Analfabetismo
doutrinário *
Marco Milani
Na obra O evangelho segundo o
espiritismo, capítulo 17, item 4, Allan Kardec afirma que o verdadeiro espírita
pode ser reconhecido por sua transformação moral e pelo esforço que faz em
domar suas más tendências. Nessa passagem, o codificador sinaliza a aplicação
prática dos aspectos comportamentais esperados do espírita, para o qual os
princípios doutrinários lhe fazem "vibrar as fibras que nos outros permanecem
mudas; em uma palavra: foi tocado no coração, e por isso a sua fé é
inabalável".
Assim, o verdadeiro espírita
busca se transformar porque conhece a sua realidade espiritual e consegue
compreender as consequências de seus atos diante de um contexto natural
regulado pelas leis divinas.
Nesse sentido, a motivação para o
autoaprimoramento é o conhecimento de si mesmo e das relações naturais
presentes no processo evolutivo do ser, conforme apresentados no corpo teórico
espírita. Logo, o verdadeiro espírita conhece os princípios doutrinários e age
coerentemente com a cosmovisão espírita.
Kardec, ainda, sinaliza diferentes
graus de compreensão e aplicação dos conceitos espíritas ao se referir àqueles
que apenas creem nas manifestações dos desencarnados e àqueles que, além de
crer, vislumbram e compreendem as consequências diretas e indiretas dessas
relações entre os mundos visível e invisível.
E como se poderia designar os
adeptos que se declaram espíritas, mas demonstram ignorar os princípios e
valores doutrinários? Bastaria se declarar espírita para assim ser reconhecido
pelos demais participantes desse grupo? É uma questão interessante e que
envolve muito cuidado para não ferir suscetibilidades.
Modernamente, existe um conceito
utilizado na área educacional para designar a situação na qual uma pessoa,
mesmo possuindo os elementos que a capacitam a ler e escrever, não consegue
interpretar e realizar associações de ideias expressas em um texto. Tal
situação é denominada de analfabetismo funcional e não está restrita às pessoas
com poucos anos formais de estudo. Há quatro níveis de alfabetismo, desde o
nulo (analfabeto) até o grau pleno (alfabetizado sem restrições).
Conforme o Instituto Paulo
Montenegro – IPM, vem aumentando a quantidade de brasileiros que não sabem ler
e escrever plenamente. Em 2012, cerca de 65% das pessoas que completaram o
ensino médio e 38% dos universitários eram alfabetizadas com restrições, ou
seja, apresentavam dificuldades na plena interpretação escrita e associações de
ideias e conceitos. Em 2002, esses dados eram de 51% e 24%, respectivamente.
Ora, se essa é uma situação gravíssima detectada na sociedade brasileira,
inclusive em cursos superiores, por que ela também não poderia se reproduzir no
movimento espírita?
Analogamente a uma pessoa supostamente
alfabetizada que não consegue compreender adequadamente um texto, pode-se
aplicar esse mesmo conceito a um adepto do espiritismo que não consegue
compreender plenamente os princípios e valores doutrinários. É possível
conceber, portanto, uma situação de analfabetismo funcional doutrinário em
diferentes graus.
Não se pode esconder ou fingir
que esse contexto não existe, sob o falso discurso da caridade, pois que esta
não é caracterizada pela omissão, mas pela ação construtiva. É a identificação dos
pontos frágeis a serem melhorados e a discussão séria voltada ao fortalecimento
da compreensão doutrinária que favorecerão a formulação de propostas
educacionais eficazes para as casas espíritas.
Será que, com um índice de
analfabetismo funcional tão expressivo, a simples disseminação de programas
padronizados de ensino doutrinário voltados para um público plenamente
alfabetizado e para todas as regiões do país é pertinente? Como identificar e
ajudar o analfabeto funcional a compreender os fundamentos do espiritismo? Será
que muitos analfabetos doutrinários estão assumindo a tribuna para divulgar o
espiritismo? São questões a serem respondidas com ponderação.
O Ministério da Educação do
Brasil e muitas instituições de ensino possuem profissionais debruçados sobre o
problema do analfabetismo funcional e existem algumas propostas para a
respectiva solução, mas todas elas passam pela melhoria do ensino de base, ou
seja, foca-se nas novas gerações e não na atual. Fica a sugestão para todos os
dirigentes das casas espíritas e das entidades federativas para refletirem
sobre como essa questão influencia a divulgação e a compreensão dos princípios
doutrinários ao público adulto. Incentivemos o desenvolvimento de verdadeiros
espíritas e não de aparentes adeptos.
* texto publicado no jornal Correio Fraterno, Ed. nº 455, jan/fev 2014, pgs 8 e 9.
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