sexta-feira, 12 de julho de 2024

A responsabilidade do dirigente espírita nas palestras públicas


 A responsabilidade do dirigente espírita nas palestras públicas

 

Marco Milani

 

 Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 201, jul/ago 2024, p. 34-35

 

Dentre as diversas atividades desenvolvidas em uma instituição espírita, o oferecimento de palestras públicas é uma das mais destacadas, não somente pela possibilidade de divulgação do Espiritismo à sociedade, mas também por representar uma prática relevante de caridade. O conhecimento sobre a existência e a natureza do mundo espiritual, assim como suas relações com o mundo corpóreo, amplia o horizonte intelectual e permite compreender a perfeita Justiça Divina que rege nossas vidas. O entendimento dessa realidade, aliado ao autoconhecimento, conforta, fortalece e motiva os indivíduos a buscarem uma situação mais feliz, com a certeza de que todo esforço voltado ao bem será recompensado.

Para apresentar essa riqueza de princípios e valores filosóficos com aplicações práticas, a tribuna espírita deve ser ocupada por trabalhadores comprometidos com a divulgação sincera, transparente e, principalmente, coerente do Espiritismo. A base doutrinária representada pelo ensino dos Espíritos, apresentada por Allan Kardec em suas obras após rigoroso critério de validação das informações obtidas por múltiplas fontes pelo método que ele mesmo denominou Controle Universal, é o caminho seguro que qualquer palestrante deve utilizar.

Um equívoco comum, cometido por aqueles que não percebem a significativa diferença entre as informações validadas metodologicamente por Allan Kardec e as informações obtidas por outras fontes que não passaram por nenhum processo rigoroso de análise crítica, lastreado em fatos objetivos, é supor que novidades descritas em romances ou mensagens mediúnicas sejam atualizações da base doutrinária.[1]

De forma simples, pode-se colocar o problema da seguinte maneira: o Espiritismo se estrutura sobre o ensino dos Espíritos, validado pelo Controle Universal, porém, para muita gente, as opiniões de médiuns e escritores teriam o mesmo peso ou até superariam as obras de Allan Kardec.

Certamente, o Espiritismo deve acompanhar o progresso da ciência, e isso é uma condição prevista por Kardec. Logo, o contínuo aprimoramento do conhecimento é uma característica intrínseca da ortodoxia espírita. A fé raciocinada decorre primordialmente da compreensão dos fatos e da argumentação filosófica robusta para ser exercida.

Com a mesma prudência da ciência, que avança considerando evidências e a aplicação de um método capaz de garantir a segurança dos resultados obtidos, o Espiritismo assim o faz. Até o momento, os princípios doutrinários não necessitaram ser reformulados diante de novas informações, pois nenhuma foi validada objetivamente.

Sendo assim, o palestrante espírita deve expor o conteúdo das obras de Allan Kardec e não confundir o público com informações contraditórias e sem validação, mesmo aquelas presentes nos milhares de títulos de romances e outras obras amplamente comercializadas no mercado editorial voltado aos leitores espiritualistas. A seleção de palestrantes, portanto, é de extrema relevância para a manutenção da integridade doutrinária e para o correto desenvolvimento das atividades dos centros espíritas. Cabe aos dirigentes a responsabilidade de convidar oradores que possuam um conhecimento baseado nos princípios estabelecidos por Allan Kardec, evitando aqueles que disseminam ideias místicas, fantasiosas ou opiniões pessoais polêmicas e conflitantes.

Além da solidez doutrinária, é essencial que os palestrantes se comuniquem de maneira clara e envolvente, com técnicas apropriadas de oratória, expressividade corporal, uso de recursos audiovisuais e capacidade de motivar o público. A promoção de cursos ou seminários de expositores nas casas espíritas gera um significativo aumento da qualidade dos colaboradores para essa tarefa. Adicionalmente, o compartilhamento fraterno de palestrantes entre instituições próximas ou a presença de convidados para determinados temas previamente selecionados favorece a sinergia do movimento espírita. O órgão local da USE (no Estado de São Paulo) ou das entidades federativas de cada região poderá, sem dúvida, contribuir nesse sentido.

Recomenda-se, por fim, a formação de um cadastro positivo de palestrantes locais que demonstrem o comprometimento e a coerência doutrinária esperados, assim como a disponibilidade para atuar nas casas da região.

 

 

 

 



[1] Ver O evangelho segundo o espiritismo, Introdução, item 2 – Autoridade da doutrina espírita.

terça-feira, 9 de julho de 2024

A utilização providencial dos meios materiais


 

A utilização providencial dos meios materiais

 

Marco Milani


Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 201, jul/ago 2024, p. 19-20

 

A legitimidade da propriedade privada, o emprego da fortuna e a desigualdade das riquezas são temas presentes no Capítulo 16 da obra O evangelho segundo o Espiritismo, assim como também ocuparam lugar de destaque entre diferentes e antagônicas correntes econômicas do século XIX.

Ainda que possa guardar certa semelhança em um ou outro aspecto, a abordagem espírita desses temas, entretanto, não se subordinou a nenhuma escola específica de pensamento da época, uma vez que se tratou de concepção inovadora e muito mais ampla do que as limitadas propostas materialistas.

Essa diferenciação teórica é relevante, pois não é raro encontrar alguém tentando distorcer os conceitos espíritas desses mesmos temas, considerados hoje politicamente sensíveis, objetivando reinterpretá-los e moldá-los de acordo com suas preferências políticas pessoais sob a alegação de “atualização”.

Para favorecer a ressignificação dos conceitos alegando-se que Kardec estaria ultrapassado, detratores do Espiritismo deliberadamente ignoram que a autoridade doutrinária decorre do Controle Universal do Ensino dos Espíritos, ou seja, omitem que os princípios e conceitos que estruturam o corpo teórico espírita não são uma concepção de um homem, mas de uma coletividade de seres cujas informações foram metodologicamente validadas e não se restringiram a um contexto social e econômico específico. É mais fácil para esses revisionistas históricos acusar uma suposta obsolescência de Kardec do que assim proceder com o Espírito da Verdade, Santo Agostinho, Sócrates, Platão, São Luís e muitos outros seres desencarnados que participaram da elaboração da doutrina.

No Espiritismo, a propriedade privada e a fortuna são tidas como legítimas quando adquiridas honestamente, cabendo aos seus possuidores o direito de defendê-las e a responsabilidade pelo bom uso. Sob a ótica espírita, a propriedade privada, fruto do trabalho e sem prejuízo a terceiros, é um direito natural “tão sagrado quanto o de trabalhar e de viver”.[1] Essa perspectiva está profundamente enraizada na justiça divina, onde a riqueza material é vista como uma prova voltada a exercitar o caráter e a moralidade dos indivíduos.

