terça-feira, 17 de junho de 2025

Intersecções entre a Bíblia e a Economia - por Mark Hendrickson

 


Intersecções entre a Bíblia e a Economia

Mark Hendrickson

17 de junho de 2025

 

É compreensível que as pessoas tenham reservas quando alguém insere a Bíblia em uma discussão sobre questões econômicas. A Bíblia certamente não é um manual de economia. Seu tratamento de temas econômicos é esporádico e breve, faltando-lhe detalhamento e profundidade. Não surpreende, portanto, que as implicações econômicas da Bíblia sejam percebidas de muitas formas diferentes.

A Bíblia aborda temas econômicos de maneiras que às vezes são descritivas (neutras em relação a valores) e outras vezes prescritivas (carregadas de valores, normativas). Essas distinções são cruciais.

Por exemplo, a Bíblia é puramente descritiva ao relatar um episódio que ilustra a lei da oferta e da demanda em funcionamento durante o cerco sírio a Samaria (2 Reis 6:24-7:18). Quando a oferta diminui, os preços sobem; quando a oferta aumenta, os preços caem. A Bíblia não emite qualquer juízo de valor sobre o funcionamento da oferta e da demanda. Essa lei econômica não é nem certa nem errada; é simplesmente a forma como o mundo funciona, tão neutra quanto dizer que o fogo queima a madeira.

A Bíblia também é meramente descritiva em seu tratamento das trocas voluntárias, considerando as transações entre compradores e vendedores a preços mutuamente aceitáveis como uma característica comum da vida na Terra – por exemplo, a compra de um túmulo por Abraão para Sara (Gênesis 23:15) e a aquisição de suprimentos por Davi para uma oferta de holocausto (1 Crônicas 21:24-25). Até mesmo a usura (cobrança de juros) é tratada de forma não condenatória quando Jesus, na parábola dos talentos, diz ao servo improdutivo que ele ao menos deveria ter usado o dinheiro confiado a ele para render juros (Mateus 25:27).

É ao nos voltarmos para os aspectos prescritivos (normativos) dos fenômenos econômicos na Bíblia que surgem controvérsias sobre como interpretá-la. Centrais nos ensinamentos bíblicos estão os que Jesus chamou de os dois grandes mandamentos (Mateus 22:36-40), que orientam como os seres humanos devem se relacionar com Deus e uns com os outros. De fato, esses dois mandamentos são uma versão condensada (um resumo antecipado?) dos Dez Mandamentos (Êxodo 20:3-17), dos quais quatro dizem respeito ao que devemos a Deus e seis fornecem regras sobre como os seres humanos devem tratar uns aos outros.

Particularmente relevantes para a economia são o oitavo e o décimo mandamentos, "Não furtarás" e "Não cobiçarás". São declarações inequívocas que exigem a adesão ao princípio da propriedade privada. (Aliás, não é preciso acreditar em Deus ou na Bíblia para endossar o princípio da propriedade privada. Ludwig von Mises, por exemplo, por meio de sua análise econômica completamente livre de valores morais, concluiu que é logicamente demonstrável que, se as pessoas desejam prosperidade, então uma economia baseada na propriedade privada é o meio mais eficaz de alcançar esse fim. Curiosamente, Mises chegou à mesma conclusão por meio da análise que Moisés chegou por revelação – a saber, que os seres humanos prosperam mais ao respeitar a propriedade privada.)

Alguns indivíduos criaram o conceito de “socialismo cristão”, baseado em sofismas. Eles citam versículos da Bíblia, como a declaração de Jesus no Sermão da Montanha para dar a capa a quem roubou o manto, ou a passagem em Lucas onde o rico Lázaro sofre na vida após a morte por não ter compartilhado sua riqueza com os pobres. É verdade que Jesus advertiu repetidamente contra o apego excessivo aos confortos materiais e exortou à caridade para com os outros.

Note-se, porém, que os seres humanos deveriam ser sujeitos à sua própria consciência sobre quanto acumular de riqueza, e não aos ditames de outros humanos. Por exemplo, quando um homem perguntou a Jesus o que precisava fazer para herdar a vida eterna, Jesus lhe disse para dar toda a sua riqueza aos pobres. Quando o homem se recusou, Jesus o deixou partir em paz. Jesus essencialmente lhe ofereceu um contrato voluntário e respeitou o direito do homem de não aceitá-lo (ver Marcos 10:17-23).

Da mesma forma, quando outro homem pediu que Jesus dissesse a seu irmão para dividir a herança com ele, Jesus recusou, dizendo: "Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?" (Lucas 12:14). Se o Filho de Deus (ou, se preferir, o homem mais amoroso e moral que já viveu) não negaria a alguém seus direitos de propriedade, quem somos nós para fazê-lo?

