Ninguém nasce em corpo errado
Marco Milani
Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 50, nov/2025, p.10-11
Vivemos uma época em que o relativismo moral se
apresenta como um dos maiores desafios à compreensão da vida e da existência
espiritual. Parte significativa da população, afastada das referências espirituais,
busca sentido apenas nos valores transitórios do mundo material. As
consequências dessa visão imediatista são profundas: muitos passam a enxergar a
vida como um acaso biológico e o corpo como mero produto de escolhas humanas, ignorando
de que a existência física é apenas um capítulo do extenso processo evolutivo
do Espírito.
O Espiritismo, ao revelar a realidade da vida
espiritual e o princípio da reencarnação, oferece uma chave de entendimento que
concilia razão, justiça e amor. A experiência terrena não é um erro nem um
castigo, mas uma etapa indispensável na marcha ascendente do Espírito. Em cada
encarnação, o ser encontra as condições adequadas para desenvolver suas
virtudes e reparar erros passados. O corpo físico, longe de ser um acaso
genético, é o instrumento necessário ao aprendizado que o Espírito necessita. A
forma, as limitações e as circunstâncias materiais não são imposições
arbitrárias, mas expressões de uma justiça que age segundo a sabedoria divina.
O Espírito escolhe, dentro das possibilidades que sua
evolução lhe permite, as provas e expiações que mais contribuirão para o seu
progresso. Assim, o corpo que recebe ao nascer é o mais apropriado às lições
que deve vivenciar. Pode haver limitações, desconfortos e desafios, mas todos
estão subordinados a um fim maior: o aprimoramento moral e intelectual. Nenhum
Espírito é colocado em condição inadequada às suas necessidades evolutivas.
Deus, sendo soberanamente justo e bom, não permite o acaso na estrutura da
vida.
Essa compreensão não significa, entretanto, que
devamos assumir postura passiva diante das dificuldades. O Espiritismo não
prega o conformismo inerte, mas o esforço consciente pela superação de nossas
imperfeições. O corpo deve ser cuidado, respeitado e amparado, pois é o
instrumento de trabalho da alma na Terra. Buscar o bem-estar físico, emocional
e psíquico é legítimo e fundamental, desde que feito em harmonia com as
leis naturais. Todavia, o inconformismo
revoltado, que nega as próprias condições reencarnatórias e se volta contra as
leis divinas e geralmente culpa as limitações alheias por seus insucessos e
frustrações, apenas retarda o aprendizado e aprofunda o sofrimento.
O progresso real nasce do reconhecimento da sabedoria
de Deus em todas as coisas. Quando compreendemos que cada situação vivida tem
um propósito educativo, aprendemos a lidar com a dor de forma construtiva e a
transformar o sofrimento em crescimento. A rebeldia contra as leis naturais, ao
contrário, cria empecilhos para o amparo divino e mantém o homem prisioneiro
das próprias ilusões.
A Doutrina Espírita nos convida a ver o corpo como
uma bênção e uma oportunidade. É o templo sagrado onde o Espírito trabalha pela
sua regeneração. Por meio dele, desenvolvemos a paciência, a empatia e a
resignação ativa. Nenhuma característica física, condição social ou situação
existencial define o valor espiritual do ser. O que realmente importa é a
maneira como utilizamos as oportunidades que a vida nos concede para evoluir.
A fé raciocinada, enaltecida por Allan Kardec, nos
liberta das interpretações superficiais e nos conduz à compreensão das causas e
efeitos que regem a existência. Crer não é aceitar cegamente, mas compreender e
confiar na justiça e bondade de Deus em todas as circunstâncias. Quando a
inteligência se ilumina pela razão e pelo amor, não há espaço para revolta nem
para a negação da própria encarnação.
O Espírito imortal é o artífice de seu próprio
destino. Cada prova, cada dor e cada alegria compõem o conjunto de experiências
que o conduzem à perfeição. A encarnação não é punição, mas caminho de
ascensão. Ao compreender isso, o ser humano descobre que ninguém nasce em corpo
errado, pois o corpo é o instrumento certo para a lição certa.
A verdadeira libertação está no entendimento das leis
divinas e na prática da caridade. A caridade para consigo mesmo, que consiste
em aceitar-se com serenidade e responsabilidade, e a caridade para com o
próximo, que se expressa na compreensão, no respeito e no amor fraterno. Só a
união entre razão e amor nos permite viver em paz com a própria consciência e
colaborar na construção de um mundo mais justo sob a perspectiva dos homens e
harmonioso.
O Espiritismo nos permite compreender que a justiça divina
é perfeita, e que cada um de nós ocupa o exato lugar que necessita para
aprender a amar. Nenhum Espírito está fora da Natureza e nenhum corpo é um erro
na Criação. Tudo segue a ordem sábia do universo, que direciona cada ser, passo
a passo, à plenitude espiritual.
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