Os Espíritos aprofundam a discussão ressaltando que a riqueza verdadeira não reside nos bens materiais, mas nas qualidades morais e intelectuais que o indivíduo desenvolve ao longo de suas existências[2]. A riqueza material é temporária e deve ser usada para o bem do rico como dos mais vulneráveis. Kardec enfatiza que a acumulação egoísta de riqueza contraria os preceitos cristãos de fraternidade. Essa abrangência moral e espiritual proporciona uma compreensão mais profunda e equilibrada da questão da propriedade e da fortuna como oportunidades temporárias de progresso, transcendendo as meras considerações materialistas da posse de bens em si mesma.

A desigualdade das riquezas, sob a perspectiva espírita, é vista como reflexo da diversidade natural de características e aptidões pessoais. Sobre a tentativa de militantes políticos que pretendem, artificialmente, forçar uma igualdade absoluta de riquezas, os Espíritos assim se posicionaram:

 

“São cultores de sistemas, esses tais, ou ambiciosos cheios de inveja. Não compreendem que a igualdade com que sonham seria a curto prazo desfeita pela força das coisas. Combatei o egoísmo, que é a vossa chaga social, e não corrais atrás de quimeras.”[3]

 

Na comunicação mediúnica que Allan Kardec selecionou para lê-la integralmente em sua visita aos espíritas da cidade de Lyon, destaca-se o alerta contra as propostas sociais utópicas que pregavam a igualdade absoluta:

 

“Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil nela deter-me um pouco, porque não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, pois, ao contrário, repelimos energicamente tudo quanto pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antissocial. Antes de tudo, somos essencialmente propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos encarnados. Consequentemente, somos inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos. Embora me dirija a um auditório em parte composto de artífices e proletários, sei que suas consciências, esclarecidas pelas radiações da verdade espírita, já repeliram todo contato com as teorias antissociais dadas com apoio da palavra igualdade.[4]

 

Certamente, é um anseio justo e necessário a busca por melhores condições de vida enquanto encarnados. É fundamental, entretanto, a valorização da vida espiritual para a construção do verdadeiro reino de Deus em nós mesmos, em contraste com as ilusões utópicas promovidas por sistemas políticos que buscam a realização plena do indivíduo nas transitórias sociedades físicas.

Embora o homem procure instintivamente o bem-estar e trabalhe para melhorar suas condições terrenas, esses esforços são temporários e relativos. Os prazeres terrenos são muito bem-vindos, mas o respectivo abuso em detrimento dos valores espirituais constitui uma deturpação dos reais objetivos humanos. Aqueles que se identificam com a vida futura dão menos importância às preocupações materiais e encontram consolo nos seus insucessos, enquanto aqueles focados na vida terrena tendem a se desesperar com as perdas materiais.

Sendo o Espiritismo mais amplo e profundo do que qualquer ideologia política e econômica atual ou do passado, ele contribui diretamente para que cada um aumente o grau de compreensão da vida espiritual, conhecimento essencial para se alcançar a verdadeira e duradoura realização pessoal.

 



[1] Ver a Nota da questão 882, em O livro dos espíritos.

[2] Ver o item Capítulo XVI de O evangelho segundo o espiritismo.

[3] Ver a questão 811-a, em O livro dos espíritos.

[4] Ver a Revista Espírita, out/1861 - Epístola de Erasto aos espíritas lioneses

quinta-feira, 4 de julho de 2024

A prática da caridade e a ostentação pessoal


 

A prática da caridade e a ostentação pessoal

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 34, julho de 2024, p. 10-11

 

A prática da caridade é um dos pilares do Espiritismo objetivando-se o progresso espiritual. Doutrinariamente, a caridade não se limita à doação material, mas abrange a benevolência para com todos, a indulgência para com as imperfeições alheias e o perdão das ofensas[1]. No entanto, um problema que pode surgir na prática de ações assistenciais é a ostentação pessoal, a qual vincula-se diretamente ao orgulho e à vaidade.

No capítulo XIII da obra “O evangelho segundo o espiritismo”, enfatiza-se que a verdadeira caridade deve ser humilde e desinteressada, destacando-se que não se trata apenas do ato em si, mas também da maneira como ela é praticada. No intuito de exibir-se perante os outros ou para obter reconhecimento público, o ato desvirtua-se.

Certamente, a divulgação de ações caridosas pode motivar outras pessoas a praticarem o bem, desde que seja feita com sinceridade, humildade e o propósito de inspirar e conscientizar. Nesse sentido, buscar-se-á criar um ambiente de solidariedade e empatia, onde mais pessoas se sentirão encorajadas a contribuir para o bem-estar coletivo, promovendo o progresso moral da coletividade.

A distinção entre a divulgação desinteressada do auxílio ao próximo e a ostentação vaidosa reside na intenção, mas ao contrário do que alguns poderiam supor, não se trata de um problema restrito ao orgulhoso, quando assim ocorrer. A exposição pública dos beneficiários dos bens e serviços oferecidos pode ser constrangedora, além dessas pessoas serem usadas como coadjuvantes para a própria satisfação egóica do “caridoso”.

O exercício do autoconhecimento, conforme orientado por Santo Agostinho[2], favorece o combate à vaidade e o cultivo da humildade. A reflexão frequente sobre os pensamentos, palavras e ações ao final de cada dia promove um exame introspectivo que permite reconhecer falhas e virtudes, levando a pessoa a um entendimento mais profundo de si mesmo.

A introspecção, em um processo direcionado ao aperfeiçoamento moral, estimula o desenvolvimento de uma consciência altruísta e o cultivo da empatia, fortalecendo a prática da caridade desinteressada.

O autoconhecimento, de maneira mais ampla, incentiva uma compreensão mais profunda de si mesmo, levando a uma maior segurança pessoal e independência emocional. Isso, por sua vez, reduz a necessidade de reconhecimento em redes sociais, pois a pessoa encontra valor e validação internamente e em conexões reais e significativas.

Assim, ao invés da pueril ostentação midiática de pretensos benfeitores ávidos por curtidas em suas postagens públicas, que os adeptos sinceros possam, efetivamente, praticar a caridade de maneira autêntica e desinteressada, contentando-se com o reconhecimento da própria consciência.



[1] Ver a questão 886, em O livro dos espíritos.

[2] Ver a questão 919, em O livro dos espíritos.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Os fins justificam os meios num centro espírita?

 

Os fins justificam os meios num centro espírita?

