Educador Espírita
sexta-feira, 17 de junho de 2022
Cândido e o abacateiro
quarta-feira, 4 de maio de 2022
A fé customizada pelas paixões ideológicas
A fé customizada pelas paixões
ideológicas
Marco Milani
(Texto publicado na
Revista Senda – FEEES, mai/jun 2022, p.5-6)
Ao
longo de seu discurso à comunidade de espíritas das cidades francesas de Lyon e
Bordeaux, em 1862, Kardec[1]
categorizou os adeptos em três grandes grupos: I) Os que creem pura e
simplesmente nos fenômenos das manifestações, mas que deles não deduzem
qualquer consequência moral; II) Os que percebem o alcance moral, mas o aplicam
aos outros e não a si mesmos; III) Os que aceitam pessoalmente todas as
consequências da doutrina e que praticam ou se esforçam por praticar sua moral.
O
verdadeiro espírita, portanto, aplica em si mesmo o que muitos apenas
manifestam em discursos normativos carregados de lições enobrecedoras, mas
vazios de ações.
Entre
cada uma dessas categorias poderiam ser apontadas múltiplas subcategorias,
proporcionais à maturidade moral e intelectual dos indivíduos. Uma delas seria
formada por aqueles que apresentam-se como adeptos, porém adequam os ensinos aos
próprios interesses e não raramente procuram legitimar suas opiniões
particulares sobre diversos assuntos polêmicos alegando essas estarem embasadas
no Espiritismo. Tal é o espírita por conveniência, que customiza a fé conforme
seus interesses e ambições.
A
fé customizada é adotada em detrimento da coerência doutrinária por novos
sofistas que distorcem a realidade para moldar a aparência da verdade. Tal
distorção decorre, muitas vezes, das paixões que o suposto adepto carrega e
direcionam sua cosmovisão e consequente argumentação. Ao invés de servir-se das
premissas doutrinárias para se autoconhecer, aprimorar-se e repensar suas
crenças anteriores com natural mudança de atitudes, ele faz o inverso, partindo
de arraigadas convicções ideológicas para encaixar o Espiritismo nessas propostas.
O que não couber ou for divergente, simplesmente ignora-se ou reinterpreta-se.
Assim ocorre com as paixões políticas. Em um mundo de expiações e provas, não faltam antigas propostas revolucionárias sociais que prometem a concretização do reino de justiça na Terra desde que seguida determinada cartilha já idealizada por intérpretes da história e planejadores do comportamento coletivo. Quase a totalidade dessas receitas utópicas de felicidade desconhecem o processo interexistencial de desenvolvimento e pregam a imposição de relações econômicas artificiais e coletivistas como aquelas que transformariam moralmente o indivíduo, mas que acabam por sufocá-lo. Para esses, o Espírito Erasto[2] assim se manifesta.
Acabo
de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil deter-me um pouco nela, porque
absolutamente não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, e também
porque, ao contrário, repelimos com energia tudo quanto pareça ligar-se às
prescrições de um comunismo antissocial; antes de tudo, somos essencialmente
propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos
encarnados; por conseguinte, inimigos declarados de tudo quanto se aproxime
dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos.
Fruto de ilusões utópicas, muitos espíritas por conveniência selecionam e reinterpretam conceitos doutrinários para legitimar o modelo político que carregam de sistemas de relações socioeconômicas que dependem da perfeição moral de todos.
As
questões transitórias sociais recorrentemente estavam presentes nos diálogos de
Allan Kardec com os Espíritos e o respectivo ensino doutrinário contém os
elementos fundamentais para a construção de uma sociedade terrena mais justa e
fraterna, lastreada no conhecimento da realidade espiritual e da finalidade da
reencarnação.
A
contribuição primordial do Espiritismo no progresso social evidencia-se na
condição de um poderoso agente de transformação moral da humanidade, sem
qualquer enquadramento em concepções político-ideológicas já concebidas.
Como
filosofia interexistencialista, o Espiritismo não se limita às relações do
mundo material, pois expande a compreensão da realidade e desloca a finalidade
última do ser para a conquista do verdadeiro Reino de Deus em si mesmo. As
misérias humanas são reflexos do nível moral dos indivíduos, confrontando-os
com as chagas do orgulho e do egoísmo, incentivando-os a exercitar a
inteligência e praticar a caridade em seu verdadeiro sentido, em harmonia com
as leis divinas.
O
Espiritismo, ao demonstrar a responsabilidade de cada um sobre suas ações e
respectivas consequências durante o processo reencarnatório em plena
conformidade com as leis naturais, afasta-se da míope perspectiva materialista
histórica que concebe o homem como produto de seu meio e ignora sua bagagem
reencarnatória, suas tendências e necessidades evolutivas para a realização
espiritual. A expressão “a cada um segundo suas obras” resume a essência meritocrática
do esforço individual na jornada interior em busca da verdadeira felicidade,
segundo o Espiritismo.
A
confiança e a crença racional na justiça divina e no futuro pautado pelos
benefícios consequentes da prática da caridade, aqui entendida como a ação
benevolente, indulgente e voltada ao perdão das ofensas, deveriam nortear a
conduta equilibrada do adepto, promovendo conforto e coragem para superar os
desafios materiais. A conduta do espírita espelha o seu próprio progresso moral
nas obras realizadas e faz-se reconhecido como coerente aos princípios de paz e
solidariedade que professa.
