sobre os rumos futuros, os termos Espiritismo e movimento espírita.

Enquanto o corpo teórico do Espiritismo apresenta-se estruturado e com sólida consistência interna em suas obras fundamentais, o movimento espírita, formado por pessoas e instituições, mostra-se heterogêneo em determinados aspectos, caracterizado por diferentes graus de maturidade doutrinária.

Para Kardec, a clareza e a objetividade dos princípios doutrinários, aliadas às ideias práticas que se afastam de propostas utópicas e inviáveis, deveriam ser suficientes para evitar ambiguidades e problemas de compreensão sob a luz da razão, colaborando para a consolidação e propagação do Espiritismo como algo natural e esperado em um mundo em evolução.

As divergências interpretativas, entretanto, além de motivações egoístas e orgulhosas, podem provocar cismas no seio do movimento espírita. Essa fragmentação foi alertada por Kardec, ao afirmar que tentativas cismáticas seriam promovidas por ambiciosos e vaidosos que gostariam de obter destaque ligando o próprio nome a uma inovação qualquer, ávidos por se diferenciarem e dizer que são livres e não pensam nem fazem como a maioria.[1]

Nas décadas imediatamente seguintes à desencarnação de Kardec, o movimento espírita francês fragilizou-se por diferentes fatores, dentre eles a inserção de elementos místicos e fantasiosos que deturparam a compreensão doutrinária, promoveram rupturas entre instituições e adeptos e, ainda, prejudicaram a propagação do Espiritismo. Exemplificando essa infiltração, Pierre-Gaetan Leymarie, então responsável pela continuidade das edições da Revista Espírita, permitiu a publicação de textos teosofistas, orientalistas e roustanguistas nesse periódico, fazendo com que os princípios e valores espíritas fossem apresentados ao lado de propostas mirabolantes e antidoutrinárias.

A infiltração de teorias e práticas estranhas ao Espiritismo em veículos de divulgação e nas reuniões de grupos supostamente espíritas impactou o ritmo de propagação doutrinária previsto por Kardec. Não causa surpresa o fato de algumas dessas deturpações, como o roustainguismo, terem desembarcado no Brasil, ainda no final do século 19 e influenciado os estudos e práticas de alguns grupos espíritas nascentes. Ainda do século 21, sentem-se os reflexos dos conceitos místicos em determinados grupos e instituições brasileiras.

A organização do movimento espírita brasileiro (MEB), por meio de entidades representativas com diferentes complexidades e peculiaridades, certamente foi relevante para fomentar a criação e orientação de milhares de centros espíritas registrados atualmente, objetivando-se respeitar a autonomia de cada grupo e a cultura local, sem o estabelecimento de vínculos de subordinação e de dependência administrativa e financeira.

               Os recentes avanços tecnológicos na área de comunicação, contribuindo para uma notável expansão da atividade de divulgação e promovendo a interação de adeptos e simpatizantes sobre as temáticas doutrinárias podem ser considerados um novo marco no desenvolvimento do MEB, fortalecendo a proposta kardequiana de disseminação do conhecimento espírita sem a intenção de se fazer proselitismo.

               Essencial na leitura de qualquer comunicação mediúnica, a análise do conteúdo sob o crivo da razão deve guiar a reflexão sobre a qualidade das informações que transitam no mundo digital. Ao mesmo tempo em que se verificam informações corretas e adequadas sobre o ensino dos Espíritos, também circulam informações pseudoespíritas, as quais iludem e confundem aqueles menos familiarizados com os princípios e valores doutrinários. As obras de Kardec, como destacou o saudoso escritor Herculano Pires, servem de pedra de toque para se separar o joio do trigo.

               A plena compreensão doutrinária, que efetivamente deve unir os adeptos, só é alcançada pela valorização da fé raciocinada e o reconhecimento da superioridade do método do controle universal adotado por Kardec para a composição das obras fundamentais do Espiritismo.

O público leigo e os neófitos facilmente confundem informações ditas mediúnicas como se fossem verdades espíritas, desconhecendo que desencarnados apenas manifestam opiniões e essas estão bem distantes da legitimidade inerente ao conjunto de informações, ainda que mediúnicas, submetidas ao método do Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE) aplicado por Allan Kardec. Assim, é por uma questão científica metodológica e pelo exercício da fé raciocinada que não se pode aceitar como novos ensinos e substituir ou desejar “atualizar” os pressupostos doutrinários explicitados nas obras fundamentais.