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 200, abr/jun 2024, p.27

 

          A atitude caridosa, em essência, implica amar o semelhante fazendo-lhe todo o bem que nos seja possível e que desejaríamos nos fosse feito. Sob essa concepção, não é raro ouvir-se de empolgados adeptos a proposta de implantação nos centros espíritas das mais variadas práticas terapêuticas alegando-se que tudo o que é voltado ao benefício do próximo é um ato caridoso e, portanto, alinhado à moral espírita.

          O Espiritismo, entretanto, não é estruturado como o produto das boas intenções e ações de seus adeptos. Trata-se de um conjunto de princípios e valores organizados de forma sistemática sobre a natureza, origem e destino dos Espíritos e suas relações com o mundo corporal.[1] Como corpo doutrinário, integra e harmoniza o ensino dos Espíritos liderados pelo Espírito da Verdade e apresentado nas obras de Allan Kardec com notável consistência interna, caracterizando sua própria percepção e interpretação da realidade.

          Nesse sentido, qualquer instituição que se afirme espírita deve expressar coerentemente os respectivos fundamentos doutrinários, sem abraçar práticas conceitualmente contraditórias que desfigurariam os próprios preceitos.

O equilíbrio entre os objetivos desejados e a coerência doutrinária dos métodos empregados para alcançá-los torna-se condição necessária para a caracterização de práticas espíritas. A moralidade de uma ação não é, exclusivamente, determinada pelo resultado final, mas também pelo caminho adotado para sua realização.

Por exemplo, são reconhecidas pelo Ministério da Saúde como práticas integrativas e complementares e que contam com relatos favoráveis de alguns de seus atendidos, as seguintes: Medicina Tradicional Chinesa/Acupuntura, Medicina Antroposófica, Homeopatia, Plantas Medicinais e Fitoterapia, Termalismo Social/Crenoterapia, Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa, Yoga, Apiterapia, Aromaterapia, Bioenergética, Constelação familiar, Cromoterapia, Geoterapia, Hipnoterapia, Ozonioterapia e Terapia de Florais. Nenhuma dessas terapias, entretanto, apresenta fundamentação doutrinária espírita para ser assim considerada e desenvolvida numa instituição espírita.

          A frase "os fins justificam os meios", portanto, não se aplica aos centros espíritas diante de eventuais incoerências doutrinárias, mesmo sob a argumentação de que tudo valeria em nome do amor.



[1] KARDEC, A. O que é o Espiritismo. Araras: IDE, 1991.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Chicomedissismo: o problema continua


Chicomedissismo: o problema continua

Marco Milani 

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 200, abr/jun 2024, p.15

  

Em 2021, o Departamento de Doutrina da USE promoveu uma interessante roda de conversa virtual denominada “O problema do Chicomedissismo”[1], no qual foram apresentadas situações em que uma ou outra pessoa afirmava ter convivido com Francisco Cândido Xavier e ouvido diretamente dele, em tom de confidência, informações sigilosas, quase proféticas, sobre diferentes assuntos.

Passados três anos desse evento, e mais de duas décadas da desencarnação do popular médium mineiro, o número de confidentes de Chico parece ter aumentado...

Hoje em dia, novos “amigos íntimos” surgem repentinamente nas redes sociais com retumbantes e questionáveis revelações sobre o destino da humanidade e sobre a realidade espiritual, amparando-se na conhecida justificativa do “Chico me disse”.

Sob a perspectiva espírita, qualquer informação, seja ela proveniente de encarnado ou desencarnado, deve ser analisada com ponderação e razão, nunca baseada em argumento de autoridade, ou seja, não importa quem disse, mas qual é a comprovação existente do conteúdo.

No caso de Chico, sua inegável idoneidade moral e capacidade mediúnica o transformou num ícone do movimento espírita não somente brasileiro, mas mundial. Nesse sentido, muitos dos milhões de adeptos, pelo natural respeito e admiração a ele, tendem a aceitar com muito carinho tudo o que lhe esteja relacionado, mesmo que isso não dispense a necessidade de análise crítica.

O desafio metodológico enfrentado pelos adeptos, entretanto, recai na separação entre ideias e pessoas, bem como entre fatos e fantasias.

Ao utilizar o argumento chicomedissista, muitos têm atraído os holofotes midiáticos e locupletam-se com a visibilidade pessoal e a oportunidade de disseminar causos e contos mirabolantes que colidem com o bom senso e a lógica doutrinária.

Tais caronistas da popularidade alheia encontram no permissivo ambiente tecnológico atual o espaço para dar vazão às suas imaginativas estórias, iludindo e confundindo os mais incautos e contribuindo para a disseminação da fé cega.

Certamente, por não estar fisicamente entre nós, Chico não pode se defender das bizarrices atribuídas a ele por aqueles que declaram ter sido “seus amigos muito próximos” que, se realmente o fossem, não tentariam usurpar sua imagem social desse jeito.

Seja como for, compete ao espírita estudar as obras de Allan Kardec para ter referências comparativas seguras sobre a natureza, origem e destino dos Espíritos e suas relações com o mundo corporal[2] e, dessa maneira, conseguir analisar criticamente qualquer informação sob o ângulo doutrinário.



[1] Ver https://youtu.be/kSCHo7fqUy8?si=NJvHcCjqHfv66pNo

 [2] KARDEC, A. O que é o espiritismo. Araras: IDE, 1991


quarta-feira, 29 de maio de 2024

Inteligência artificial e referências espíritas

 

Inteligência artificial e referências espíritas

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 33, junho de 2024, p. 8-9

 

O uso massivo da inteligência artificial (IA) apresenta um enorme potencial transformador nas atividades humanas, assim como proporciona desafios significativos em diferentes aspectos éticos e práticos. Certamente, não se trata de uma panaceia, capaz de resolver todos os problemas individuais e coletivos, mas é muito mais que um simples avanço tecnológico.

O desenvolvimento da IA depende fortemente do conhecimento acumulado. Os algoritmos são criados, treinados e refinados por cientistas e engenheiros que utilizam princípios da matemática, estatística, neurociência e outras disciplinas. Isso não significa, entretanto, que ela possua a capacidade de raciocinar de forma profunda e abstrata, como os seres humanos fazem. A capacidade de resolver problemas complexos que exigem pensamento criativo e flexível ainda é um desafio para a IA.

Ao se explorar o conhecimento espírita com as atuais ferramentas de IA, identifica-se uma valiosa contribuição para a análise dos objetos em pauta, porém, também se evidenciam algumas fragilidades decorrentes da base de dados que os algoritmos de IA se servem para a geração de respostas. Uma dessas fragilidades advém da própria concepção do que seria uma informação legitimamente considerada “espírita”.