A
fé raciocinada, sob esse ângulo, analisa criticamente e admite a consistência
do conjunto de ensinos apresentados por Allan Kardec, convidando o adepto da
filosofia espírita a agir conforme os princípios doutrinários, reduzindo e
atenuando hábitos e posturas orgulhosas e egoístas. Certamente, em um mundo de
expiações e provas, não se deve exigir a súbita perfeição e o progresso moral é
paulatino e proporcional aos esforços e maturidade de cada um.
A
transformação social, para Kardec, não ocorrerá de maneira impositiva e
totalitária ao indivíduo, mas de maneira oposta, decorrente da melhoria do
indivíduo respeitando-se a liberdade de consciência de cada um. Conforme afirma-se
na edição de fevereiro de 1862 da Revista Espírita[3],
tem-se:
Procurai
no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar: eis o essencial. Quando os homens
forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência
natural; trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais
sólidos fundamentos de todas as melhoras, e deixareis a Deus o cuidado de fazer
com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é
ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos
que quiserem vos arrastar por uma via perigosa.
Ao crer somente naquilo que está em concordância com suas paixões político-ideológicas e rejeitar tudo o que na doutrina espírita as contrarie, o adepto por conveniência exemplifica a postura egoísta e orgulhosa que leva à insensatez doutrinária. A militância política, com o intuito de ocupar espaços e disseminar suas propostas para convencer o maior número de pessoas, desrespeita a liberdade de pensamento e livre-arbítrio do próximo nas instituições espíritas e provoca cismas.
Allan
Kardec, dirigindo-se aos espíritas lioneses em 1862, já alertava sobre a armadilha
preparada por adversários do Espiritismo que objetivavam levar aos grupos
espíritas a discussão política[4].
Devo
ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar
comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da
doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e
que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não
vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões
tudo quanto se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito,
as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar
à moral, quanto esta for boa.
Atuando como promotores de cizânia em nome de paixões políticas variadas, os supostos adeptos que customizam a fé lançam-se com entusiasmo ao proselitismo de suas convicções pessoais camuflando-as de assuntos doutrinários, fomentando as discussões contra ou a favor de governantes, defendendo ou atacando condutas alheias, ou ainda, tentando fazer crer que só quem compartilha de suas paixões político-ideológicas poderia ser considerado um espírita legítimo.
Que
nesses tempos agitados pela polarização política, consigamos entender o alerta
de Kardec sobre os cuidados no trato das paixões e o respeito à liberdade de
pensamento e exemplificarmos em nós mesmos o comportamento que gostaríamos que
outros tivessem.
________________________________
[1]
Livro Viagem Espírita em 1862. Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos
espíritas de Lyon e Bordeaux. Discurso I
[2]
Trecho extraído da epístola de Erasto aos espíritas lioneses - 1861. Um alerta
contra as utopias materialistas. Revista Espírita, out/1861.
[3]
Trecho extraído do texto Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião
do Ano-Novo, Revista Espírita, Revista Espírita, fev/1862
[4]
Ibidem
domingo, 1 de maio de 2022
Os tempos são chegados, mas que tempos são esses?
Os
tempos são chegados, mas que tempos são esses?
Marco
Milani
(Texto
publicado na Revista Dirigente Espírita, mai/jun 2022 - ed. 189, p. 62-63)
Em diversas religiões, o “fim do mundo”
é um evento previsto em seus textos sagrados e nas tradições orais. As
predições escatológicas povoam as narrativas de igrejas e comunidades
salvacionistas, geralmente com a apresentação de um cenário que marca a divisão
entre bons e maus, eleitos e rejeitados, salvos e condenados. Não somente as
linhas cristãs assumem um período que demarca a transição de uma era em
decadência para outra renovada, mas também o Hinduísmo, o Zoroastrismo, o Islamismo
e o Judaísmo, dentre outras.
O Espiritismo, como filosofia
espiritualista, serve-se dos ensinos doutrinários apresentados por Kardec para a
análise do contexto histórico e cultural das tradições, basicamente da
judaico-cristã, para lançar luzes sobre a compreensão racional da marcha da
humanidade.
No
capítulo 18 da obra A Gênese, de Allan Kardec, intitulado “Os tempos são chegados”
esclarece-se que há na Terra dois tipos de progresso: o físico e o moral.
Enquanto o primeiro se refere às transformações geológicas que o planeta passa,
o segundo diz respeito ao aprimoramento dos Espíritos encarnados e
desencarnados que a povoam, tomando a conduta de Jesus como modelo e guia.
Como o homem sempre progride e nunca
retrograda em seu processo evolutivo, por mais imperceptível que seja o avanço
moral sob as lentes de uma única encarnação, é no conjunto das experiências do
ser que evidencia-se o seu desenvolvimento. A fieira reencarnatória do Espírito
faz com que sua jornada seja única e individualizada, ocupando diferentes orbes
e compartilhando vivências com outros seres em uma ampla rede solidária que
constitui a comunidade espiritual.