Muitos cristãos autodeclarados erram ao abordar a questão da ajuda aos pobres. Eles afirmam que os cristãos devem apoiar programas governamentais, pelos quais os cidadãos contribuintes são compelidos por lei a sustentar os menos favorecidos. Novamente, Jesus certamente aprovaria ajudar os pobres, mas o fim não justifica os meios. Por mais que se busque, não há versículo na Bíblia que diga que o caminho para o céu seja fazer com que outras pessoas realizem boas obras. Os atos de caridade devem ser feitos voluntariamente, por um impulso interno de amor e generosidade, e não em resposta a compulsões externas, como a coerção estatal por meio de multas ou prisão para arrecadar impostos destinados a programas de assistência social.

Jesus ofereceu o modelo de caridade cristã na parábola do bom samaritano (Lucas 10:30-37). Ao encontrar um homem gravemente ferido por assaltantes, o samaritano cuidou pessoalmente de suas feridas e gastou seu próprio dinheiro para garantir comida e abrigo para a vítima. Quando precisou partir para cumprir outros compromissos, prometeu pagar ao estalajadeiro para continuar cuidando do homem.

Assim, Jesus ilustrou as duas formas de caridade cristã: primeiro, ajuda pessoal e direta; segundo, ajuda indireta, ao doar para aqueles que têm tempo e habilidades para assistir os necessitados quando não podemos fazê-lo diretamente.

Vamos a um experimento mental: imagine que o samaritano, ao avistar o homem ferido, tivesse arrecadado os fundos que gastou posteriormente impondo um pedágio aos transeuntes daquela estrada – um pedágio que eles teriam de pagar se não quisessem levar uma bastonada na cabeça. O homem necessitado ainda teria recebido a ajuda de que tanto precisava, mas ainda assim consideraríamos o samaritano um exemplo de virtude e caridade cristã? É genuína a caridade quando se é generoso com o dinheiro dos outros? É caridoso ajudar alguns sob ameaça de prejudicar outros?

Este é o terreno moral obscuro no qual muitos cristãos se perdem em nome da “justiça social” ou do evangelho social. O desejo de ajudar os necessitados é louvável, mas os meios empregados por defensores da “justiça social” não o são. Eles enfraquecem um princípio bíblico ao pedir que o governo redistribua a riqueza para os pobres, os doentes, as viúvas. O governo necessariamente introduz o fator adicional da coerção, pois governo é força organizada. Embora seja cristão ser caridoso, Jesus nunca misturou caridade com compulsão, nem ensinou seus seguidores a recorrer à força.

Para o cristão, a propriedade privada é um dos pilares centrais da moralidade social dirigida por Deus. Para o economista, a propriedade privada oferece a máxima utilidade na promoção da prosperidade social. Nesse sentido crucial, Bíblia e economia não entram em conflito, mas se harmonizam.


Mark Hendrickson leciona Economia e Empreendedorismo no Grove City College (EUA) e é pesquisador em Políticas Econômicas e Sociais no Center for Vision & Values.

 

*Este artigo foi publicado no The Daily Economy e está disponível em: https://thedailyeconomy.org/article/intersections-between-the-bible-and-economics/

 


segunda-feira, 2 de junho de 2025

O progresso do Espiritismo requer método


 O progresso do Espiritismo requer método

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 45, juni/2025, p. 8-9

 

A busca pelo conhecimento, em qualquer campo legítimo do saber, deve ser pautada por critérios racionais, éticos e metodológicos que possibilitem distinguir entre o que possui valor universal e o que expressa apenas opiniões particulares. No contexto do Espiritismo, codificado por Allan Kardec, esse princípio se manifesta de forma particularmente clara no chamado "controle universal do ensino dos Espíritos".

Longe de ser uma limitação dogmática ou uma recusa ao progresso das ideias, esse critério se apresenta como um filtro de segurança doutrinária frente ao caráter subjetivo e por vezes contraditório das comunicações mediúnicas presentes em mensagens e romances de fonte única. Kardec, lúcido quanto à natureza falível dos médiuns e à diversidade moral e intelectual dos Espíritos comunicantes, concebeu esse método como forma de garantir que apenas os ensinamentos oriundos de múltiplas fontes concordantes e independentes, obtidos em diferentes lugares e por médiuns diversos, fossem incorporados à estrutura doutrinária.

É, portanto, um erro epistemológico grave interpretar tal critério como uma negação da evolução ou uma espécie de conservadorismo religioso. Pelo contrário, trata-se de uma exigência de maturidade crítica, um exercício de vigilância racional frente à exaltação e ao entusiasmo acrítico com qualquer novidade que se diga “revelação espiritual” advinda de médiuns e Espíritos de estimação.

Kardec reconhecia plenamente o caráter progressivo do conhecimento, inclusive declarando que o Espiritismo caminharia ao lado da Ciência, ajustando seus postulados caso fossem contrariados por descobertas sólidas e bem comprovadas. No entanto, esse progresso não se dá por meio de afirmações isoladas ou visões pessoais, mas por meio da convergência de inteligências e da crítica livre e metódica, exatamente como ocorre no progresso científico legítimo.