Sob o aspecto doutrinário, a fonte fidedigna de informações é, certamente, o conjunto das obras de Allan Kardec, com destaque para as chamadas obras fundamentais que reúnem o ensino dos Espíritos que passou pelo critério metodológico da universalidade. Todas as complexas relações inerentes aos princípios e conceitos sistematizados e organizados por Allan Kardec, embora com clareza e objetividade típicos de um exímio educador, exigem atenção e maturidade cognitiva.

Algoritmos de IA que não diferenciarem a excelência metodológica do ensino dos Espíritos validados pelo critério kardequiano da universalidade e não as priorizarem hierarquicamente diante de outras fontes rotuladas como “espíritas”, poderão cometer graves erros doutrinários e distorcerem as informações geradas.

Se as respostas geradas pela IA como representativas do conhecimento espírita contiverem informações contraditórias aos princípios e conceitos doutrinários apresentados por Kardec, então induzir-se-á ao erro de se aceitar algo não-espírita como espírita. O usuário da informação falsa que confiar imprudentemente nesse algoritmo de IA desenvolverá e disseminará um conhecimento pseudoespírita.

Não basta ser classificada como uma fonte mediúnica para as informações ali obtidas serem tomadas como integrantes do conhecimento espírita, pois para isso deveriam ter sido validadas metodologicamente e não aceitas como verdades apenas confiando-se em falaciosos argumentos de autoridade.

Textos romanceados, ficcionais e opinativos, os quais abundam o mercado editorial voltado ao público espiritualista, ainda que possam tratar de edificantes valores morais e tentem ilustrar as relações entre os mundos físico e invisível, costumeiramente carregam generosas inserções lúdicas e fantasiosas. Tais fontes não deveriam, portanto, ser tomadas pelos algoritmos de IA como referências do mesmo nível de validade do conteúdo apresentado por Allan Kardec.

Assim, as ferramentas de IA são muito bem-vindas e poderão contribuir em muito para as reflexões e construções de argumentos espíritas, tomando-se o cuidado de identificar conceitualmente o que são, de fato, informações espíritas e não-espíritas sob parâmetros doutrinários.


quinta-feira, 9 de maio de 2024

Quadro da vida espírita - Allan Kardec

 

Revista espírita — abril/1859

QUADRO DA VIDA ESPÍRITA

 

Apresentação sintética por tópicos

 

 

1) Expectativas sobre a vida futura

 

“Todos nós, sem exceção, atingimos mais cedo ou mais tarde o termo fatal da vida. Nenhuma força nos poderia subtrair a essa necessidade, eis o que é positivo. Muitas vezes as preocupações do mundo nos desviam o pensamento daquilo que se passa além-túmulo, mas quando chega o momento supremo, são poucos os que não se perguntam em que se vão transformar, porque a ideia de deixar a existência sem uma possibilidade de retorno tem algo de pungente. Com efeito, quem poderia encarar com indiferença a ideia de uma separação absoluta e eterna de tudo quanto amou? Quem poderia ver sem assombro abrir-se à sua frente o imenso abismo do nada, em que iriam desaparecer para sempre todas as nossas faculdades e todas as nossas esperanças? “O que!? Depois de mim, o nada; nada mais que o vazio; tudo acabado irremediavelmente? Mais alguns dias e a minha lembrança se apagará da memória dos que sobreviverem a mim; em breve não restará nenhum traço de minha passagem pela Terra; o próprio bem que eu tiver feito será esquecido pelos ingratos a quem tiver beneficiado, e nada para compensar tudo isso; nenhuma outra perspectiva além de meu corpo a ser roído pelos vermes?!” Este quadro do fim de um materialista, traçado por um Espírito que tinha vivido esses pensamentos, não tem algo de horrível e de glacial? Ensina-nos a religião que não pode ser assim, e a razão o confirma. Mas essa existência futura, vaga e indefinida, nada tem que satisfaça ao nosso amor ao que é positivo. É isto que gera a dúvida em muitos. Vá lá que tenhamos uma alma. Mas o que é a nossa alma? Ela tem forma e aparência? É um ser limitado ou indefinido? Dizem uns que é um sopro de Deus; outros, que uma centelha; outros, uma parte do grande todo, o princípio da vida e da inteligência. Mas o que concluímos de tudo isto? Diz-se, ainda, que ela é imaterial. Mas uma coisa imaterial não poderia ter proporções definidas. Para nós isso não é nada. Ensina-nos ainda a religião que seremos felizes ou infelizes, conforme o bem ou o mal que tivermos feito. Mas qual é essa felicidade que nos espera no seio de Deus?”

 

2) O Espiritismo esclarece sobre a sobrevivência da alma e a vida futura

 

“Será uma beatitude, uma contemplação eterna, sem outro objetivo além de cantar os louvores ao Criador? As chamas do inferno são uma realidade ou uma ficção? A própria Igreja o entende nesta última acepção; mas quais são os sofrimentos? Onde o lugar do suplício? Numa palavra, que é o que se faz ou se vê nesse mundo que nos espera a todos? Costuma-se dizer que ninguém voltou para nos dar informações. Isso é um erro, e a missão do Espiritismo é precisamente esclarecer-nos sobre esse futuro, fazendo-nos, por assim dizer, tocá-lo e vê-lo, não pelo raciocínio, mas pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, já não se trata de uma presunção ou de uma probabilidade, sobre a qual cada um imagina à vontade e que os poetas embelezam com as suas ficções ou repletam de imagens alegóricas que nos enganam. É a própria realidade que se nos apresenta, pois são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm descrever a sua situação e falar-nos do que fazem, permitindo-nos, por assim dizer, assistir a todas as peripécias de sua vida nova, e dessa maneira mostrar-nos a sorte inevitável que nos aguarda, conforme os nossos méritos e os nossos deméritos. Haverá nisso algo de antirreligioso? Muito pelo contrário, pois os incrédulos encontram nisso a fé e os tíbios uma renovação do fervor e da confiança.”

 

3) Conhecimento sobre a continuidade da vida reanima e oferece esperança

 

“O Espiritismo é, pois, o mais poderoso auxiliar da religião. Se assim é, é que Deus o permite, e o permite para reanimar nossas esperanças vacilantes e para reconduzir-nos ao caminho do bem, pela perspectiva do futuro que nos aguarda.”