Materialmente, planetas formam-se e
colapsam-se. Estima-se que a idade da Terra seja de 4,5 bilhões de anos, assim
como daqui a 1,8 bilhão de anos a vida orgânica cessará e em cerca de 5 bilhões
de anos todo o planeta será absorvido pela expansão do Sol.[1]
Para o Espírito, entretanto, bilhões
de anos, trilhões de séculos ou qualquer medida temporal não alteram sua
perenidade, acrescentando-se a situação de que o mundo espiritual preexiste e
sobrevive ao mundo físico, portanto a idade do universo materialmente conhecido
não afeta a realidade espiritual. A própria noção de tempo que possuem os
encarnados desaparece perante a imortalidade da alma e, quanto mais evoluído é
o Espírito, os conceitos de passado, presente e futuro assumem características
que estamos longe de compreender.
No universo, tudo está em harmonia
conforme a vontade soberana de Deus e o que parece ser uma perturbação nada
mais é do que uma percepção limitada do homem que não compreende o todo[2]. Considerando que o
progresso é uma Lei da Natureza, depreende-se que todos realizarão a perfeição
de que o Espírito é suscetível e o nível moral dos habitantes da Terra atingirá
um estágio de regeneração, superando a classificação atual de mundo de
expiações e provas, conforme escala evolutiva.[3]
Uma
das percepções limitadas (e equivocadas) do homem é a suposição de que todo o
progresso do Espírito ocorre na Terra. Desde o momento em que o Espírito desperta
para a razão e moralidade, ele assume responsabilidade sobre os seus atos e
aprende com as respectivas consequências, sendo impulsionado pelas próprias
Leis Naturais a autoconhecer-se e atuar em consonância com a própria
consciência. Para tanto, o Espírito encarna em inúmeros corpos e condições
físicas no universo, a partir dos mundos primitivos. A Terra é um minúsculo
ponto nessa trajetória e os corpos aqui existentes não contêm todas as
desconhecidas constituições físicas possíveis. Exercita-se, inadvertidamente, a
especulação de qual seria o animal mais inteligente neste planeta que poderia vincular-se
à transição para o homem mais primitivo, ignorando-se o resto do universo.
Mas
afinal, que tempos são esses que foram anunciados pelos Espíritos a Kardec?
Como
referência evolutiva, quanto mais próximo da autorrealização espiritual pelo
seu desenvolvimento moral e intelectual, mais feliz será o ser humano. Uma vez
que todos se autorrealizarão, inexoravelmente, todos superarão, por mérito
individual, a necessidade de experiências reencarnatórias em locais dominados pelas
sensações brutas e paixões para vivenciar o convívio norteado pela sabedoria e
pela fraternidade. Como em qualquer mundo, são os habitantes que caracterizam o
estágio evolutivo da Terra. Atualmente, por força do progresso, vislumbra-se o
cenário no qual a prática da caridade em sua verdadeira acepção e o
conhecimento da realidade promoverão o bem comum.
A
expressão “os tempos são chegados” destaca que os homens e, consequentemente,
as sociedades nas quais participam, estão em dinâmico aprimoramento moral e
intelectual, devendo atrair e serem atraídos para os contextos necessários à
autorrealização. Por uma questão de afinidade e harmonia natural, os Espíritos
conviverão entre si e habitarão os planetas mais condizentes com o próprio
nível evolutivo. Entre uma e outra categoria de mundos habitados, há inúmeras
gradações. Assim, mais importante que a classificação moral que um orbe pode
ter, é saber que o tempo já chegou para cada indivíduo demonstrar o esforço
individual para construir o verdadeiro Reino de Deus dentro de si mesmo, seja
na Terra ou em mundos que nem suspeitamos existir.
Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2022/05/de189.pdf
[1] Ver
Rushby, A. J. et al. (2013). Habitable Zone Lifetimes of Exoplanets around
Main Sequence Stars. Astrobiology. V. 13, N. 9. Disponível em https://www.liebertpub.com/doi/abs/10.1089/ast.2012.0938?journalCode=ast
[2] Ver Kardec, A. (2021) A gênese. Cap. 18, item 4. Tradução da 4ª edição francesa. São Paulo: USE.
[3]
Ver Kardec, A. (2003). O evangelho segundo o Espiritismo. Cap. 3, item 4. São
Paulo: LAKE.
A base doutrinária da USE
A
base doutrinária da USE
Marco Milani
(Texto
publicado na Revista Dirigente Espírita, mai/jun 2022 - ed. 189, p. 13-16)
A fé raciocinada, além de ser um dos
pilares espíritas, expressa uma mudança de paradigma sobre o conhecimento de
Deus, de suas criaturas e das leis naturais, rompendo com a crença cega sobre a
origem e o destino do homem.
O Espiritismo adentrou na vida de
milhões de brasileiros, adeptos ou não, por meio da divulgação de livros e
produções artísticas com a temática espírita. Nessa perspectiva, é esperado que
os estudiosos das obras de Allan Kardec e, ainda, leitores de obras de autores secundários,
formem uma ideia mais ou menos justa, conforme o entendimento individual, da
realidade espiritual e das relações naturais que regem todos os seres.
