Kardec apontado como um representante deísta
Marco Milani
Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 38, novembro de 2024, p. 8-9
Maurice Lachâtre, um intelectual francês e amigo de
longa data do Professor Rivail, foi um ativo personagem envolvido na defesa da
liberdade de expressão e em críticas contundentes à intransigência religiosa.
Sua destacada atuação na imprensa fez com que atraísse a ira de políticos e
sacerdotes variados, culminando em multas e processos judiciais. Ao estabelecer-se
na Espanha para fugir de uma ordem de prisão, Lachâtre participou de um
emblemático episódio na história do Espiritismo. Foi ele quem encomendou as
obras espíritas de Allan Kardec, que acabaram sendo confiscadas e queimadas em
praça pública por ordem do Bispo de Barcelona, em 1861. Tal ato com resquícios
inquisitoriais ficou conhecido como Auto de Fé de Barcelona, e acabou por
ajudar a divulgar o Espiritismo em terras espanholas.
Em 1865, Lachâtre publicou na França o Novo
Dicionário Universal, o qual fazia algumas menções ao Espiritismo e a Allan
Kardec. Em uma delas, no verbete “Deísmo”, Kardec foi apontado como o líder da
Doutrina Espírita e representante do Deísmo na França. Em tradução livre, o
texto integral do referido verbete é o seguinte:
“DEÍSMO, substantivo masculino (do latim Deus, Deus).
Doutrina que admite a existência de Deus, mas rejeita a revelação e todas as
suas consequências. Os adeptos do deísmo associam essa crença à religião
natural. O culto dos teofilantropos era um deísmo. Distingue-se o deísmo do
teísmo, sendo o primeiro oposto à religião revelada e o segundo oposto ao
ateísmo. O embrião do deísmo mais puro foi encontrado na França desde o século
XVII, especialmente em Bayle, mas é principalmente na Inglaterra, nos escritos de
Bolingbroke, Coilins, Tindall, Toland, Shaftesbury, Woolston e Priestley, que
ele se manifestou abertamente, sendo professado por todos aqueles que se
autodenominavam livres pensadores. Voltaire, J. J. Rousseau e seus numerosos
discípulos difundiram o deísmo na França no último século, e nos dias atuais,
Allan Kardec, o líder da doutrina espírita, continua a obra desses grandes
filósofos.” [1]
Como simpatizante do Espiritismo, Lachâtre conhecia
as obras doutrinárias e, como amigo pessoal, a postura íntegra e
intelectualmente aguçada de Allan Kardec. Ao citá-lo como representante do
pensamento deísta na França, posteriormente à Voltaire e Rousseau, Lachâtre
enfatiza o contraste que as ideias espíritas adotavam frente ao Teísmo das
igrejas tradicionais.
Por sua vez, Kardec dedica um elogioso artigo na
edição de janeiro/1866 da Revista Espírita sobre o Novo Dicionário Universal.
No texto, Kardec afirma que havia sido publicada importante obra de interesse à
Doutrina Espírita no mais alto grau e que:
“Todos os
termos especiais do vocabulário espírita se acham nesse vasto repertório, não
com uma simples definição, mas com todos os desenvolvimentos que comportam, de
sorte que seu conjunto formará um verdadeiro tratado do Espiritismo”. [2]
Especificamente sobre o conceito de Deísmo, Allan
Kardec o contrastava com o Teísmo e o Panteísmo, porém o subdividiu em duas
correntes: O Deísmo Independente e o Providencialista.[3]
Os adeptos da primeira corrente, os deístas
independentes, são aqueles que creem em Deus, criador das leis gerais que regem
perfeitamente o Universo, porém supõem que Deus não mais se ocuparia de suas
criaturas.
Os deístas providencialistas, formando a segunda
corrente, compartilham as mesmas noções dos deístas independentes sobre a
perfeição e imutabilidade das leis naturais, porém diferenciando-se desses quanto
a existência da providência divina, ou seja, Deus não estaria indiferente às
suas criaturas e seria, ao mesmo tempo, transcendente e imanente no universo. A
providência divina deísta, sob essa perspectiva, seria uma ação direta de Deus,
em plena conformidade e sem derrogação (milagres) das leis da Natureza.
A Doutrina Espírita propõe uma concepção de Deus
que não se subordina a nenhuma escola de pensamento anterior, distinguindo-se
do Teísmo ao rejeitar a intervenção sobrenatural e a revelação fechada, e se
distancia do Panteísmo ao afirmar a separação entre o criador e a criação. Ao
mesmo tempo, aproxima-se do Deísmo providencialista ao entender que Deus, após
criar o universo, continua a governá-lo de maneira justa e amorosa, sem violar suas
próprias leis. Essa concepção coloca o Espiritismo em um campo único.
Em síntese, a Doutrina Espírita é uma filosofia que
distingue-se de outras linhas espiritualistas no seu conjunto, com aspectos
muito próximos ao Deísmo providencialista, abraçando a ideia de que o universo
foi criado e não se confunde com Deus, o qual o rege por leis naturais,
perfeitas e imutáveis.
[1]
Texto original disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k506777/f1241.item.r=allan%20kardec%20d%C3%A9isme.zoom#
[2]
Ver Revista Espírita, jan/1866. O Espiritismo toma posição na filosofia e nos
conhecimentos usuais.
[3]
Ver Obras póstumas – 1ª parte - As cinco alternativas da humanidade.
Gostei do texto!
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