segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Kardec apontado como um representante deísta

 



Kardec apontado como um representante deísta

 

Marco Milani


Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 38, novembro de 2024, p. 8-9


Maurice Lachâtre, um intelectual francês e amigo de longa data do Professor Rivail, foi um ativo personagem envolvido na defesa da liberdade de expressão e em críticas contundentes à intransigência religiosa. Sua destacada atuação na imprensa fez com que atraísse a ira de políticos e sacerdotes variados, culminando em multas e processos judiciais. Ao estabelecer-se na Espanha para fugir de uma ordem de prisão, Lachâtre participou de um emblemático episódio na história do Espiritismo. Foi ele quem encomendou as obras espíritas de Allan Kardec, que acabaram sendo confiscadas e queimadas em praça pública por ordem do Bispo de Barcelona, em 1861. Tal ato com resquícios inquisitoriais ficou conhecido como Auto de Fé de Barcelona, e acabou por ajudar a divulgar o Espiritismo em terras espanholas.

Em 1865, Lachâtre publicou na França o Novo Dicionário Universal, o qual fazia algumas menções ao Espiritismo e a Allan Kardec. Em uma delas, no verbete “Deísmo”, Kardec foi apontado como o líder da Doutrina Espírita e representante do Deísmo na França. Em tradução livre, o texto integral do referido verbete é o seguinte:

 

“DEÍSMO, substantivo masculino (do latim Deus, Deus). Doutrina que admite a existência de Deus, mas rejeita a revelação e todas as suas consequências. Os adeptos do deísmo associam essa crença à religião natural. O culto dos teofilantropos era um deísmo. Distingue-se o deísmo do teísmo, sendo o primeiro oposto à religião revelada e o segundo oposto ao ateísmo. O embrião do deísmo mais puro foi encontrado na França desde o século XVII, especialmente em Bayle, mas é principalmente na Inglaterra, nos escritos de Bolingbroke, Coilins, Tindall, Toland, Shaftesbury, Woolston e Priestley, que ele se manifestou abertamente, sendo professado por todos aqueles que se autodenominavam livres pensadores. Voltaire, J. J. Rousseau e seus numerosos discípulos difundiram o deísmo na França no último século, e nos dias atuais, Allan Kardec, o líder da doutrina espírita, continua a obra desses grandes filósofos.” [1]

 

Como simpatizante do Espiritismo, Lachâtre conhecia as obras doutrinárias e, como amigo pessoal, a postura íntegra e intelectualmente aguçada de Allan Kardec. Ao citá-lo como representante do pensamento deísta na França, posteriormente à Voltaire e Rousseau, Lachâtre enfatiza o contraste que as ideias espíritas adotavam frente ao Teísmo das igrejas tradicionais.

Por sua vez, Kardec dedica um elogioso artigo na edição de janeiro/1866 da Revista Espírita sobre o Novo Dicionário Universal. No texto, Kardec afirma que havia sido publicada importante obra de interesse à Doutrina Espírita no mais alto grau e que:

 

 “Todos os termos especiais do vocabulário espírita se acham nesse vasto repertório, não com uma simples definição, mas com todos os desenvolvimentos que comportam, de sorte que seu conjunto formará um verdadeiro tratado do Espiritismo”. [2]

 

Especificamente sobre o conceito de Deísmo, Allan Kardec o contrastava com o Teísmo e o Panteísmo, porém o subdividiu em duas correntes: O Deísmo Independente e o Providencialista.[3]

Os adeptos da primeira corrente, os deístas independentes, são aqueles que creem em Deus, criador das leis gerais que regem perfeitamente o Universo, porém supõem que Deus não mais se ocuparia de suas criaturas.

Os deístas providencialistas, formando a segunda corrente, compartilham as mesmas noções dos deístas independentes sobre a perfeição e imutabilidade das leis naturais, porém diferenciando-se desses quanto a existência da providência divina, ou seja, Deus não estaria indiferente às suas criaturas e seria, ao mesmo tempo, transcendente e imanente no universo. A providência divina deísta, sob essa perspectiva, seria uma ação direta de Deus, em plena conformidade e sem derrogação (milagres) das leis da Natureza.

A Doutrina Espírita propõe uma concepção de Deus que não se subordina a nenhuma escola de pensamento anterior, distinguindo-se do Teísmo ao rejeitar a intervenção sobrenatural e a revelação fechada, e se distancia do Panteísmo ao afirmar a separação entre o criador e a criação. Ao mesmo tempo, aproxima-se do Deísmo providencialista ao entender que Deus, após criar o universo, continua a governá-lo de maneira justa e amorosa, sem violar suas próprias leis. Essa concepção coloca o Espiritismo em um campo único.

Em síntese, a Doutrina Espírita é uma filosofia que distingue-se de outras linhas espiritualistas no seu conjunto, com aspectos muito próximos ao Deísmo providencialista, abraçando a ideia de que o universo foi criado e não se confunde com Deus, o qual o rege por leis naturais, perfeitas e imutáveis.



[2] Ver Revista Espírita, jan/1866. O Espiritismo toma posição na filosofia e nos conhecimentos usuais.

[3] Ver Obras póstumas – 1ª parte - As cinco alternativas da humanidade.


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