Se, por um lado, Kardec é a
referência espírita primária a ser considerada no mundo, por outro, não se pode
deixar de reconhecer a influência de autores como Leon Denis, Gabriel Delanne, José
Herculano Pires, Deolindo Amorim, Julio Abreu Filho e Carlos Imbassahy, dentre
muitos outros, na divulgação doutrinária no Brasil. Ressalta-se o impacto
gerado pela vasta produção mediúnica de Francisco Cândido Xavier e de Divaldo
Pereira Franco, ambos responsáveis pela venda de centenas de títulos em vários
países.
Metodologicamente, entretanto, as
obras fundamentais de Allan Kardec diferenciam-se de todas as demais, pelo fato
de lastrearem-se na universalidade do ensino dos Espíritos, ou seja,
representam a convergência das ideias obtidas em várias fontes independentes e
não se tratam de opiniões ou perspectivas de fonte única. Nas obras de Kardec
edificou-se o corpo teórico válido do Espiritismo e desenvolveu-se a sua
aplicação.
Desde a sua fundação, em 1947, a
União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE) possui o
compromisso estatutário de unificação das instituições com a difusão do
Espiritismo baseado nas obras kardequianas. Como entidade federativa, a
condição necessária para que o centro espírita integre seu quadro de entidades
unidas é, justamente, que suas atividades pautem-se pela Doutrina Espírita,
apresentada por Allan Kardec.
Em consulta às atas das reuniões do
Conselho Deliberativo disponibilizadas no acervo digital da USE[1], a preocupação com o
alinhamento doutrinário e o combate às infiltrações de conceitos e práticas
estranhas foram registrados consistentemente nas falas de inúmeros
colaboradores nos últimos setenta anos. Conselheiros como Herculano Pires e Ary
Lex, por exemplo, são reconhecidos pelas valiosas contribuições nesse sentido.
Outro exemplo de valorização da base
doutrinária do Espiritismo foi a Campanha Comece pelo Começo[2], lançada pela USE em 1972 e
posteriormente abraçada pelo Conselho Federativo Nacional. Seu propósito
principal, diante do grande interesse pelo Espiritismo fomentado pela
participação de Francisco Cândico Xavier no programa Pinga-Fogo da TV Tupi, foi
o de oferecer ao público o roteiro seguro para se conhecer a doutrina pelas
obras fundamentais de Allan Kardec. Em momento algum essa campanha objetivou
desmerecer a produção de outros autores, ainda que de fontes únicas.
A farta literatura sobre a temática,
por autores encarnados ou desencarnados, oferece interessante oportunidade para
a discussão dos princípios e valores espíritas, além de contribuir para a
própria divulgação do Espiritismo, mantendo-se a prudência de se analisar
criticamente a coerência doutrinária de seu respectivo conteúdo.
O esquema lógico utilizado
atualmente pelo Departamento de Doutrina para favorecer a análise do
alinhamento doutrinário de conceitos ou práticas é o seguinte:
Em síntese, analisa-se se o conteúdo
está em concordância com os princípios e valores doutrinários contidos nas
obras fundamentais de Allan Kardec ou se apresenta outro embasamento. Caso
trate-se de conceito ou informação que contrarie ou não possua respaldo
doutrinário, como uma “nova revelação”, verifica-se se isso possui evidência
objetiva amparada por observação científica ou critério metodológico (como a
universalidade, por exemplo). Se esse conteúdo referir-se a fonte única ou que
não possa ser comprovado, segue-se a recomendação de prudência e não é
considerado um ensino ou prática doutrinária, aguardando que evidências surjam
para novamente ser analisado.
Certamente, o dinamismo esperado
pelo avanço do conhecimento gera ansiedade em muitos adeptos que tendem a
abraçar novidades e informações de fonte única com alguma facilidade, enquanto
outros mostram-se mais ponderados. Nesse sentido, incentiva-se o diálogo
fraterno objetivando o esclarecimento doutrinário sobre os pontos que possam
contar com interpretações pessoais variadas.
Reunindo,
atualmente, cerca de 1.300 centros espíritas distribuídos pelo estado de São
Paulo, o estímulo ao estudo aprofundado do Espiritismo e sua aplicação prática
nas atividades das diferentes instituições com as respectivas consequências
morais aos indivíduos são compromissos useanos.
Análise
racional e prudência, portanto, marcam a postura doutrinária da USE, desde sua
fundação.
[1] https://usesp.org.br/a-usesp/memoria/
[2] Revista
Dirigente Espírita, ed. 187, p. 8. https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2022/01/DE187-C.pdf
domingo, 24 de abril de 2022
A polêmica da alimentação animal e sua relação com a evolução espiritual
A POLÊMICA DA ALIMENTAÇÃO ANIMAL
E SUA RELAÇÃO COM A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL
Fernando de Oliveira Porto
Departamento de Doutrina - USE SP
(Texto publicado na Revista Dirigente Espírita - ed. 186 - nov/dez 2021 - p.40 a 42)
O consumo da alimentação animal é um assunto bastante em voga hoje em
dia e abrange diversos aspectos, não somente relacionados à saúde humana, como
também sobre sustentabilidade e mesmo aspectos éticos envolvidos. Para cada um
desses temas, no entanto, observa-se divergência entre os especialistas sobre o
impacto na saúde do ser humano e no equilíbrio da natureza.
