terça-feira, 4 de novembro de 2025

Ninguém nasce em corpo errado

 

Ninguém nasce em corpo errado

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 50, nov/2025, p.10-11

 

Vivemos uma época em que o relativismo moral se apresenta como um dos maiores desafios à compreensão da vida e da existência espiritual. Parte significativa da população, afastada das referências espirituais, busca sentido apenas nos valores transitórios do mundo material. As consequências dessa visão imediatista são profundas: muitos passam a enxergar a vida como um acaso biológico e o corpo como mero produto de escolhas humanas, ignorando de que a existência física é apenas um capítulo do extenso processo evolutivo do Espírito.

O Espiritismo, ao revelar a realidade da vida espiritual e o princípio da reencarnação, oferece uma chave de entendimento que concilia razão, justiça e amor. A experiência terrena não é um erro nem um castigo, mas uma etapa indispensável na marcha ascendente do Espírito. Em cada encarnação, o ser encontra as condições adequadas para desenvolver suas virtudes e reparar erros passados. O corpo físico, longe de ser um acaso genético, é o instrumento necessário ao aprendizado que o Espírito necessita. A forma, as limitações e as circunstâncias materiais não são imposições arbitrárias, mas expressões de uma justiça que age segundo a sabedoria divina.

O Espírito escolhe, dentro das possibilidades que sua evolução lhe permite, as provas e expiações que mais contribuirão para o seu progresso. Assim, o corpo que recebe ao nascer é o mais apropriado às lições que deve vivenciar. Pode haver limitações, desconfortos e desafios, mas todos estão subordinados a um fim maior: o aprimoramento moral e intelectual. Nenhum Espírito é colocado em condição inadequada às suas necessidades evolutivas. Deus, sendo soberanamente justo e bom, não permite o acaso na estrutura da vida.

Essa compreensão não significa, entretanto, que devamos assumir postura passiva diante das dificuldades. O Espiritismo não prega o conformismo inerte, mas o esforço consciente pela superação de nossas imperfeições. O corpo deve ser cuidado, respeitado e amparado, pois é o instrumento de trabalho da alma na Terra. Buscar o bem-estar físico, emocional e psíquico é legítimo e fundamental, desde que feito em harmonia com as leis  naturais. Todavia, o inconformismo revoltado, que nega as próprias condições reencarnatórias e se volta contra as leis divinas e geralmente culpa as limitações alheias por seus insucessos e frustrações, apenas retarda o aprendizado e aprofunda o sofrimento.

O progresso real nasce do reconhecimento da sabedoria de Deus em todas as coisas. Quando compreendemos que cada situação vivida tem um propósito educativo, aprendemos a lidar com a dor de forma construtiva e a transformar o sofrimento em crescimento. A rebeldia contra as leis naturais, ao contrário, cria empecilhos para o amparo divino e mantém o homem prisioneiro das próprias ilusões.

A Doutrina Espírita nos convida a ver o corpo como uma bênção e uma oportunidade. É o templo sagrado onde o Espírito trabalha pela sua regeneração. Por meio dele, desenvolvemos a paciência, a empatia e a resignação ativa. Nenhuma característica física, condição social ou situação existencial define o valor espiritual do ser. O que realmente importa é a maneira como utilizamos as oportunidades que a vida nos concede para evoluir.

A fé raciocinada, enaltecida por Allan Kardec, nos liberta das interpretações superficiais e nos conduz à compreensão das causas e efeitos que regem a existência. Crer não é aceitar cegamente, mas compreender e confiar na justiça e bondade de Deus em todas as circunstâncias. Quando a inteligência se ilumina pela razão e pelo amor, não há espaço para revolta nem para a negação da própria encarnação.

O Espírito imortal é o artífice de seu próprio destino. Cada prova, cada dor e cada alegria compõem o conjunto de experiências que o conduzem à perfeição. A encarnação não é punição, mas caminho de ascensão. Ao compreender isso, o ser humano descobre que ninguém nasce em corpo errado, pois o corpo é o instrumento certo para a lição certa.

A verdadeira libertação está no entendimento das leis divinas e na prática da caridade. A caridade para consigo mesmo, que consiste em aceitar-se com serenidade e responsabilidade, e a caridade para com o próximo, que se expressa na compreensão, no respeito e no amor fraterno. Só a união entre razão e amor nos permite viver em paz com a própria consciência e colaborar na construção de um mundo mais justo sob a perspectiva dos homens e harmonioso.

O Espiritismo nos permite compreender que a justiça divina é perfeita, e que cada um de nós ocupa o exato lugar que necessita para aprender a amar. Nenhum Espírito está fora da Natureza e nenhum corpo é um erro na Criação. Tudo segue a ordem sábia do universo, que direciona cada ser, passo a passo, à plenitude espiritual.

 

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