Na história do movimento espírita, não é raro encontrar adeptos mais exaltados que, em nome de um suposto "Espiritismo ampliado" ou “pós-kardecismo”, promovem a aceitação cega e apaixonada de mensagens mediúnicas oriundas de fonte única, calcados no apelo à autoridade de quem assina ou de quem as intermediam. Trata-se de um desvio metodológico que ignora os fundamentos racionais, substituindo o rigor do controle universal por uma fé cega e personalista, que tende a instaurar novos dogmatismos sob a aparência de atualização doutrinária.

A crítica a esse tipo de prática não configura uma recusa ao novo, mas sim a exigência legítima de critérios confiáveis para que qualquer novo ensinamento se mostre compatível com os princípios do Espiritismo.

Aceitar indiscriminadamente qualquer mensagem apenas por seu conteúdo emotivo ou pela fama atribuída ao Espírito comunicante, sem que ela seja confrontada com a razão, com o bom senso e com a concordância universal, é retornar ao obscurantismo religioso que o Espiritismo veio justamente superar. Não se trata de um conflito entre tradição e inovação, mas entre responsabilidade epistemológica e credulidade.

A Doutrina Espírita, por sua própria natureza, convida ao exame, à reflexão e à constante depuração de seus conteúdos, desde que o método adotado respeite a postura analítica que está na base de sua construção.

Portanto, reconhecer o valor do controle universal do ensino dos Espíritos não é apegar-se a um passado imutável, mas preservar a coerência e a legitimidade do processo evolutivo do conhecimento espírita. Negar esse princípio é abrir as portas à desorganização doutrinária, ao personalismo místico e ao enfraquecimento da autoridade racional que diferencia o Espiritismo das crenças baseadas na fé cega.

Certamente é possível e esperado que novas informações venham enriquecer o patrimônio do Espiritismo, desde que se submetam a critérios metodológicos de validação objetiva. A razão e a comprovação pelos fatos, e não a autoridade isolada, devem ser sempre o maior critério para julgar o que merece ou não ser incorporado ao edifício doutrinário.

 

sábado, 31 de maio de 2025

A universalidade do Espiritismo frente às abordagens decoloniais

A universalidade do Espiritismo frente às abordagens decoloniais

 

Marco Milani

 

Texto publicado no Portal Espiritismo com Kardec - Revista Harmonia – maio/2025*

 

O crescimento da influência do pensamento decolonial em algumas áreas das ciências humanas tem levado a tentativas recentes de aplicar suas categorias críticas ao Espiritismo, buscando reinterpretar a doutrina codificada por Allan Kardec a partir de paradigmas associados à descolonização do saber. Essa aproximação, embora por vezes bem-intencionada, revela uma profunda incompreensão epistemológica sobre a natureza do Espiritismo, tanto em seus fundamentos quanto em sua proposta metodológica.

Enquanto o pensamento decolonial se estrutura como uma crítica à hegemonia do conhecimento ocidental e às relações de poder que se expressam nas formas de produção e validação do saber, o Espiritismo nasce, ao contrário, como um projeto de emancipação racional do pensamento religioso e místico, fundado em princípios universais e em método experimental.

A proposta central da teoria decolonial, como a própria denominação sugere, é questionar a colonialidade do poder, do saber e do ser, buscando valorizar epistemologias “do Sul”, saberes oriundos de tradições não ocidentais, e formas culturais historicamente marginalizadas (Mignolo & Walsh, 2018). No entanto, ao se tentar aplicar essa matriz crítica ao Espiritismo, incorre-se em um equívoco fundamental: confundir o universalismo da razão com etnocentrismo europeu.

O Espiritismo, conforme delineado por Kardec, não é um sistema ideológico de domínio cultural, mas uma filosofia de base científica que busca compreender as leis universais da vida espiritual a partir da observação dos fenômenos e do exame racional das comunicações dos espíritos. Não se trata, portanto, de um saber imposto pelo Ocidente sobre outras culturas, mas de um esforço para construir um conhecimento verificável, passível de ser reproduzido e criticado por qualquer pessoa, em qualquer lugar, independentemente de sua origem cultural. Como afirma Kardec (2008), "o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos e de suas relações com o mundo corporal", e sua validade independe do local de onde se manifeste.

Kardec, sendo francês e atuando no século XIX, estava obviamente imerso na cultura europeia e servia-se da linguagem, códigos e valores típicos de seu tempo e espaço para a expressão das ideias que organizava. No entanto, isso não compromete a proposta universal do ensino dos Espíritos, os quais, por sua própria natureza, não estão confinados nem geograficamente nem culturalmente.

A doutrina espírita parte do princípio de que a verdade espiritual é acessível a todos e não depende da tradição particular de um povo ou de um continente, mas sim da capacidade de análise racional e moral de qualquer ser humano. A cultura de Kardec serviu como veículo para a sistematização, mas o conteúdo, oriundo dos Espíritos, transcende os limites históricos e geográficos de sua codificação.