Não nos compete analisar as questões relacionadas à nutrição
propriamente dita, afeita aos especialistas no tema. O que motiva a nossa
discussão é a defesa, por parte de determinados grupos de espíritas, da
introdução da necessidade da abstenção da alimentação da proteína animal para o
progresso do Espírito, como um princípio do Espiritismo.
Em geral, essa defesa se baseia no posicionamento de alguns Espíritos no
cenário do Movimento Espírita Brasileiro, ao tecerem severas críticas ao
consumo da carne, atribuindo consequências deletérias ao Espírito após o desencarne,
além de ressaltarem como um ato de crueldade do ser humano a exploração dos
animais.
Por maior respeitabilidade que esses irmãos espirituais mereçam da nossa
parte, considera-se, para efeito da diretriz estabelecida pela coerência
doutrinária, privilegiar-se os ensinamentos exarados na Codificação Espírita.
Nestas obras, Allan Kardec adotou o controle universal do ensino dos
Espíritos, evitando-se as opiniões isoladas e sistemáticas.
Em O Livro dos Espíritos, nas perguntas 722 a 724, foi abordada a
questão da alimentação de maneira bastante lógica e equilibrada. Os Espíritos
afirmam que todo o alimento que não prejudique a saúde do ser humano é
permitido para o consumo. Acrescentam, ainda, que em face das leis de
conservação e do trabalho, faz-se imprescindível alimentar-se bem, em benefício
da saúde e da energia, pois a “carne alimenta a carne”, de acordo com a nossa
constituição física. Somente em um caso, esclarecem eles, a abstenção do
alimento, seja ele de qualquer natureza, é meritória: quando em benefício dos
outros, isto é, “quando há privação séria e útil”.
Os Espíritos classificam de hipocrisia a privação apenas aparente
de qualquer coisa, como uma espécie de sinalização de virtude, aliás algo muito
comum em nossos dias. Vive-se de aparências e intolerância perante estilos de
vida diferentes dos nossos. É por isso que o egoísmo e o orgulho são
os grandes males a serem combatidos.
Os amigos espirituais vão mais além. Em O Céu e o Inferno, no
item intitulado Cuidar do Corpo e do Espíritos, ao esclarecerem a
necessidade dos cuidados com o envoltório material, em razão de sua influência
sobre a alma, afirmam que o corpo precisa “estar são, disposto, forte”, a fim
de que a alma “viva, divirta-se e chegue mesmo a conceber as ilusões da
liberdade”.
Mas, alegam os críticos, e quanto à afirmação de Bernard Palissy, na
Revista Espírita de abril de 1858, de que os habitantes de Júpiter se alimentam
exclusivamente de fonte vegetal, pois “o homem é o protetor dos animais”? Não
seria um indicativo de uma imposição de mudança de hábitos de nossa parte?
A primeira objeção é a de que uma afirmação isolada de um Espírito não
serve de critério infalível para o estabelecimento de uma regra de conduta. Em
segundo lugar, a Revista Espírita foi um laboratório no qual as teorias e
conceitos doutrinários foram gradativamente forjados e não um repositório de
verdades prontas.
Mas, o mais relevante argumento é a assertiva de que a alimentação dos
habitantes de Júpiter é composta de frutos e plantas, em razão da organização
etérea de seus corpos e, portanto, nossos alimentos são pesados para eles.
Muito interessante, porém, a observação de que a alimentação deles “não seria
suficientemente substancial para os nossos estômagos grosseiros”.
A sensualidade, o apego às coisas materiais e o desregramento das
paixões estão entre os fatores capazes de prejudicarem o nosso progresso
espiritual, aproximando-nos da nossa natureza animal, conforme os ditames da
matéria. Mas não são as paixões más em si mesmas, e sim o seu excesso o
problema. A moderação, a temperança e o equilíbrio aplicados às nossas
condutas, inclusive na conservação da vida, são os preceitos recomendados em
consonância com o Espiritismo.
O Espiritismo é a doutrina do livre exame e da livre consciência e não
pode ser encarado nos mesmos moldes das religiões dogmáticas existentes, nas
quais a posição de sacerdotes, pastores e instituições, em razão da solidez de
suas tradições, tem força de autoridade sobre os fiéis e seguidores.
Se o espírita considera modificar hábitos alimentares para benefício de
sua saúde, com a devida orientação médica, por considerar relevante para o seu
bem-estar, físico, psíquico e espiritual, é plenamente livre para fazê-lo. Mas
que tenha consciência que esse fator, em absoluto, representa por si mesmo
garantia de elevação espiritual perante os seus semelhantes.
Lembremos de Jesus que, em Mateus 11:18-19, ironiza seus adversários, ao
acusarem-no de endemoninhado por comer e beber na presença de publicanos e
“pecadores”, assim como criticavam João Batista, não obstante não comesse e nem
bebesse com eles. O mestre, aliás, se sai com um epíteto curioso: “a sabedoria
é justificada pelas suas obras”.
