A fé customizada pelas paixões
ideológicas
Marco Milani
(Texto publicado na
Revista Senda – FEEES, mai/jun 2022, p.5-6)
Ao
longo de seu discurso à comunidade de espíritas das cidades francesas de Lyon e
Bordeaux, em 1862, Kardec[1]
categorizou os adeptos em três grandes grupos: I) Os que creem pura e
simplesmente nos fenômenos das manifestações, mas que deles não deduzem
qualquer consequência moral; II) Os que percebem o alcance moral, mas o aplicam
aos outros e não a si mesmos; III) Os que aceitam pessoalmente todas as
consequências da doutrina e que praticam ou se esforçam por praticar sua moral.
O
verdadeiro espírita, portanto, aplica em si mesmo o que muitos apenas
manifestam em discursos normativos carregados de lições enobrecedoras, mas
vazios de ações.
Entre
cada uma dessas categorias poderiam ser apontadas múltiplas subcategorias,
proporcionais à maturidade moral e intelectual dos indivíduos. Uma delas seria
formada por aqueles que apresentam-se como adeptos, porém adequam os ensinos aos
próprios interesses e não raramente procuram legitimar suas opiniões
particulares sobre diversos assuntos polêmicos alegando essas estarem embasadas
no Espiritismo. Tal é o espírita por conveniência, que customiza a fé conforme
seus interesses e ambições.
A
fé customizada é adotada em detrimento da coerência doutrinária por novos
sofistas que distorcem a realidade para moldar a aparência da verdade. Tal
distorção decorre, muitas vezes, das paixões que o suposto adepto carrega e
direcionam sua cosmovisão e consequente argumentação. Ao invés de servir-se das
premissas doutrinárias para se autoconhecer, aprimorar-se e repensar suas
crenças anteriores com natural mudança de atitudes, ele faz o inverso, partindo
de arraigadas convicções ideológicas para encaixar o Espiritismo nessas propostas.
O que não couber ou for divergente, simplesmente ignora-se ou reinterpreta-se.
Assim ocorre com as paixões políticas. Em um mundo de expiações e provas, não faltam antigas propostas revolucionárias sociais que prometem a concretização do reino de justiça na Terra desde que seguida determinada cartilha já idealizada por intérpretes da história e planejadores do comportamento coletivo. Quase a totalidade dessas receitas utópicas de felicidade desconhecem o processo interexistencial de desenvolvimento e pregam a imposição de relações econômicas artificiais e coletivistas como aquelas que transformariam moralmente o indivíduo, mas que acabam por sufocá-lo. Para esses, o Espírito Erasto[2] assim se manifesta.
Acabo
de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil deter-me um pouco nela, porque
absolutamente não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, e também
porque, ao contrário, repelimos com energia tudo quanto pareça ligar-se às
prescrições de um comunismo antissocial; antes de tudo, somos essencialmente
propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos
encarnados; por conseguinte, inimigos declarados de tudo quanto se aproxime
dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos.
Fruto de ilusões utópicas, muitos espíritas por conveniência selecionam e reinterpretam conceitos doutrinários para legitimar o modelo político que carregam de sistemas de relações socioeconômicas que dependem da perfeição moral de todos.
As
questões transitórias sociais recorrentemente estavam presentes nos diálogos de
Allan Kardec com os Espíritos e o respectivo ensino doutrinário contém os
elementos fundamentais para a construção de uma sociedade terrena mais justa e
fraterna, lastreada no conhecimento da realidade espiritual e da finalidade da
reencarnação.
A
contribuição primordial do Espiritismo no progresso social evidencia-se na
condição de um poderoso agente de transformação moral da humanidade, sem
qualquer enquadramento em concepções político-ideológicas já concebidas.
Como
filosofia interexistencialista, o Espiritismo não se limita às relações do
mundo material, pois expande a compreensão da realidade e desloca a finalidade
última do ser para a conquista do verdadeiro Reino de Deus em si mesmo. As
misérias humanas são reflexos do nível moral dos indivíduos, confrontando-os
com as chagas do orgulho e do egoísmo, incentivando-os a exercitar a
inteligência e praticar a caridade em seu verdadeiro sentido, em harmonia com
as leis divinas.