 

4) O objetivo deste texto é descrever, resumidamente, a vida após a morte do corpo, conforme relatado pelos próprios Espíritos

 

“As conversas familiares de além-túmulo que publicamos; a descrição que elas encerram da situação dos Espíritos que nos falam, revelam-nos as suas penas, as suas alegrias, as suas ocupações. São um quadro animado da vida espírita, e na própria variedade dos assuntos podemos encontrar as analogias que nos interessam. Vamos tentar resumir o seu conjunto. Inicialmente consideremos a alma ao deixar este mundo e vejamos o que se passa nessa transmigração.”

 

5) O desligamento do Espírito do corpo carnal ocorre pela cessação da vida orgânica.

 

“Extinguindo-se as forças vitais, o Espírito se desprende do corpo no momento em que cessa a vida orgânica.”

 

6) O processo de desencarnação é variável, podendo se iniciar antes da cessação completa da vida orgânica e ser finalizado até depois da morte carnal.

 

“Mas a separação não é brusca ou instantânea. Por vezes começa antes da cessação completa da vida e nem sempre é completada no instante da morte. Sabemos que entre o Espírito e o corpo existe um liame semimaterial, que constitui o primeiro envoltório. É esse liame que não se quebra subitamente.”

 

7) Enquanto os laços fluídicos não se desfazem totalmente, o Espírito fica num estado de perturbação. Esse período é variável, podendo variar de algumas horas a alguns meses.

 

“Enquanto subsiste, fica o Espírito num estado de perturbação comparável ao que acompanha o despertar. Muitas vezes ele até duvida de sua morte; sente que existe, vê-se e não compreende que possa viver sem seu corpo, do qual se vê separado. Os laços que ainda o prendem à matéria o tornam acessível a certas sensações que toma como sensações físicas. O Espírito só se reconhece quando completamente livre. Até então não compreende a sua situação. A duração desse estado de perturbação, como já o dissemos em outras ocasiões, é muito variável: pode ser de algumas horas, como de vários meses, mas é raro que ao cabo de alguns dias o Espírito não se reconheça mais ou menos bem. Entretanto, como tudo lhe é estranho e desconhecido, é-lhe necessário um certo tempo para familiarizar-se com a sua nova maneira de perceber as coisas.”

 

8) Ao desencarnar, o Espírito é recepcionado por amigos e por quem por ele simpatizam.

 

“Solene é o instante em que um deles vê cessar a sua escravização, pela ruptura dos laços que o prendem ao corpo. Ao entrar no mundo dos Espíritos é acolhido pelos amigos que vêm recebê-lo, como se voltasse de penosa viagem. Se a travessia foi feliz, isto é, se o tempo de exílio foi empregado de maneira proveitosa para si e o elevou na hierarquia do mundo dos Espíritos, eles o felicitam. Ali reencontra os conhecidos, mistura-se aos que o amam e com ele simpatizam, e então começa, para ele, verdadeiramente, a sua nova existência.”

 

9) O perispírito não tem órgãos e o Espírito percebe tudo ao seu redor de maneira mais precisa e sutil. Essa percepção é uma faculdade inerente ao Espírito.

 

“O envoltório semimaterial do Espírito constitui uma espécie de corpo, de forma definida, limitada e análoga à do corpo físico. Mas esse corpo não tem os nossos órgãos e não pode sentir todas as nossas impressões. Entretanto, percebe tudo quanto percebemos: a luz, os sons, os odores, etc. Estas sensações não são menos reais, embora nada tenham de material; têm, até, algo de mais claro, de mais preciso, de mais sutil, porque lhe chegam sem intermediário, sem passar pela fieira dos órgãos que as embotam. A faculdade de perceber é inerente ao Espírito; é um atributo de todo o seu ser. As sensações lhe chegam por todos os lados, e não através de canais circunscritos. Falando da visão, dizia-nos um Espírito: “É uma faculdade do Espírito e não do corpo. Vedes pelos olhos, mas não é o olho que vê. É o Espírito.

Em virtude da conformação de nossos órgãos, necessitamos de certos veículos para as sensações. É assim que necessitamos da luz para refletir os objetos e do ar para nos transmitir os sons. Esses veículos se fazem inúteis, desde que não tenhamos mais os intermediários que os tornam indispensáveis. Assim, pois, o Espírito vê sem auxílio de nossa luz e ouve sem necessidade das vibrações do ar. Eis por que para ele não há obscuridade. Mas as sensações permanentes e indefinidas, por mais agradáveis que sejam, com o tempo se tornariam fatigantes, se não lhe fosse possível subtrair-se a elas. Por isso tem o Espírito a faculdade de suspendê-las. Ele pode, à vontade, deixar de ver, de ouvir, de sentir tais ou quais coisas e, consequentemente, não ver, não ouvir, não sentir senão aquilo que queira. Essa faculdade está na razão de sua superioridade, pois há coisas que os Espíritos inferiores não podem evitar, pelo que a sua situação se torna penosa.”

 

10) Há a necessidade de adaptação à nova situação do recém-desencarnado.

 

“A princípio o Espírito não compreende essa nova maneira de sentir, da qual só aos poucos se dá conta. Aqueles cuja inteligência é ainda muito atrasada não a compreendem absolutamente e sentiriam muita dificuldade em exprimi-la, exatamente como entre nós os ignorantes veem e se movem, sem saber como nem por quê.”

 

11) As limitações dos Espíritos em compreender o que está além de seu alcance, aliadas à fanfarrice de seres inferiores, são fontes de teorias absurdas manifestas por certos Espíritos.

 

“Essa impossibilidade de compreender o que está acima de seu alcance, aliada à fanfarrice, usual companheira da ignorância, é a fonte de teorias absurdas dadas por certos Espíritos que nos induziriam em erro se as aceitássemos sem controle e se não estivéssemos seguros, pelos meios fornecidos pela experiência e pelo hábito de com eles conversar, quanto ao grau de confiança que merecem.”

 

12) O Espírito não tem as sensações decorrentes de órgãos físicos, como fadiga, necessidade de repouso e de alimentação.

 

“Há sensações que têm por fonte o próprio estado dos nossos órgãos. Ora, as necessidades inerentes ao corpo não se podem verificar desde que não exista mais corpo. Assim, pois, o Espírito não experimenta fadiga, nem necessidade de repouso ou de alimentação, porque não tem nenhuma perda a reparar. Ele não é acometido por nenhuma de nossas enfermidades.”

 

13) As necessidades do corpo determinam necessidades sociais, que para os Espíritos não existem. Assim, as relações que estruturam a vida em sociedade no mundo físico não se reproduzem naturalmente no mundo espiritual.