A tentativa de reinterpretar o Espiritismo sob uma ótica decolonial frequentemente se apoia em três premissas equivocadas: a primeira é a suposição de que a doutrina representaria uma apropriação eurocêntrica de saberes espirituais ancestrais, apagando sua diversidade; a segunda, que haveria uma homogeneização da experiência espiritual em moldes racionais e cientificistas; e a terceira, que o Espiritismo teria se alinhado historicamente a projetos de poder colonial, direta ou indiretamente. Autores como Pereira (2023) têm sugerido que o Espiritismo, ao sistematizar saberes espirituais em linguagem científica ocidental, teria silenciado vozes não europeias e espiritualidades autóctones. Contudo, nenhuma dessas ideias se sustenta à luz de uma análise objetiva das fontes primárias da doutrina. Kardec deixou claro, em diversas ocasiões, que seu papel foi o de organizador e sistematizador de um conjunto de manifestações espirituais que ocorriam em diferentes países, sob variadas formas. Ele não reivindicou para si a autoria das ideias, mas o mérito de aplicar um critério racional e metódico para discernir, entre as mensagens mediúnicas, aquelas coerentes com os princípios universais de moral, lógica e progresso. A autoridade da doutrina está, justamente, no método utilizado para a sua elaboração (Kardec, 2003).

O Espiritismo, ademais, jamais se propôs como instrumento de homogeneização cultural. Pelo contrário, ele reconhece a pluralidade de pensamentos, a diversidade das experiências espirituais e a dinamicidade das sociedades. A moral espírita, embora baseada em princípios universais como justiça, amor e caridade, é aplicada de modo relativo ao contexto cultural, histórico e evolutivo de cada povo. Kardec não negou o valor dos saberes tradicionais, mas defendeu que o critério para validar qualquer conhecimento deve ser sua coerência com a razão, a experiência e a moral universal.

A intenção de opor a racionalidade à ancestralidade, como fazem alguns autores decoloniais, constitui uma falsa dicotomia, pois o Espiritismo não exclui, como mencionado, os saberes ancestrais, mas os examina sob um prisma crítico, livre de dogmas e imposições. Como observa Kardec (1996), “todo ensino metódico deve partir do conhecido para o desconhecido”, reforçando o respeito às ideias particulares.

A suposta associação do Espiritismo com o colonialismo carece de qualquer base histórica concreta. Ao contrário, muitos dos primeiros espiritistas foram ativistas da abolição da escravatura, defensores da educação popular, do direito das mulheres e da liberdade de expressão. O Espiritismo se propagou no Brasil, por exemplo, entre intelectuais e setores que viam na doutrina uma forma de resistência ao clericalismo e ao obscurantismo. A doutrina espírita não se fez cúmplice do projeto colonial, mas antes ofereceu uma via alternativa de emancipação moral e intelectual baseada na liberdade de pensamento, na responsabilidade individual e na perfectibilidade do ser.

Além disso, aplicar categorias contemporâneas como a de colonialidade do saber ao contexto de formulação do Espiritismo no século XIX incorre em anacronismo metodológico, desconsiderando a especificidade histórica e o projeto científico que movia Kardec, conforme salientado por Koselleck (2006) ao advertir contra a projeção de conceitos modernos sobre realidades passadas.

A intenção de aplicar categorias decoloniais ao Espiritismo fracassa em respeitar a singularidade epistemológica e histórica da doutrina. Ao imputar-lhe um suposto eurocentrismo, ignora-se que a universalidade proposta por Kardec não é imposição cultural, mas busca de leis gerais que possam ser compreendidas e verificadas por todos. Reduzir o Espiritismo a um produto da colonialidade é negar sua natureza científica, sua proposta moral universal e seu compromisso com a liberdade de consciência. Assim, em vez de reinterpretá-lo sob categorias exógenas, é mais coerente estudá-lo com base em suas próprias premissas, em diálogo crítico, mas respeitoso, com sua proposta original de conhecimento, moralidade e transformação espiritual.

 

Referências

 

Kardec, A. (2003). O evangelho segundo o Espiritismo. Editora LAKE.

Kardec, A. (1996). O livro dos médiuns. Editora EME.

Kardec, A. (2008). O que é o Espiritismo. Federação Espírita Brasileira.

Koselleck, R. (2006). Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Contraponto/EdUERJ.

Mignolo, W., & Walsh, C. (2018). On decoloniality: Concepts, analytics, praxis. Duke University Press.

Pereira A. S. (2023). Notas para um Espiritismo Decolonial. FAK. Desponível em < https://www.faknet.org.br/wp-content/uploads/2023/01/Notas-para-um-Espiritismo-Decolonial_Versao-Final.pdf>. Acessado em 04/05/25.