Na intencionalidade da consciência, no sentimento bom ou mau que nos
guia, mais do que as ações exteriores, situa-se o valor de nosso procedimento,
pois, conforme o próprio Cristo ponderou sobre a questão do alimento, não é
o que entra pela boca do homem que o contamina, mas o que procede do seu
coração (Mateus 15:17-18).
Bibliografia
BÍBLIA. O Novo Testamento. Trad. Haroldo
Dutra Dias. Brasília: FEB, 2013.
KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Brasília: FEB, 2016.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Brasília: FEB, 2016.
KARDEC, Allan. Revista Espírita. Vol. I
(1858). Trad. Evandro Noleto Bezerra. Brasília: FEB, 2004.
Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2021/11/DE186.pdf
segunda-feira, 18 de abril de 2022
Spam espírita
Spam espírita
Marco Milani
(Texto publicado no jornal Correio Fraterno - Ed. 504•
Março-Abril 2022, p. 11)
A utilização de ferramentas de comunicação à
distância ganhou um enorme impulso com as restrições de deslocamento provocadas
pela pandemia da Covid-19 e, desde então, alterou os hábitos de milhões de
pessoas que antes necessitavam visitar um centro espírita para participar de
atividades tipicamente presenciais, como palestras, entrevistas, estudos e
outras ações com temáticas doutrinárias. Ao serem oferecidos à distância,
ampliou-se o público usuário desses serviços, sinalizando uma ótima
oportunidade para a apresentação e compreensão dos princípios e valores
espíritas.
Diante dos novos canais de interação, a própria
divulgação dos eventos espíritas redimensionou-se, ganhando espaço no ambiente
virtual das redes sociais. Diversas instituições investiram na constituição e
desenvolvimento de páginas eletrônicas e grupos virtuais para atender esse tipo
de demanda.
Diferentemente de propagandas e anúncios não
solicitados que invadem caixas postais eletrônicas, conhecidos como “spams”, o
compartilhamento da maioria dos cartazes de atividades com temática espírita é sempre
bem-vindo nas redes sociais direcionadas aos adeptos e simpatizantes. Afinal, acaba
sendo uma prestação de serviço, já que eventos espíritas tendem a oferecer
momentos de nobres reflexões e práticas edificantes, sendo iniciativas que
devem ser divulgadas.
Um interessante fenômeno também passou a
ocorrer diante da farta produção de eventos à distância, os quais não se limitam
mais aos tradicionais frequentadores dos salões e auditórios dos centros
espíritas e respectivas regiões, mas voltam-se a quem se deparar com as
respectivas peças de divulgação nas redes sociais. Como ocorrem vários eventos
no mesmo dia e horário, os participantes dos grupos virtuais podem escolher
qual deles assistir, ao vivo ou gravado.
Dirigentes e divulgadores espíritas sensatos
sabem que essa concorrência é esperada e perfeitamente normal em um ambiente
com várias possibilidades de interação à distância, além de que cada evento
tende a atrair um público com perfil específico conforme as características do
conteúdo e as condições de participação para cada um deles.
Compreensível a preocupação em tornar a arte de
cartazes e outras peças de divulgação mais técnicas e profissionalizadas,
favorecendo a comunicação. Certamente, um material bem elaborado reúne mais
condições de atingir o seu objetivo informacional, mas não quer dizer que
cartazes mais rudimentares não cumpram o seu papel.
Entretanto, alguns divulgadores, ao encararem a
existência de eventos concorrentes como uma competição de mercado, não
limitam-se a aperfeiçoar a arte de cartazes e a utilizar mais canais para a
devida comunicação eletrônica. Creem que a quantidade de inserções do material
de divulgação, ainda que seja no mesmo canal ou grupo de rede social, seja um
diferencial para obter vantagem competitiva. Ao fazerem isso, correm o evidente
risco de saturarem o usuário dessas redes sociais e gerarem o efeito inverso,
criando resistência ao divulgador.
Há casos de indivíduos, bastante motivados para
a obtenção de visibilidade, publicarem diariamente eventos semelhantes ou
iguais, consumindo inadvertidamente o precioso tempo e contando com a serenidade
dos participantes desse canal de comunicação.
Logicamente, o ambiente virtual pode (e deve)
possuir regras e diretrizes de publicações que evitariam tal abuso, mas isso é
de responsabilidade dos administradores das páginas e grupos.
A divulgação de eventos espíritas em canais
apropriados é uma prática útil e necessária, até caridosa, mas a motivação
competitiva para tal prática, lastreada na intenção de sensibilizar a maior
quantidade possível de pessoas pela cansativa republicação sem que os usuários
assim tenham solicitado e sem se atentar ao tempo alheio consumido, pode se afastar
da caridade e do bom senso, além de se aproximar de uma prática de “spam”.
Fonte:
https://correio.news/jornal-espirita-correio-fraterno-edicoes/jornal-correio-fraterno-edicao-504
sexta-feira, 8 de abril de 2022
Movimento espírita: para onde caminhamos?