 

“As necessidades do corpo determinam necessidades sociais, que para eles não existem. Assim não mais existem as preocupações dos negócios, as discórdias, as mil e umas tribulações do mundo e os tormentos a que nos entregamos para suprirmos as nossas necessidades ou as superfluidades da vida. Eles têm pena do esforço que fazemos por causa de futilidades. Entretanto, quanto mais felizes são os Espíritos elevados, tanto mais sofrem os inferiores, mas esses sofrimentos se constituem principalmente de angústias que embora nada tenham de físico, nem por isso são menos pungentes.”

 

14) Espíritos inferiores mantêm as paixões e desejos que possuíam enquanto encarnados e para eles é um sofrimento não conseguir satisfazê-los.

 

“Eles têm todas as paixões e todos os desejos que tinham em vida (referimo-nos aos Espíritos inferiores) e seu castigo é o de não poder satisfazê-los. Isto é para eles uma tortura que julgam eterna, porque sua própria inferioridade não lhes permite ver o término, o que é também para eles um castigo.”

 

15) Os Espíritos se comunicam pelo pensamento, sem qualquer necessidade de elementos físicos como o som (fala articulada).

 

“A palavra articulada é uma necessidade de nossa organização. Como os Espíritos não necessitam de vibrações sonoras para lhes ferir os ouvidos, compreendem-se pela simples transmissão do pensamento, assim como por vezes acontece que nos entendemos por um simples olhar. Entretanto, os Espíritos fazem barulho. Sabemos que podem agir sobre a matéria e que essa matéria nos transmite o som. É assim que se dão a entender, quer por meio de pancadas, quer por meio de gritos que vibram no ar. Mas então o fazem para nós e não para eles. Voltaremos ao assunto em artigo especial, no qual trataremos da faculdade dos médiuns auditivos.”

 

16) Os Espíritos se deslocam com a velocidade do pensamento, sem fadiga e sem obstáculos materiais. Não há semelhança com a vida carnal.

 

“Enquanto arrastamos penosamente pela terra o nosso corpo pesado e material, como o condenado as suas cadeias, o dos Espíritos, vaporoso e etéreo, transporta-se sem fadiga de um lugar para outro; rasga o espaço com a velocidade do pensamento e tudo penetra, sem encontrar qualquer obstáculo material.”

 

17) A percepção dos Espíritos sobre o ambiente em que se encontram é muito mais acurada e abrangente do que a visão do encarnado.

 

“O Espírito vê tudo aquilo que vemos, e mais claramente do que nós. Além disso, vê aquilo que os nossos sentidos limitados não nos permitem ver. Penetrando, ele mesmo, a matéria, descobre o que a matéria oculta à nossa visão.”

 

18) Há uma multidão de Espíritos em torno de nós.

 

“Os Espíritos não são, pois, seres vagos e indefinidos, conforme as abstratas definições da alma a que nos referimos acima. São seres reais, determinados, circunscritos, que gozam de todas as nossas faculdades e de outras que nos são desconhecidas, porque inerentes à sua natureza. Eles têm as qualidades da sua matéria peculiar e constituem o mundo invisível que povoa o Espaço, envolvendo-nos e se acotovelando incessantemente conosco. Suponhamos desfeito por um instante o véu material que os oculta aos nossos olhos. Ver-nos-íamos cercados por uma multidão de seres que vão e vêm, agitam-se em torno de nós e nos observam, do mesmo modo que faríamos se nos encontrássemos em uma assembleia de cegos. Para os Espíritos, nós somos os cegos e eles são os videntes.”

 

19) É normal o estranhamento de parecer algo novo ao desencarnado, já que ele mesmo habita esse ambiente e já experimentou inúmeras vezes o estado da erraticidade.

 

“Dissemos que ao entrar em sua nova vida o Espírito precisa de algum tempo para se reconhecer; que ali tudo lhe é estranho e desconhecido. Perguntarão como pode ser assim se ele já teve outras existências corpóreas. Essas existências foram separadas por intervalos durante os quais ele habitou o mundo dos Espíritos. Então esse mundo não lhe deve ser desconhecido, desde que não o vê pela primeira vez.”

 

20) No período de perturbação após a morte, as ideias do Espírito são vagas e confusas, não conseguindo distinguir com facilidade a vida espírita da corpórea. Somente após recobrar a plena consciência suas lembranças das sensações ali experimentadas afloram.

 

“Várias causas contribuem para que essas percepções, embora já experimentadas, lhe pareçam novas. Como dissemos, a morte é sempre seguida por um instante de perturbação, mas que pode ser de curta duração. Nesse estado suas ideias são sempre vagas e confusas; a vida corpórea se confunde, até certo ponto, com a vida espírita e ele ainda não pode separá-las em seu pensamento. Dissipada a primeira impressão, as ideias pouco a pouco se aclaram e a ele volta, mas gradativamente, a lembrança do passado, pois essa memória jamais irrompe bruscamente. Só quando ele se encontra inteiramente desmaterializado é que o passado se desdobra à sua frente, como um espectro saindo de um nevoeiro. Só então ele se recorda de todos os atos de sua última existência, depois das existências anteriores e de suas várias passagens pelo mundo dos Espíritos. Compreende-se, pois, que durante um certo tempo esse mundo lhe pareça novo, até que ele se tenha reconhecido completamente e recuperado de maneira precisa a lembrança das sensações ali experimentadas.”

 

21) À medida que se eleva e se depura, o horizonte consciencial do Espírito se amplia e com ele, o círculo de suas ideias e percepções, por isso o despertar após cada desencarnação pode parecer novo.

 

“A essa causa, entretanto, deve juntar-se outra, não menos importante. O estado do Espírito, como Espírito, varia extraordinariamente na razão de sua elevação e de seu grau de pureza. À medida que se eleva e se depura, suas percepções e suas sensações se tornam menos grosseiras; adquirem mais acuidade, mais sutileza, mais delicadeza; vê, sente e compreende coisas que não poderia ver, sentir ou compreender numa condição inferior. Ora, cada existência corpórea sendo para ele uma oportunidade de progresso, lança-o a um meio novo para ele porque, se tiver progredido, encontra-se entre Espíritos de outra ordem, cujos pensamentos e hábitos são todos diferentes. Acrescente-se a isso que tal depuração lhe permite, sempre como Espírito, penetrar nesses mundos inacessíveis aos Espíritos inferiores, do mesmo modo que nos salões da alta Sociedade não têm acesso as pessoas mal-educadas. Quanto menos esclarecido, tanto mais limitado é o seu horizonte. À medida que se eleva e se depura, esse horizonte se amplia e com ele, o círculo de suas ideias e percepções.

