Ortodoxia e
heterodoxia espíritas
Marco Milani
Texto
publicado na Revista Candeia Espírita, nº 30, mar/abr 2024, p. 8-9
No
Espiritismo, assim como em diferentes áreas do conhecimento, encontram-se
presentes os conceitos de ortodoxia e heterodoxia, ainda que possam contar com
interpretações e aplicações específicas, conforme o grupo em análise.
Sinteticamente,
a ortodoxia espírita refere-se à plena concordância e adesão ao ensino dos
Espíritos apresentado nas obras fundamentais de Allan Kardec, bem como à
argumentação e às práticas coerentes com os respectivos princípios e valores
doutrinários.
A
heterodoxia espírita, por sua vez, liga-se às interpretações, práticas e
narrativas que se afastam significativamente dos ensinos expressos em Kardec. Ela
é caracterizada pela adoção de pressupostos divergentes dos princípios
originais, seja pela incorporação de conceitos e ideias estranhas ao corpo
doutrinário ou por variações interpretativas dos mesmos princípios.
Enquanto
a ortodoxia está fundamentada em um conjunto teórico estruturado e consistente,
a heterodoxia propõe, comumente, uma revisão e alteração dos princípios
basilares mediante a adoção de novos elementos estruturantes.
Um
equívoco recorrente dos menos afeitos ao pensamento científico e à própria
Doutrina Espírita, é a suposição de que a ortodoxia prende-se à imobilidade e à
cristalização das ideias, como se fosse um sistema fechado e impermeável a
descobertas, impedindo o avanço no conhecimento. Tal suposição decorre do
desconhecimento de que o Espiritismo foi concebido para progredir junto à
ciência, caminhando lado a lado, de maneira que se for provado que algo está
incorreto, abandona-se o que se provou falso para se adotar o verdadeiro.
Assim, o
espírita ortodoxo está, naturalmente, aberto à análise e aceitação do novo,
desde que esse prove-se correto em bases sólidas e objetivas, e não sobre
opiniões e propostas hipotéticas que carecem da devida validação. Igualmente
como agiu Kardec, pode-se afirmar que a prudência é uma condição necessária para
a fé raciocinada.
Aquele
que não analisa novos fatos e nega o caráter progressivo do Espiritismo não
compreendeu a própria dinâmica ortodoxa espírita.
Por
outro lado, a heterodoxia, ao partir de premissas e conceitos hipotéticos ou
doutrinariamente divergentes, concebe um novo corpo teórico sobre bases que
ainda carecem de legitimação e validação. Imprudentemente, abraçam-se ideias
antagônicas ou destoantes ao ensino dos Espíritos que passaram pelo critério da
universalidade adotado por Kardec, exigindo reformulação sem provas de princípios
e práticas.
O ponto
de tensão entre os diferentes posicionamentos de adeptos ortodoxos e
heterodoxos é a ausência de um método capaz de legitimar e validar as
informações doutrinárias diante de novos fatos e ideias no complexo ambiente
tecnológico de hoje. Sob a perspectiva ortodoxa, somente por meio de um método
objetivo é possível validar hipóteses e novas informações. Sob a perspectiva
heterodoxa, o método é secundário, pois a validação poderia ocorrer
subjetivamente, inclusive servindo-se de argumentos falaciosos de autoridade
que transformariam opiniões de médiuns e desencarnados famosos em revelações
indiscutíveis.
A
prudente recomendação de Erasto denota o cuidado que todo adepto coerente com
a fé raciocinada deveria expressar.
“Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por
pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crivo da razão e da lógica e
rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem. Melhor é
repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.
Efetivamente, sobre essa teoria poderíeis edificar um sistema completo, que
desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento edificado sobre
areia movediça, ao passo que, se rejeitardes hoje algumas verdades, porque não
vos são demonstradas clara e logicamente, mais tarde um fato brutal ou uma
demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.”[1]
Nenhum comentário:
Postar um comentário