Marco Milani
(Texto publicado na revista A Senda, mar/abr 2022, p. 12 a 14)
Nas
diferentes áreas do conhecimento, quando se pretende traçar linhas de tendência,
com maior ou menor subjetividade, busca-se vislumbrar panoramas futuros e
adentra-se no escorregadio campo previsional.
Allan
Kardec e diversos Espíritos costumavam apontar cenários otimistas com relação à
propagação e aceitação do Espiritismo pela humanidade, embasados na certeza de
que o progresso naturalmente favoreceria a compreensão racional das ideias
espíritas.
Da
mesma maneira que os discípulos de Jesus supuseram que ele retornaria
rapidamente após a sua morte, muitos adeptos interpretam as palavras dos
próprios Espíritos sobre a chegada do período de regeneração e sobre a plena
aceitação das ideias espíritas como um momento de rápida realização.
Os
fatos demonstram, portanto, um claro distanciamento temporal entre as
expectativas de encarnados e desencarnados sobre os eventos futuros.
Se,
por um lado, o progresso intelectual e moral dos homens sinaliza para a
compreensão da realidade espiritual e para a construção de uma sociedade mais
caridosa, justa e fraterna, por outro deve-se ponderar que as transformações
vindouras decorrerão do ritmo evolutivo dos indivíduos no processo
reencarnatório. Alguns séculos ou milênios, conforme o relato dos próprios
Espíritos, assemelham-se a um piscar de olhos na imortalidade, ou seja, a
percepção do tempo é relativa.
Dentre
os fatores relevantes para a consolidação e generalização das ideias espíritas,
Kardec apontou a necessidade de se manter a unidade doutrinária como ponto
central para a união dos adeptos.
Torna-se necessário
distinguir, para efeito de análise e considerações sobre os rumos futuros, os
termos Espiritismo e movimento espírita.
Enquanto o corpo
teórico do Espiritismo apresenta-se estruturado e com sólida consistência
interna em suas obras fundamentais, o movimento espírita, formado por pessoas e
instituições, mostra-se heterogêneo em determinados aspectos, caracterizado por
diferentes graus de maturidade doutrinária.
Para Kardec, a
clareza e a objetividade dos princípios doutrinários, aliadas às ideias
práticas que se afastam de propostas utópicas e inviáveis, deveriam ser
suficientes para evitar ambiguidades e problemas de compreensão sob a luz da
razão, colaborando para a consolidação e propagação do Espiritismo como algo
natural e esperado em um mundo em evolução.
As divergências
interpretativas, entretanto, além de motivações egoístas e orgulhosas, podem
provocar cismas no seio do movimento espírita. Essa fragmentação foi alertada
por Kardec, ao afirmar que tentativas cismáticas seriam promovidas por
ambiciosos e vaidosos que gostariam de obter destaque ligando o próprio nome a
uma inovação qualquer, ávidos por se diferenciarem e dizer que são livres e não
pensam nem fazem como a maioria.[1]
Nas décadas
imediatamente seguintes à desencarnação de Kardec, o movimento espírita francês
fragilizou-se por diferentes fatores, dentre eles a inserção de elementos
místicos e fantasiosos que deturparam a compreensão doutrinária, promoveram
rupturas entre instituições e adeptos e, ainda, prejudicaram a propagação do
Espiritismo. Exemplificando essa infiltração, Pierre-Gaetan Leymarie, então
responsável pela continuidade das edições da Revista Espírita, permitiu a publicação
de textos teosofistas, orientalistas e roustanguistas nesse periódico, fazendo
com que os princípios e valores espíritas fossem apresentados ao lado de
propostas mirabolantes e antidoutrinárias.
A infiltração de
teorias e práticas estranhas ao Espiritismo em veículos de divulgação e nas
reuniões de grupos supostamente espíritas impactou o ritmo de propagação
doutrinária previsto por Kardec. Não causa surpresa o fato de algumas dessas
deturpações, como o roustainguismo, terem desembarcado no Brasil, ainda no
final do século 19 e influenciado os estudos e práticas de alguns grupos
espíritas nascentes. Ainda do século 21, sentem-se os reflexos dos conceitos
místicos em determinados grupos e instituições brasileiras.
A organização do movimento
espírita brasileiro (MEB), por meio de entidades representativas com diferentes
complexidades e peculiaridades, certamente foi relevante para fomentar a
criação e orientação de milhares de centros espíritas registrados atualmente, objetivando-se
respeitar a autonomia de cada grupo e a cultura local, sem o estabelecimento de
vínculos de subordinação e de dependência administrativa e financeira.
Os
recentes avanços tecnológicos na área de comunicação, contribuindo para uma
notável expansão da atividade de divulgação e promovendo a interação de adeptos
e simpatizantes sobre as temáticas doutrinárias podem ser considerados um novo marco
no desenvolvimento do MEB, fortalecendo a proposta kardequiana de disseminação
do conhecimento espírita sem a intenção de se fazer proselitismo.
Essencial
na leitura de qualquer comunicação mediúnica, a análise do conteúdo sob o crivo
da razão deve guiar a reflexão sobre a qualidade das informações que transitam
no mundo digital. Ao mesmo tempo em que se verificam informações corretas e adequadas sobre o ensino dos Espíritos, também circulam informações
pseudoespíritas, as quais iludem e confundem aqueles menos familiarizados com
os princípios e valores doutrinários. As obras de Kardec, como destacou o
saudoso escritor Herculano Pires, servem de pedra de toque para se separar o
joio do trigo.
