A distinção entre a opinião de Kardec e a Doutrina
Espírita: a questão da Teoria da Geração Espontânea
Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 37, outubro de 2024, p. 8-9
Até o início do século XIX, a geração espontânea
era uma teoria amplamente aceita para explicar o surgimento de formas de vida
simples, especialmente microrganismos, como fungos e vermes que frequentemente
apareciam em alimentos ou matéria orgânica em decomposição. Desde o filósofo
grego Aristóteles (384-322 a.C.), acreditava-se que certos organismos poderiam
se formar diretamente da matéria inerte, e essa ideia persistiu por muitos
séculos.
Mesmo após os experimentos de Louis Pasteur, em
1861, que refutou a geração espontânea e afirmou que a vida só surge de formas
de vida preexistentes (teoria da biogênese), suas descobertas não esclareceram
a questão de como a “primeira vida” teria surgido no passado remoto, quando as
condições da Terra eram diferentes (DEBRÉ, 2000). O Professor Rivail e outros
pesquisadores contemporâneos de Pasteur não estavam completamente satisfeitos
com as explicações oferecidas e mantinham a ideia de que, em algum momento, sob
circunstâncias específicas, a vida poderia ter surgido espontaneamente da
matéria inanimada. Supunham que moléculas inorgânicas teriam se combinado de
maneiras complexas, eventualmente formando as primeiras formas de vida.
A incerteza sobre a origem da vida fez com que
Kardec tratasse o tema na obra A gênese[1]
com a prudência necessária a todo investigador sensato. Ele sugere que, embora
a ciência tenha demonstrado que seres complexos não podem surgir espontaneamente,
permanecia uma lacuna no entendimento sobre como os primeiros seres vivos
teriam surgido e, ainda, deixa claro que essa questão não deveria ser tratada
como um princípio doutrinário, mas apenas como uma hipótese que, futuramente,
poderia ou não ser confirmada pela ciência.
Como a Doutrina Espírita não foi estruturada sob as
ideias de apenas um homem, mas ao contrário, decorreu de uma convergência de
informações provenientes de diferentes fontes mediúnicas, Kardec sempre
diferenciou suas opiniões do ensino generalizado dos Espíritos. Nesse sentido,
sendo A gênese (KARDEC, 2021) uma obra doutrinária fundamental, Kardec inseriu a
hipótese da geração espontânea como elemento necessário para a discussão do
tema sobre a origem da vida, mas reforçou que não se tratava de ensino
convergente dos Espíritos, apenas uma suposição.
Na Revista Espírita de julho/1868, ainda sobre a questão da geração espontânea, Kardec assim se posiciona:
"Pessoalmente é
para nós uma convicção, e se tivéssemos que tratá-la numa obra comum,
tê-la-íamos resolvido pela afirmativa; mas numa obra constitutiva da Doutrina
Espírita, as opiniões individuais não podem fazer lei" (KARDEC, 1868).
A prudência de Kardec ao lidar com a questão da origem da vida sob a perspectiva científica demonstra sua habilidade em separar suas crenças pessoais dos princípios doutrinários. Ele compreendia que a ciência e o Espiritismo deveriam caminhar juntos, mas que a doutrina não deveria ser comprometida por teorias ainda em desenvolvimento. Essa abordagem cuidadosa assegurou que o Espiritismo permanecesse relevante e coerente ao longo do tempo, sem cair em contradição com os avanços da ciência.
Referências
DEBRÉ, Patrice. Pasteur e a revolução microbiana. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
KARDEC, Allan. Revista Espírita. Julho de 1868. Disponível em: https://www.febnet.org.br/.
KARDEC, Allan. A Gênese: Os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução da 4ª edição original francesa. São Paulo: USE, 2021
MILLER, Stanley L.; UREY, Harold C. Organic compound synthesis on the primitive Earth. Science, v. 130, n. 3370, p. 245-251, 1959. Dsponível em < https://www.science.org/doi/10.1126/science.130.3370.245>. Acessado em 22/09/24.
OPARIN, A. I. A origem da vida. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976
SMITH, E.; SZOSTAK, J. W. Abiogenesis and the origin of life. Nature Reviews Molecular Cell Biology, v. 15, n. 9, p. 667–672, 2014.
[1]
Ver A gênese, Capítulo X, Itens 20 a 23 – Geração espontânea.
Nenhum comentário sobre o Livro dos Espíritos, onde a teoria tb se faz presente?
ResponderExcluirOlá Rodrigo. Sim, a noção de "princípio latente" é apresentada nas questões relacionadas à formação dos seres vivos em O Livro dos Espíritos e pode ser relacionada à discussão sobre biogênese e abiogênese, mas Kardec refere-se explicitamente à teoria da geração espontânea sob a perspectiva científica em A Gênese e na Revista Espírita de jul/1868.
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