Um equívoco comum, fruto do desconhecimento do método do CUEE e do amadorismo em pesquisa científica, é validar uma informação mediúnica baseando-se na idoneidade moral do médium, pois tal suposição de filtragem qualitativa contraria o que os próprios Espíritos reafirmaram inúmeras vezes sobre a inexistência de médiuns infalíveis. Além disso, o bom médium apenas intermedia a comunicação, sem imiscuir-se animicamente na mensagem. Uma comunicação com teor falso e irreal pode ser obtida por médiuns moralmente bons, pois a autoria do conteúdo é do emissor desencarnado e não do intermediário.

Esse cuidado analítico deve nortear qualquer informação, não somente aquelas aparentemente mediúnicas. O critério para se examinar as mensagens que circulam pelos meios digitais é, dessa maneira, o mesmo que pautava o zelo exercido por Kardec nas comunicações da época.

Ao se refletir sobre os caminhos do movimento espírita, a interação entre os adeptos, grupos e instituições espíritas espalhados pelo mundo passa a assumir papel de destaque para o fortalecimento do conhecimento doutrinário e busca da unidade prevista por Kardec.

Os modelos de funcionamento dos centros espíritas, tanto no Brasil como no exterior, estão sendo aprimorados diante do momento pandêmico que exige adaptações inteligentes e doutrinariamente coerentes das atividades desenvolvidas. O arquétipo de casa espírita, formatado há mais de um século, exige aperfeiçoamentos para combater a cristalização improdutiva de hábitos e costumes que não priorizam a prática legítima e o estudo contínuo e aprofundado da teoria espírita apresentada por Allan Kardec.

O Espiritismo não tem nacionalidade nem pertence a alguma entidade federativa, logo não se restringe a fronteiras geográficas e muito menos às tentativas de hierarquização e subordinação institucionais. O cenário projetado para o movimento espírita mundial considera os reflexos da maior diversidade cultural entre os povos na interpretação, que é clara e objetiva, do conjunto de princípios e valores espíritas.

A história já ensinou sobre a nocividade das infiltrações místicas, supersticiosas e conceitualmente deturpadas que corrompem o movimento espírita imprevidente.  O sincretismo, presente em países com forte cultura religiosa, é um desafio a ser vencido.

A caridade mal compreendida faz com que a omissão prevaleça perante oportunidades de esclarecimento e auxílio. Diante de alguma impropriedade conceitual ou prática incoerente com os princípios espíritas, pondera-se sobre a melhor maneira de se esclarecer e superar eventuais problemas gerados pela situação.  O silêncio não deve ser usado caso outras pessoas possam ser prejudicadas por informações que gerem confusão ou posturas inadequadas, sob o risco da tolerância se converter em conivência. Ao se reproduzir ou disseminar informações fantasiosas que se passam por espíritas, falta-se com a caridade pois prejudica-se o entendimento do Espiritismo.

Outra infiltração perniciosa no MEB é a militância político-ideológica que desarmoniza o ambiente e gera cismas. Conforme sabiamente explicitou Kardec[2], “Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando se refere à política e a questões irritantes”. Como cidadãos, os espíritas possuem a liberdade de consciência e podem abraçar a corrente ideológica que acharem a mais adequada. O fato de não levarem suas preferências políticas para serem discutidas no centro espírita não justifica, em hipótese alguma, que sejam rotulados de alienados, ao contrário, demonstra maturidade, sensatez e respeito pela organização que colaboram e por seus companheiros de trabalho.

A unidade doutrinária é aquela que fará com que cada vez mais pessoas sejam esclarecidas sobre a natureza, origem e destino dos Espíritos e suas relações com o mundo corporal. Ao prezarmos pela divulgação séria e responsável do Espiritismo, contribuímos diretamente para que a transformação moral da humanidade não seja adiada, mas realizada o quanto antes, mesmo que o tempo seja relativo.



[1] Kardec, A. Revista Espírita - dez/1868 – Constituição transitória do Espiritismo – Dos cismas.

[2] Kardec. A. Revista Espírita, fev/1862, Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião do Ano-Novo


Fonte: https://www.feees.org.br/revista-senda/a-senda-marco-abril-2022/


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