A
plena compreensão doutrinária, que efetivamente deve unir os adeptos, só é
alcançada pela valorização da fé raciocinada e o reconhecimento da
superioridade do método do controle universal adotado por Kardec para a
composição das obras fundamentais do Espiritismo.
O público leigo e os neófitos
facilmente confundem informações ditas mediúnicas como se fossem verdades
espíritas, desconhecendo que desencarnados apenas manifestam opiniões e essas
estão bem distantes da legitimidade inerente ao conjunto de informações, ainda
que mediúnicas, submetidas ao método do Controle Universal do Ensino dos Espíritos
(CUEE) aplicado por Allan Kardec. Assim, é por uma questão científica metodológica
e pelo exercício da fé raciocinada que não se pode aceitar como novos ensinos e
substituir ou desejar “atualizar” os pressupostos doutrinários explicitados nas
obras fundamentais.
Um equívoco comum,
fruto do desconhecimento do método do CUEE e do amadorismo em pesquisa
científica, é validar uma informação mediúnica baseando-se na idoneidade moral
do médium, pois tal suposição de filtragem qualitativa contraria o que os próprios
Espíritos reafirmaram inúmeras vezes sobre a inexistência de médiuns
infalíveis. Além disso, o bom médium apenas intermedia a comunicação, sem
imiscuir-se animicamente na mensagem. Uma comunicação com teor falso e irreal
pode ser obtida por médiuns moralmente bons, pois a autoria do conteúdo é do
emissor desencarnado e não do intermediário.
Esse cuidado
analítico deve nortear qualquer informação, não somente aquelas aparentemente
mediúnicas. O critério para se examinar as mensagens que circulam pelos meios
digitais é, dessa maneira, o mesmo que pautava o zelo exercido por Kardec nas
comunicações da época.
Ao se refletir sobre
os caminhos do movimento espírita, a interação entre os adeptos, grupos e
instituições espíritas espalhados pelo mundo passa a assumir papel de destaque
para o fortalecimento do conhecimento doutrinário e busca da unidade prevista
por Kardec.
Os modelos de funcionamento
dos centros espíritas, tanto no Brasil como no exterior, estão sendo
aprimorados diante do momento pandêmico que exige adaptações inteligentes e
doutrinariamente coerentes das atividades desenvolvidas. O arquétipo de casa
espírita, formatado há mais de um século, exige aperfeiçoamentos para combater
a cristalização improdutiva de hábitos e costumes que não priorizam a prática
legítima e o estudo contínuo e aprofundado da teoria espírita apresentada por
Allan Kardec.
O Espiritismo não tem
nacionalidade nem pertence a alguma entidade federativa, logo não se restringe
a fronteiras geográficas e muito menos às tentativas de hierarquização e
subordinação institucionais. O cenário projetado para o movimento espírita
mundial considera os reflexos da maior diversidade cultural entre os povos na
interpretação, que é clara e objetiva, do conjunto de princípios e valores
espíritas.
A história já ensinou
sobre a nocividade das infiltrações místicas, supersticiosas e conceitualmente
deturpadas que corrompem o movimento espírita imprevidente. O sincretismo, presente em países com forte
cultura religiosa, é um desafio a ser vencido.
A caridade mal
compreendida faz com que a omissão prevaleça perante oportunidades de
esclarecimento e auxílio. Diante de alguma impropriedade conceitual ou prática
incoerente com os princípios espíritas, pondera-se sobre a melhor maneira de se
esclarecer e superar eventuais problemas gerados pela situação. O silêncio não deve ser usado caso outras
pessoas possam ser prejudicadas por informações que gerem confusão ou posturas
inadequadas, sob o risco da tolerância se converter em conivência. Ao se
reproduzir ou disseminar informações fantasiosas que se passam por espíritas,
falta-se com a caridade pois prejudica-se o entendimento do Espiritismo.
Outra infiltração perniciosa
no MEB é a militância político-ideológica que desarmoniza o ambiente e gera
cismas. Conforme sabiamente explicitou Kardec[2],
“Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas
reuniões tudo quando se refere à política e a questões irritantes”. Como
cidadãos, os espíritas possuem a liberdade de consciência e podem abraçar a
corrente ideológica que acharem a mais adequada. O fato de não levarem suas
preferências políticas para serem discutidas no centro espírita não justifica,
em hipótese alguma, que sejam rotulados de alienados, ao contrário, demonstra
maturidade, sensatez e respeito pela organização que colaboram e por seus
companheiros de trabalho.
A unidade doutrinária
é aquela que fará com que cada vez mais pessoas sejam esclarecidas sobre a
natureza, origem e destino dos Espíritos e suas relações com o mundo corporal.
Ao prezarmos pela divulgação séria e responsável do Espiritismo, contribuímos
diretamente para que a transformação moral da humanidade não seja adiada, mas
realizada o quanto antes, mesmo que o tempo seja relativo.
Fonte: https://www.feees.org.br/revista-senda/a-senda-marco-abril-2022/