A seguinte comparação pode facilitar-nos a compreensão. Suponhamos um camponês bruto, ignorante, vindo a Paris pela primeira vez. Poderá conhecer e compreender a Paris dos meios sábios e elegantes? Não, porque frequentará apenas as pessoas de sua classe e os bairros por elas habitados. Mas se no intervalo entre a primeira e uma segunda viagem esse camponês se desenvolveu e adquiriu instrução e boas maneiras, outros serão os seus hábitos e as suas relações. Então verá um mundo novo, em nada semelhante à Paris de outrora.

Dá-se o mesmo com os Espíritos, mas nem todos experimentam o mesmo grau de incerteza. À medida que progridem, suas ideias se desenvolvem e a memória se apura. Familiarizam-se previamente com a sua nova situação e seu regresso ao convívio dos outros Espíritos já nada tem que lhes cause admiração. Encontram-se novamente em seu meio normal e, passado o primeiro momento de perturbação, se reintegram quase imediatamente.

Essa é a situação geral dos Espíritos no estado que chamamos de erraticidade.”

 

22) Conforme o nível evolutivo e condições psíquicas, os Espíritos encontram-se de diferentes maneiras e possuem diferentes ocupações nos mundos físico e espiritual.

 

“Mas o que fazem nesse estado? Como passam o tempo? Isto é de um interesse capital para nós. São eles mesmos que vão responder, como foram eles que deram as explicações que acabamos de transmitir, de vez que nada disto é fruto de nossa imaginação. Não se trata de um sistema saído de nosso cérebro. Julgamos pelo que vemos e ouvimos. Posta de lado qualquer opinião relativamente ao Espiritismo, hão de convir que esta teoria sobre a vida de além-túmulo nada contém de irracional. Ela apresenta uma sequência e um encadeamento perfeitamente lógicos, que fariam honra a qualquer filósofo. Laboraríamos em erro se acreditássemos que a vida espírita é uma vida ociosa.

Ao contrário, ela é essencialmente ativa e todos nos falam de suas ocupações. Essas ocupações necessariamente diferem, conforme seja o Espírito errante ou encarnado.”

 

23) As ocupações dos encarnados decorrem das próprias características materiais dos mundos em que se encontram.

 

“No estado de encarnação, elas são relativas à natureza dos mundos habitados; às necessidades que dependem do estado físico e moral desses mundos, bem como da organização dos seres vivos. E não é disso que devemos tratar aqui. Falaremos apenas dos Espíritos errantes.”

 

24) Durante a erraticidade, os Espíritos atuarão conforme o grau evolutivo e respectivos interesses e possibilidades. Quanto mais evoluído, maior a sua atuação no universo, influenciando no progresso de cada mundo. Também podem atuar favoravelmente a um grupou ou a um encarnado, na condição de Espírito protetor, por exemplo. Não estão circunscritos a determinado local. Espíritos bons vão a todo lugar onde sua presença pode ser útil para dar conselhos, inspirar boas ideias, animar os desesperançados e fortalecer os fracos.

 

“Entre os que já atingiram certo grau de desenvolvimento, uns velam pela realização dos desígnios de Deus nos grandes destinos do Universo; dirigem a marcha dos acontecimentos e concorrem ao progresso de cada mundo. Outros tomam os indivíduos sob sua proteção, constituindo-se em seus gênios tutelares e anjos da guarda. Acompanham-nos desde o nascimento até a morte, buscando encaminhá-los pela estrada do bem. Sentem-se felizes quando seus esforços são coroados de sucesso. Alguns se encarnam em mundos inferiores, para neles realizar missões de progresso. Pelo trabalho, pelo exemplo, pelos conselhos e pelos sentimentos, procuram fazer que uns progridam nas ciências e nas artes, outros na moral. Então se submetem voluntariamente às vicissitudes de uma vida corpórea por vezes penosa, com o objetivo de fazer o bem, e o bem que fazem lhes é contado. Muitos, enfim, não têm qualquer atribuição especial. Eles vão a todo lugar onde sua presença pode ser útil para dar conselhos, inspirar boas ideias, animar os desanimados, fortalecer os fracos e castigar os presunçosos.”

 

25) O campo de atuação dos Espíritos desencarnados vincula-se, diretamente, aos encarnados.

 

“Se considerarmos o número infinito de mundos que povoam o Universo e o número incalculável de seres que os habitam, compreenderemos que os Espíritos têm muito em que se ocupar. Essas ocupações, entretanto, nada têm para eles de penoso. Exercem-nas com alegria, voluntariamente, sem constrangimento, e sua felicidade é triunfar naquilo que empreendem. Ninguém pensa numa ociosidade eterna, que seria um verdadeiro suplício.”

 

26) Organização dos Espíritos desencarnados superiores se dá no espaço, não em lugares circunscritos ou determinados. Encarnados emancipados podem participar, conforme as condições.

 

“Quando as circunstâncias o exigem, reúnem-se em conselho; deliberam sobre a marcha a seguir, conforme os acontecimentos; dão ordens aos Espíritos que lhes são subordinados e, a seguir, vão para onde o dever os chama. Essas assembleias são mais gerais ou mais particulares, conforme a importância do assunto. Nenhum lugar especial ou circunscrito é escolhido para essas reuniões. O Espaço é o domínio dos Espíritos. Contudo, elas se realizam de preferência nos mundos que lhes são o objeto. Os Espíritos encarnados, que neles estão em missão, delas participam, conforme a sua elevação. Enquanto o corpo repousa, vão receber conselhos dos outros Espíritos e, por vezes, receber ordens relacionadas com a conduta que devem ter como homens. É verdade que ao despertar não guardam lembrança muito nítida daquilo que se passou, mas têm a intuição, que os leva a agir como se fosse por sua própria iniciativa.”

 

27) Espíritos desencarnados menos evoluídos atuam com maior limitação, não com a mesma abrangência de seres mais evoluídos, mas limitando suas ações a determinado mundo e, geralmente, a pessoas. Quanto mais presos às lembranças mundanas, mas restrita a compreensão sobre a realidade que vivem.

 

“Descendo na hierarquia, encontramos Espíritos menos elevados, menos depurados e, consequentemente, menos esclarecidos, mas nem por isso piores e que, numa esfera de atividade mais restrita, desempenham funções análogas. Em vez de estender-se a diferentes mundos, sua ação é antes exercida num mundo especial e relacionada com o seu grau de desenvolvimento. Sua influência é mais individual e tem como objetivo coisas de menor importância. Vem a seguir a multidão de Espíritos vulgares, mais ou menos bons, mais ou menos maus, que pululam em torno de nós. Esses estão ligeiramente acima da Humanidade, cujas nuanças representam e como que refletem, pois têm todos os vícios e virtudes que a caracterizam. Em muitos deles encontramos os gostos, ideias e inclinações que possuíam em vida. Suas faculdades são limitadas, seu julgamento falível como o dos homens e por vezes errôneo e carregado de preconceitos.”