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Vídeo relacionado: https://youtu.be/BAk1OfY3Ym0?si=Rcz48ezKmkH0rWTO

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*Fonte:  https://www.comkardec.net.br/a-universalidade-do-espiritismo-frente-as-abordagens-decoloniais-por-marco-milani/

 

 

sábado, 17 de maio de 2025

Generalizações indevidas de fatos científicos


 Generalizações indevidas de fatos científicos


Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.206, mai/jun 2025, p.34-35

  

A ciência busca compreender os fenômenos por meio de investigações que respeitam critérios rigorosos de validade e confiabilidade. Contudo, o acesso facilitado à informação e a crescente demanda por respostas imediatas têm contribuído para interpretações simplificadas e, muitas vezes, equivocadas dos resultados de pesquisas. Quando os achados científicos são utilizados fora de seu contexto original, promovem-se generalizações que, desprovidas do necessário respaldo metodológico, acabam legitimando convicções pessoais e interesses particulares, comprometendo a integridade do discurso científico.

A tendência de resumir dados complexos em mensagens de fácil assimilação e com forte apelo pela atenção tem raízes na cultura contemporânea, onde a velocidade da informação frequentemente se sobrepõe à qualidade do conteúdo divulgado. A redução dos resultados de estudos a afirmações unidimensionais desvirtua o caráter investigativo da ciência e pode levar a interpretações equivocadas, especialmente quando conclusões de pesquisas observacionais são extraídas sem a devida consideração das variáveis intervenientes e limitações metodológicas. Essa prática, difundida em diversas áreas do conhecimento, desde a saúde até as ciências sociais, ratifica ideias preestabelecidas e fortalece a polarização no debate público, dificultando a construção de consensos baseados em evidências.

No meio espírita, esse fenômeno também ocorre, especialmente quando descobertas científicas são divulgadas de forma parcial para validar crenças ou fortalecer a identidade do movimento. Um exemplo clássico foi a repercussão da interessante dissertação de mestrado[1] de Ricardo Monezi Julião de Oliveira, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 2003, que investigou os efeitos da imposição de mãos em camundongos e concluiu que há uma alteração fisiológica decorrente desse ato e que há que se estudar porque ela ocorre. Embora o estudo tenha indicado possíveis benefícios terapêuticos nos sistemas hematológico e fisiológico dos animais, ele não analisou especificamente o passe espírita, nem tinha como objetivo comprovar a eficácia dessa prática no contexto doutrinário. No entanto, na ocasião, diversos grupos espíritas alardearam equivocadamente que a USP havia comprovado cientificamente os efeitos do passe espírita, uma extrapolação indevida que desconsiderava as limitações e o escopo real da pesquisa. Não é pelo fato de um trabalho de pesquisa ser aprovado numa banca de mestrado ou doutorado que a instituição promotora atesta a validade e veracidade do conteúdo do respectivo estudo. A única coisa que a Instituição de Ensino Superior se responsabiliza é o registro público das milhares de defesas que ocorrem regularmente em suas dependências. Certamente a pesquisa de Ricardo Oliveira desperta a atenção de pesquisadores espíritas e deve ser analisada, mas há uma grande distância entre o objeto estudado e as notícias sensacionalistas a respeito.

Recentemente, uma promissora pesquisa liderada pelo médico Alexander Moreira-Almeida analisou diferenças genéticas em supostos médiuns e não-médiuns e foi publicada na Revista Brasileira de Psiquiatria[2]. Trata-se de valioso trabalho sugerindo que podem existir aspectos biológicos associados àqueles que alegam participar de fenômenos mediúnicos. Contudo, a pesquisa não afirma que a mediunidade é determinada geneticamente, nem exclui a influência de outros fatores materiais nos resultados. Mesmo assim, diversos meios de comunicação espíritas divulgaram que "a ciência comprovou que a mediunidade depende de uma condição orgânica", em associação direta com o conhecimento doutrinário espírita, criando uma narrativa simplista com o próprio rigor metodológico adotado no estudo.

É indispensável que se mantenha a clareza na exposição dos limites das investigações, o reconhecimento das incertezas inerentes ao processo científico e a utilização de uma linguagem que preserve a complexidade dos dados.

Corroborando com a prudência necessária, o assessor de ciência e pesquisa da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, Alexandre Fontes da Fonseca, discorre sobre a mesma situação e destaca que “esse trabalho não confirma nenhuma especificidade ou especialidade da glândula pineal com relação à mediunidade”, que é outro assunto bastante discutido em parte do movimento espírita.[3]

A educação científica, tanto em ambientes acadêmicos quanto em espaços menos familiarizados com as questões metodológicas da produção do conhecimento, desempenha um papel crucial na formação de uma sociedade crítica e capaz de discernir entre uma ciência robusta e discursos apaixonados pseudocientíficos. Assim, o compromisso com a transparência, a ética e a rigorosidade dos métodos utilizados devem nortear não só a produção científica, mas também sua divulgação, a fim de preservar a credibilidade da ciência e promover um debate público esclarecido, contribuindo para a construção de um ambiente de conhecimento sólido e transformador.