O
Espiritismo, ao demonstrar a responsabilidade de cada um sobre suas ações e
respectivas consequências durante o processo reencarnatório em plena
conformidade com as leis naturais, afasta-se da míope perspectiva materialista
histórica que concebe o homem como produto de seu meio e ignora sua bagagem
reencarnatória, suas tendências e necessidades evolutivas para a realização
espiritual. A expressão “a cada um segundo suas obras” resume a essência meritocrática
do esforço individual na jornada interior em busca da verdadeira felicidade,
segundo o Espiritismo.
A
confiança e a crença racional na justiça divina e no futuro pautado pelos
benefícios consequentes da prática da caridade, aqui entendida como a ação
benevolente, indulgente e voltada ao perdão das ofensas, deveriam nortear a
conduta equilibrada do adepto, promovendo conforto e coragem para superar os
desafios materiais. A conduta do espírita espelha o seu próprio progresso moral
nas obras realizadas e faz-se reconhecido como coerente aos princípios de paz e
solidariedade que professa.
A
fé raciocinada, sob esse ângulo, analisa criticamente e admite a consistência
do conjunto de ensinos apresentados por Allan Kardec, convidando o adepto da
filosofia espírita a agir conforme os princípios doutrinários, reduzindo e
atenuando hábitos e posturas orgulhosas e egoístas. Certamente, em um mundo de
expiações e provas, não se deve exigir a súbita perfeição e o progresso moral é
paulatino e proporcional aos esforços e maturidade de cada um.
A
transformação social, para Kardec, não ocorrerá de maneira impositiva e
totalitária ao indivíduo, mas de maneira oposta, decorrente da melhoria do
indivíduo respeitando-se a liberdade de consciência de cada um. Conforme afirma-se
na edição de fevereiro de 1862 da Revista Espírita[3],
tem-se:
Procurai
no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar: eis o essencial. Quando os homens
forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência
natural; trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais
sólidos fundamentos de todas as melhoras, e deixareis a Deus o cuidado de fazer
com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é
ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos
que quiserem vos arrastar por uma via perigosa.
Ao crer somente naquilo que está em concordância com suas paixões político-ideológicas e rejeitar tudo o que na doutrina espírita as contrarie, o adepto por conveniência exemplifica a postura egoísta e orgulhosa que leva à insensatez doutrinária. A militância política, com o intuito de ocupar espaços e disseminar suas propostas para convencer o maior número de pessoas, desrespeita a liberdade de pensamento e livre-arbítrio do próximo nas instituições espíritas e provoca cismas.
Allan
Kardec, dirigindo-se aos espíritas lioneses em 1862, já alertava sobre a armadilha
preparada por adversários do Espiritismo que objetivavam levar aos grupos
espíritas a discussão política[4].
Devo
ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar
comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da
doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e
que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não
vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões
tudo quanto se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito,
as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar
à moral, quanto esta for boa.
Atuando como promotores de cizânia em nome de paixões políticas variadas, os supostos adeptos que customizam a fé lançam-se com entusiasmo ao proselitismo de suas convicções pessoais camuflando-as de assuntos doutrinários, fomentando as discussões contra ou a favor de governantes, defendendo ou atacando condutas alheias, ou ainda, tentando fazer crer que só quem compartilha de suas paixões político-ideológicas poderia ser considerado um espírita legítimo.
Que
nesses tempos agitados pela polarização política, consigamos entender o alerta
de Kardec sobre os cuidados no trato das paixões e o respeito à liberdade de
pensamento e exemplificarmos em nós mesmos o comportamento que gostaríamos que
outros tivessem.
________________________________
[1]
Livro Viagem Espírita em 1862. Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos
espíritas de Lyon e Bordeaux. Discurso I
[2]
Trecho extraído da epístola de Erasto aos espíritas lioneses - 1861. Um alerta
contra as utopias materialistas. Revista Espírita, out/1861.
[3]
Trecho extraído do texto Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião
do Ano-Novo, Revista Espírita, Revista Espírita, fev/1862
[4]
Ibidem
E agora, como se não bastassem tais desvios apontados por você, temos que ouvir que Jesus era comunista...
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