terça-feira, 1 de outubro de 2024

A distinção entre a opinião de Kardec e a Doutrina Espírita: a questão da Teoria da Geração Espontânea


A distinção entre a opinião de Kardec e a Doutrina Espírita: a questão da Teoria da Geração Espontânea

 Marco Milani

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 37, outubro de 2024, p. 8-9

  

Até o início do século XIX, a geração espontânea era uma teoria amplamente aceita para explicar o surgimento de formas de vida simples, especialmente microrganismos, como fungos e vermes que frequentemente apareciam em alimentos ou matéria orgânica em decomposição. Desde o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), acreditava-se que certos organismos poderiam se formar diretamente da matéria inerte, e essa ideia persistiu por muitos séculos.

Mesmo após os experimentos de Louis Pasteur, em 1861, que refutou a geração espontânea e afirmou que a vida só surge de formas de vida preexistentes (teoria da biogênese), suas descobertas não esclareceram a questão de como a “primeira vida” teria surgido no passado remoto, quando as condições da Terra eram diferentes (DEBRÉ, 2000). O Professor Rivail e outros pesquisadores contemporâneos de Pasteur não estavam completamente satisfeitos com as explicações oferecidas e mantinham a ideia de que, em algum momento, sob circunstâncias específicas, a vida poderia ter surgido espontaneamente da matéria inanimada. Supunham que moléculas inorgânicas teriam se combinado de maneiras complexas, eventualmente formando as primeiras formas de vida.

A incerteza sobre a origem da vida fez com que Kardec tratasse o tema na obra A gênese[1] com a prudência necessária a todo investigador sensato. Ele sugere que, embora a ciência tenha demonstrado que seres complexos não podem surgir espontaneamente, permanecia uma lacuna no entendimento sobre como os primeiros seres vivos teriam surgido e, ainda, deixa claro que essa questão não deveria ser tratada como um princípio doutrinário, mas apenas como uma hipótese que, futuramente, poderia ou não ser confirmada pela ciência.

Como a Doutrina Espírita não foi estruturada sob as ideias de apenas um homem, mas ao contrário, decorreu de uma convergência de informações provenientes de diferentes fontes mediúnicas, Kardec sempre diferenciou suas opiniões do ensino generalizado dos Espíritos. Nesse sentido, sendo A gênese (KARDEC, 2021) uma obra doutrinária fundamental, Kardec inseriu a hipótese da geração espontânea como elemento necessário para a discussão do tema sobre a origem da vida, mas reforçou que não se tratava de ensino convergente dos Espíritos, apenas uma suposição.

 Na Revista Espírita de julho/1868, ainda sobre a questão da geração espontânea, Kardec assim se posiciona:

 

"Pessoalmente é para nós uma convicção, e se tivéssemos que tratá-la numa obra comum, tê-la-íamos resolvido pela afirmativa; mas numa obra constitutiva da Doutrina Espírita, as opiniões individuais não podem fazer lei" (KARDEC, 1868).

 Considerando-se a evolução da ciência desde o século XIX, é evidente que sua prudência foi justificada. Atualmente, a teoria da abiogênese, proposta no início do século XX por Oparin (1976) e posteriormente desenvolvida por Miller e Urey (1959), oferece uma explicação mais robusta e cientificamente mais embasada para a origem da vida na Terra. Essa teoria sugere que as primeiras moléculas autorreplicantes surgiram em condições químicas especiais na Terra primitiva, cerca de 3,5 a 4 bilhões de anos atrás (SMITH; SZOSTAK, 2014), diferentemente da geração espontânea, que sinalizava que a vida poderia surgir em qualquer momento sob certas circunstâncias. Assim, embora Kardec tenha defendido a geração espontânea como uma hipótese válida para sua época, a ciência moderna demonstrou que essa hipótese, na forma como era apresentada no século XIX, não é mais considerada uma explicação plausível.

A prudência de Kardec ao lidar com a questão da origem da vida sob a perspectiva científica demonstra sua habilidade em separar suas crenças pessoais dos princípios doutrinários. Ele compreendia que a ciência e o Espiritismo deveriam caminhar juntos, mas que a doutrina não deveria ser comprometida por teorias ainda em desenvolvimento. Essa abordagem cuidadosa assegurou que o Espiritismo permanecesse relevante e coerente ao longo do tempo, sem cair em contradição com os avanços da ciência.

 

Referências

DEBRÉ, Patrice. Pasteur e a revolução microbiana. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

KARDEC, Allan. Revista Espírita. Julho de 1868. Disponível em: https://www.febnet.org.br/.

KARDEC, Allan. A Gênese: Os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução da 4ª edição original francesa. São Paulo: USE, 2021

MILLER, Stanley L.; UREY, Harold C. Organic compound synthesis on the primitive Earth. Science, v. 130, n. 3370, p. 245-251, 1959. Dsponível em < https://www.science.org/doi/10.1126/science.130.3370.245>. Acessado em 22/09/24.

OPARIN, A. I. A origem da vida. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976

SMITH, E.; SZOSTAK, J. W. Abiogenesis and the origin of life. Nature Reviews Molecular Cell Biology, v. 15, n. 9, p. 667–672, 2014.

 


[1] Ver A gênese, Capítulo X, Itens 20 a 23 – Geração espontânea.


2 comentários:

  1. Nenhum comentário sobre o Livro dos Espíritos, onde a teoria tb se faz presente?

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    1. Olá Rodrigo. Sim, a noção de "princípio latente" é apresentada nas questões relacionadas à formação dos seres vivos em O Livro dos Espíritos e pode ser relacionada à discussão sobre biogênese e abiogênese, mas Kardec refere-se explicitamente à teoria da geração espontânea sob a perspectiva científica em A Gênese e na Revista Espírita de jul/1868.

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