 



[1] Oliveira, R.M.J. (2003). “Avaliação de efeitos da prática de impostação de mãos sobre os sistemas hematológico e imunológico de camundongos machos”. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5160/tde-23092014-145211/pt-br.php

[2] Gattaz, W. F.  et al. (2025). “Candidate Genes Related to Spiritual Mediumship: A Whole Exome Sequencing Analysis of Highly Gifted Mediums”. Disponível em: https://www.bjp.org.br/export-pdf/3591/bjp3958.pdf

 [3] Fonseca, A. F. (2025) “Genes da mediunidade: cautela na forma como divulgar”. Revista Digital Dirigente Espírita. USE. Ed. 205. mar/abr, p.24-25.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Kardec e o espiritualismo americano

 

Kardec e o espiritualismo americano

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.206, mai/jun 2025, p.8-9

 

O Espiritismo teve sua origem num contexto histórico em que o interesse por fenômenos mediúnicos já se espalhava por diversos países, sobretudo após o surgimento do chamado espiritualismo moderno nos Estados Unidos. O ponto de partida desse movimento foi o célebre episódio das irmãs Fox, em Hydesville, no Estado de Nova York, em 1848, e rapidamente popularizou sessões mediúnicas por diversas regiões do país. No entanto, Allan Kardec, ao examinar o fenômeno com rigor filosófico e método científico, reconheceu os méritos iniciais do movimento americano, mas também apontou com clareza suas limitações e diferenças fundamentais em relação ao Espiritismo.

Em seu artigo intitulado “A escola espírita americana”, publicado na Revista Espírita em maio de 1864, Kardec analisou diretamente o espiritualismo anglo-saxão, com atenção às suas características e implicações. Ele destacou que os fatos observados nos Estados Unidos desempenharam um papel importante ao provar, de modo público e ostensivo, a existência de uma inteligência além da matéria. No entanto, ele observou que no espiritualismo americano a atenção aos fenômenos predominou, sem se ocupar da compreensão racional das causas nem da dedução de suas consequências morais.

Uma das diferenças mais evidentes apontadas por Kardec é que, enquanto o espiritualismo moderno gerou espetáculos e abordagens superficiais, o Espiritismo nasceu como uma doutrina com estrutura filosófica e metodológica próprias. A mediunidade, para o Espiritismo, não foi objeto de adoração nem de exibição, mas uma ferramenta para a aquisição de conhecimento e a elevação moral do ser humano. Kardec estruturou sua investigação a partir de princípios de controle universal, coerência lógica e finalidade educativa, elementos ausentes nas práticas mais comuns do espiritualismo popular americano.

Outra diferença significativa, segundo Kardec, centrou-se no tratamento dado à reencarnação. Enquanto o espiritualismo anglo-saxão, bastante enraizado em tradições protestantes, rejeitava ou ignorava essa ideia, o Espiritismo a colocava como um dos pilares fundamentais da evolução do Espírito. Para Kardec, a resistência à reencarnação por parte dos norte-americanos e ingleses estava ligada a preconceitos sociais e a uma visão teológica restritiva. Ele destacou que, nas comunicações mediúnicas recebidas em diversos locais europeus, esse princípio era tratado de forma mais aberta e coerente, o que indicava um meio cultural mais propício e maduro para absorver conceitos mais avançados sobre justiça divina, progresso, liberdade e responsabilidade individual.

Kardec criticou, ainda, a tendência do espiritualismo americano de absorver conceitos esotéricos e místicos, observando com cautela a promoção dos fenômenos espirituais sem o devido discernimento doutrinário. Ele defendeu que a comunicação com os Espíritos não podia ser vista como fonte de oráculos infalíveis ou conselhos terrenos, mas como um meio de aprendizado moral e racional sobre a realidade espiritual. Dessa maneira, o Espiritismo não se trata de uma simples continuação do que ocorria na América do Norte.

Sendo uma doutrina autônoma, com objetivos distintos, o Espiritismo não apenas comprova a existência da alma, mas também esclarece sobre as leis que regem sua existência antes, durante e após a encarnação. Mais do que fenômenos, o Espiritismo apresenta uma visão integrada e progressiva da vida, que une ciência, filosofia e moral em torno da imortalidade da alma e da evolução espiritual.

A originalidade do Espiritismo está, portanto, na sua proposta de transformação do ser humano a partir da razão esclarecida e da moral vivida. Ao sistematizar os ensinamentos dos Espíritos, Kardec não apenas racionalizou o invisível, como também ofereceu à humanidade uma chave de leitura para o sofrimento, a justiça, a liberdade e o amor, sem dogmatismo, sem hierarquias sacerdotais e sem mistificações. Nesse sentido, o Espiritismo é um ponto de superação do espiritualismo moderno, cuja força está não na autoridade humana, mas na coerência das ideias e na universalidade do ensino dos Espíritos.

As diferenças entre o espiritualismo anglo-saxão e o Espiritismo não apenas persistiram ao longo do tempo, mas se consolidaram em razão de suas bases metodológicas antagônicas. Enquanto o primeiro manteve-se frequentemente vinculado a uma abordagem mais intuitiva e menos crítica, o segundo firmou-se sobre o princípio da fé raciocinada, que rejeita a aceitação passiva de crendices em favor de uma compreensão lógica e experimental dos fenômenos espirituais. Essa distinção fundamental explica por que o Espiritismo logrou desenvolver uma doutrina coerente, enquanto o espiritualismo americano, em muitos aspectos, fragmentou-se em correntes esotéricas e práticas desconexas.

