A utilização providencial dos meios materiais
Marco Milani
Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 201, jul/ago 2024, p. 19-20
A legitimidade da propriedade privada, o emprego da
fortuna e a desigualdade das riquezas são temas presentes no Capítulo 16 da
obra O evangelho segundo o Espiritismo, assim como também ocuparam lugar de
destaque entre diferentes e antagônicas correntes econômicas do século XIX.
Ainda que possa guardar certa semelhança em um ou
outro aspecto, a abordagem espírita desses temas, entretanto, não se subordinou
a nenhuma escola específica de pensamento da época, uma vez que se tratou de
concepção inovadora e muito mais ampla do que as limitadas propostas
materialistas.
Essa diferenciação teórica é relevante, pois não é
raro encontrar alguém tentando distorcer os conceitos espíritas desses mesmos
temas, considerados hoje politicamente sensíveis, objetivando reinterpretá-los
e moldá-los de acordo com suas preferências políticas pessoais sob a alegação
de “atualização”.
Para favorecer a ressignificação dos conceitos
alegando-se que Kardec estaria ultrapassado, detratores do Espiritismo deliberadamente
ignoram que a autoridade doutrinária decorre do Controle Universal do Ensino
dos Espíritos, ou seja, omitem que os princípios e conceitos que estruturam o
corpo teórico espírita não são uma concepção de um homem, mas de uma
coletividade de seres cujas informações foram metodologicamente validadas e não
se restringiram a um contexto social e econômico específico. É mais fácil para
esses revisionistas históricos acusar uma suposta obsolescência de Kardec do
que assim proceder com o Espírito da Verdade, Santo Agostinho, Sócrates,
Platão, São Luís e muitos outros seres desencarnados que participaram da
elaboração da doutrina.
No Espiritismo, a propriedade privada e a fortuna
são tidas como legítimas quando adquiridas honestamente, cabendo aos seus
possuidores o direito de defendê-las e a responsabilidade pelo bom uso. Sob a
ótica espírita, a propriedade privada, fruto do trabalho e sem prejuízo a
terceiros, é um direito natural “tão sagrado quanto o de trabalhar e de viver”.[1]
Essa perspectiva está profundamente enraizada na justiça divina, onde a riqueza
material é vista como uma prova voltada a exercitar o caráter e a moralidade
dos indivíduos.
Os Espíritos aprofundam a discussão ressaltando que
a riqueza verdadeira não reside nos bens materiais, mas nas qualidades morais e
intelectuais que o indivíduo desenvolve ao longo de suas existências[2].
A riqueza material é temporária e deve ser usada para o bem do rico como dos
mais vulneráveis. Kardec enfatiza que a acumulação egoísta de riqueza contraria
os preceitos cristãos de fraternidade. Essa abrangência moral e espiritual
proporciona uma compreensão mais profunda e equilibrada da questão da
propriedade e da fortuna como oportunidades temporárias de progresso,
transcendendo as meras considerações materialistas da posse de bens em si mesma.
A desigualdade das riquezas, sob a perspectiva
espírita, é vista como reflexo da diversidade natural de características e
aptidões pessoais. Sobre a tentativa de militantes políticos que pretendem,
artificialmente, forçar uma igualdade absoluta de riquezas, os Espíritos assim
se posicionaram:
“São cultores de
sistemas, esses tais, ou ambiciosos cheios de inveja. Não compreendem que a
igualdade com que sonham seria a curto prazo desfeita pela força das coisas.
Combatei o egoísmo, que é a vossa chaga social, e não corrais atrás de
quimeras.”[3]
Na comunicação mediúnica que Allan Kardec
selecionou para lê-la integralmente em sua visita aos espíritas da cidade de
Lyon, destaca-se o alerta contra as propostas sociais utópicas que pregavam a igualdade
absoluta:
“Acabo de pronunciar a
palavra igualitária. Julgo útil nela deter-me um pouco, porque não vimos
pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, pois, ao contrário, repelimos
energicamente tudo quanto pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antissocial.
Antes de tudo, somos essencialmente propagandistas da liberdade individual,
indispensável ao desenvolvimento dos encarnados. Consequentemente, somos
inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislações conventuais,
que aniquilam brutalmente os indivíduos. Embora me dirija a um auditório em
parte composto de artífices e proletários, sei que suas consciências,
esclarecidas pelas radiações da verdade espírita, já repeliram todo contato com
as teorias antissociais dadas com apoio da palavra igualdade.[4]
Certamente, é um anseio justo e necessário a busca
por melhores condições de vida enquanto encarnados. É fundamental, entretanto, a
valorização da vida espiritual para a construção do verdadeiro reino de Deus em
nós mesmos, em contraste com as ilusões utópicas promovidas por sistemas
políticos que buscam a realização plena do indivíduo nas transitórias
sociedades físicas.
Embora o homem procure instintivamente o bem-estar
e trabalhe para melhorar suas condições terrenas, esses esforços são
temporários e relativos. Os prazeres terrenos são muito bem-vindos, mas o respectivo
abuso em detrimento dos valores espirituais constitui uma deturpação dos reais
objetivos humanos. Aqueles que se identificam com a vida futura dão menos
importância às preocupações materiais e encontram consolo nos seus insucessos,
enquanto aqueles focados na vida terrena tendem a se desesperar com as perdas
materiais.
Sendo o Espiritismo mais amplo e profundo do que
qualquer ideologia política e econômica atual ou do passado, ele contribui
diretamente para que cada um aumente o grau de compreensão da vida espiritual,
conhecimento essencial para se alcançar a verdadeira e duradoura realização
pessoal.
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