 

28) Sem o entorpecimento dos sentidos provocados pelo corpo físico, os Espíritos sentem com mais intensidade as consequências morais dos atos praticados quando estavam encarnados.

 

“Noutros é mais desenvolvido o senso moral. Mesmo sem grande superioridade nem grande profundidade, julgam com mais critério, por vezes até condenando aquilo que fizeram, disseram ou pensaram em vida. Aliás, há uma coisa notável: é que, mesmo entre os Espíritos mais comuns, de um modo geral, os sentimentos são mais puros como Espíritos do que como homens. A vida espírita os esclarece quanto aos seus defeitos e, salvo poucas exceções, arrependem-se amargamente e lamentam o mal que fizeram, pois sofrem mais ou menos cruelmente as suas consequências.”

 

29) Em geral, os desencarnados estão mais propensos a reconhecerem suas necessidades morais.

 

“Vimos alguns desses que não eram melhores do que tinham sido em vida. Nunca, porém, os vimos piores. O endurecimento absoluto é muito raro e apenas temporário, porque mais cedo ou mais tarde acabam lamentando a sua posição.”

 

30) Sem as vestes carnais, os Espíritos desejam com mais veemência o progresso moral reconhecendo ser esse o caminho necessário para deixarem sua inferioridade.

 

“Pode-se, pois, dizer que todos aspiram ao aperfeiçoamento, porque todos compreendem que é este o único meio de saírem da sua inferioridade. Instruir-se e esclarecer-se, eis a sua grande preocupação e eles se sentem felizes quando podem a isto acrescentar pequenas missões de confiança que os elevam aos seus próprios olhos.”

 

31) Os desencarnados se reúnem por afinidade, conforme seus interesses e nível moral. Acompanham diretamente as atividades dos encarnados e, quando possível, analisam seus comportamentos para prepararem com mais objetividade a vida futura.

 

“Também eles têm as suas assembleias, de maior ou menor importância, conforme a natureza de seus pensamentos. Falam-nos, veem e observam aquilo que se passa. Participam de nossas reuniões, de nossos jogos, de nossas festas e de nossos espetáculos, assim como de nossas ocupações sérias. Escutam as nossas conversas, os mais levianos como divertimento ou para rir à nossa custa, ou ainda para nos pregarem uma peça, desde que o possam; os outros, a fim de instruir-se.

Observam os homens, analisam o seu caráter e fazem aquilo a que eles chamam estudo dos costumes, com o fito de escolherem a sua existência futura.”

 

32) A compreensão do contexto após a desencarnação, depende da extensão do período de perturbação em que se encontra o Espírito. Quanto mais evoluído moral e intelectualmente, mais rápida é a adaptação. Espíritos ainda presos nas paixões e sensações da matéria possuem maior dificuldade de adaptação, pois gostariam de saciar suas paixões, mas não conseguem.

 

“Vimos o Espírito no momento em que, deixando o corpo, entra em sua vida nova. Analisamos as suas sensações e seguimos o seu desenvolvimento gradual das ideias. Os primeiros momentos são empregados em reconhecer-se e compreender o que se passa com ele. Numa palavra, ele, por assim dizer, experimenta as próprias faculdades, como a criança que pouco a pouco vê crescerem-lhe as forças e os pensamentos. Falamos dos Espíritos vulgares, pois os outros, como já dissemos, estão de certo modo e previamente identificados com o estado espírita, que nenhuma surpresa lhes causa senão a alegria de se encontrarem livres dos entraves e dos sofrimentos corporais. Entre os Espíritos inferiores muitos sentem saudades da vida terrena, porque sua situação como Espíritos é cem vezes pior. Eis porque buscam distrair-se com a visão daquilo com que outrora se deliciavam. Essa visão, contudo, lhes é um suplício, porque sentem desejos mas não podem satisfazê-los.”

 

33) A necessidade de progredir moral e intelectualmente incentiva os desencarnados ao trabalho para o próprio aprimoramento. Alguns já estão mais conscientes sobre essa necessidade de progresso do que outros, mas invariavelmente todos a perceberão.

 

“Entre os Espíritos é geral a necessidade de progresso. Isto os excita ao trabalho por seu melhoramento, de vez que compreendem que é esse o preço de sua felicidade. Mas nem todos sentem essa necessidade no mesmo grau, principalmente no início. Alguns chegam mesmo a comprazer-se numa espécie de vagabundagem, aliás de pouca duração; logo a atividade se torna para eles uma necessidade imperiosa, à qual, aliás, são arrastados por outros Espíritos que neles estimulam os sentimentos do bem.”

 

34) Espíritos desequilibrados pelo desejo do mal tentam atingir encarnados moralmente frágeis.

 

“Vem a seguir o que se pode chamar de escória do mundo espírita, constituída de todos os Espíritos impuros, cuja preocupação única é o mal. Sofrem e desejariam que todos sofressem como eles. A inveja lhes torna odiosa toda superioridade. O ódio é a sua essência. Não podendo culpar disso os Espíritos, investem contra os homens, atacando os que lhes parecem mais fracos. Excitar as paixões ruins; insuflar a discórdia; separar os amigos; provocar rixas; fazer que os ambiciosos pavoneiem o seu orgulho, pelo prazer de abatê-los em seguida; espalhar o erro e a mentira, numa palavra, desviar do bem, tais são os seus pensamentos dominantes.”

 

35) O nível evolutivo da Terra ainda atrai, por afinidades, Espíritos com o desejo do mal. Ninguém, entretanto, está desamparado do auxílio de Espíritos benévolos. Basta persistimos no bem para se aumentar a afinidade com os Bons Espíritos e afastar os Espíritos ainda desequilibrados no mal.

 

“Mas por que permite Deus que assim seja? Deus não tem que nos prestar contas. Dizem-nos os Espíritos superiores que os maus são provações para os bons e que não há virtude onde não há vitória a conquistar. Aliás, se esses Espíritos malfazejos se acham na Terra, é que aqui encontram eco e simpatias. Consola-nos o pensamento de que acima deste lodo que nos cerca existem seres puros e benevolentes que nos amam, nos sustentam, nos encorajam e nos estendem os braços, atraindo-nos, a fim de nos conduzirem a mundos melhores, onde o mal não encontra acesso, desde que saibamos fazer o que for preciso para merecê-lo.”