A fé raciocinada propõe uma espiritualidade crítica, onde comunicações mediúnicas e princípios doutrinários devem ser analisados pela razão e moral, evitando os excessos do misticismo e a banalização dos fenômenos espirituais. No entanto, em contextos marcados pelo sincretismo religioso e pouca formação analítica, esse ideal enfrenta desafios, representados por práticas sem fundamentação doutrinária ou científica, bem como a valorização exacerbada de opiniões e argumentos de autoridade de médiuns, Espíritos ou obras romanceadas, reproduzindo os mesmos problemas que Kardec criticou no espiritualismo americano do século XIX.

Atualmente, para preservar a sua essência, o movimento espírita necessita reafirmar, efetivamente, seu compromisso com a razão esclarecida, caminho seguro para evitar distorções e cumprir seu papel educativo e transformador.


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Além do carisma: reflexões sobre o fim de uma era de grandes médiuns

 

Além do carisma: reflexões sobre o fim de uma era de grandes médiuns

 

Marco Milani

 

A desencarnação de Divaldo Pereira Franco, ocorrida neste 13 de maio de 2025, representa um marco histórico ao movimento espírita brasileiro e mundial. Mais do que o encerramento de uma trajetória pessoal notável, testemunhamos o fim de uma era caracterizada por médiuns cuja projeção pública e longevidade conferiram ao Espiritismo uma visibilidade e uma respeitabilidade únicas, embora não isentas de tensões doutrinárias e desafios interpretativos.

Divaldo foi, sem dúvida, um dos grandes nomes do Espiritismo do século XX e início do XXI. Sua obra social à frente da Mansão do Caminho, sua incansável atividade como orador e divulgador do pensamento espírita, e a vasta produção mediúnica atribuída a diversos Espíritos, notadamente a figura de Joanna de Ângelis, colocaram-no numa posição de liderança moral e intelectual junto a multidões. Por mais de sete décadas, ele foi presença constante em tribunas, congressos, emissoras de rádio, televisão e, mais recentemente, nas plataformas digitais, difundindo mensagens de espiritualidade, ética e consolo.

No entanto, a relevância de sua desencarnação transcende sua figura. Ela encerra simbolicamente um ciclo do movimento espírita marcado por personalidades carismáticas, por médiuns de projeção quase institucional, que acabaram, de fato, se tornando referências interpretativas da Doutrina, muitas vezes ocupando no imaginário coletivo um lugar que, conforme advertia Allan Kardec, jamais deveria substituir o da razão e da universalidade dos ensinos dos Espíritos. É o ciclo de pessoas como Chico Xavier, Yvonne do Amaral Pereira, Suely Caldas Schubert, e agora, Divaldo Franco, representantes de uma geração que formou o imaginário espiritual de milhões, com todas as virtudes e ambivalências que essa influência implica. Todos, ainda que falíveis como qualquer ser humano, contribuíram decisivamente para a divulgação do Espiritismo conforme suas capacidades e limitações.

A morte de Divaldo convida ao exercício da gratidão e reconhecimento sincero por sua dedicação constante à causa do bem, por sua postura pública digna, por sua ação filantrópica concreta e transformadora.

Diante do fim de uma era de grandes médiuns, o Espiritismo tem a responsabilidade de buscar sua vocação original: a de ser uma filosofia espiritualista baseada na razão, na observação e no exame coletivo e metódico das comunicações mediúnicas obtidas em toda parte e por figuras anônimas. É hora do movimento espírita revalorizar a obra de Kardec não como objeto de adoração, mas como projeto filosófico em desenvolvimento, que exige estudo sério, debate aberto e compromisso com a coerência entre forma e conteúdo. Talvez a era das grandes figuras carismáticas ceda lugar à era da coletividade lúcida, da pesquisa espírita comprometida com a universalidade e da educação moral baseada no esclarecimento, não na autoridade de figuras isoladas.

O retorno de Divaldo ao mundo espiritual, com toda a serenidade que certamente acompanhará um Espírito de tamanha entrega ao bem, deixa um legado que precisa ser respeitado, mas não petrificado. O verdadeiro tributo que se pode prestar a ele não está em santificá-lo, mas em compreender que sua trajetória, com méritos e limites, pertence a uma etapa do Espiritismo que cumpriu seu papel e agora cede lugar a novos desafios. A maturidade do movimento se mede pela capacidade de honrar seus nomes sem os canonizar, de acolher a emoção da partida sem se afastar da razão crítica.

Que o próximo período seja marcado, como propôs Kardec, pela razão aliada à moral, centrado na educação do Espírito como processo contínuo de emancipação interior. Enquanto isso, despedimo-nos do caro Divaldo desejando um excelente retorno à Pátria Espiritual.

 


quinta-feira, 1 de maio de 2025

Autoengano doutrinário

 

Autoengano doutrinário

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 44, mai/2025, p. 9-10

 

O Espiritismo, enquanto corpo teórico-doutrinário estruturado por Allan Kardec, notabilizou-se por propor o exercício constante da razão como fundamento indispensável para a adesão às suas ideias e princípios, caracterizando-se a fé raciocinada. Essa proposta, inovadora à época e ainda hoje profundamente desafiadora, delineia uma clara oposição ao tradicional dogmatismo religioso cego, que dispensa explicações ou comprovações em favor de explicações absolutas e inquestionáveis. No entanto, paradoxalmente, muitos adeptos do Espiritismo têm-se comportado exatamente como seguidores passivos, dirigidos não pelo discernimento lógico ou pelo exame racional dos fatos, mas pela autoridade de líderes carismáticos e místicos.

Essa contradição é especialmente intrigante quando se observa que, apesar de adotarem um comportamento típico das religiões tradicionais, as quais são caracterizadas pela aceitação acrítica das orientações dadas por figuras de destaque, tais adeptos frequentemente acreditam estar distantes desse padrão justamente por se intitularem espíritas. Há nesse fenômeno uma espécie de autoengano doutrinário, em que indivíduos se convencem de que, pelo simples fato de professarem uma doutrina que prega explicitamente a necessidade da análise crítica e racional de qualquer informação ou fenômeno, seja mediúnico ou não, estariam automaticamente imunizados contra formas de crença acrítica.

Contudo, a realidade tem mostrado que a identificação formal com os princípios espíritas não é garantia suficiente para assegurar uma prática verdadeiramente fundamentada na razão.

Esse fenômeno parece derivar, em parte, do comportamento humano em busca do conforto e segurança emocional, elementos frequentemente oferecidos pelos líderes dotados de carisma e aparente segurança espiritual.

Diante das dificuldades da vida cotidiana e das incertezas existenciais, torna-se tentador para muitos adeptos buscar refúgio em figuras religiosas capazes de oferecer soluções imediatas, reconfortantes e isentas de complexidade intelectual. O resultado disso é a formação de núcleos espíritas que se assemelham mais a comunidades religiosas tradicionais, em que a autoridade do dirigente, seja médium, palestrante ou escritor de renome, torna-se um elemento fundamental e raramente questionado.

Nesse contexto, líderes carismáticos frequentemente assumem papéis semelhantes aos de pastores em congregações religiosas convencionais, influenciando decisivamente o pensamento e o comportamento dos adeptos sob sua orientação.

O problema essencial não está, naturalmente, na existência de líderes ou no exercício legítimo da liderança espiritual, mas sim na abdicação consciente ou inconsciente do dever doutrinário de pensar e refletir individualmente. A consequência dessa abdicação é a cristalização de uma fé cega, muito semelhante àquela criticada veementemente por Kardec, que enfraquece o elemento distintivo do Espiritismo, qual seja, a liberdade e a responsabilidade de questionar, analisar e compreender antes de aceitar qualquer ideia como verdadeira.

Esse quadro tem levado muitos grupos espíritas a afastarem-se gradualmente da proposta original de Kardec, com crenças superficiais, voltada sobretudo para atender às demandas imediatas e quase lúdicas dos frequentadores. Nessas circunstâncias, frequentemente se valorizam discursos de autoajuda, relegando-se o estudo sério e metódico do Espiritismo a um plano secundário. Romances mediúnicos, relatos fantásticos e experiências mediúnicas não submetidas ao controle universal proposto por Kardec ganham espaço central nas reuniões, contribuindo para o aumento do fascínio por líderes capazes de fornecer respostas envolventes e, sobretudo, emocionalmente satisfatórias.

Perante esse cenário, torna-se necessário recordar constantemente aos adeptos espíritas a importância fundamental da fé raciocinada. O Espiritismo, como proposta filosófica, requer um permanente exercício intelectual de análise crítica, um esforço individual contínuo para compreender profundamente suas bases conceituais e para submeter todas as manifestações mediúnicas e conteúdos divulgados ao crivo da lógica, da coerência e da universalidade.

Tal atitude demanda maturidade intelectual e espiritual, exigindo que cada adepto assuma a responsabilidade plena por sua própria compreensão doutrinária, evitando a comodidade de terceirizar suas convicções.

Certamente, a existência de líderes carismáticos e místicos no movimento espírita não seria um problema se suas ações e discursos fossem consistentemente submetidos ao necessário exame racional proposto por Kardec.

O verdadeiro desafio reside em estimular uma cultura de estudo sério e constante, capaz de libertar os adeptos espíritas da postura passiva de dóceis ovelhas e levá-los a assumir a posição ativa, analítica e esclarecida que a doutrina promove. Somente através desse compromisso consciente com a razão é possível preservar a essência do Espiritismo, garantindo que seu diferencial mais significativo, a fé raciocinada, não seja debilitada por narrativas sedutoras de crendices e fantasias.