terça-feira, 9 de julho de 2024

A utilização providencial dos meios materiais


 

A utilização providencial dos meios materiais

 

Marco Milani


Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 201, jul/ago 2024, p. 19-20

 

A legitimidade da propriedade privada, o emprego da fortuna e a desigualdade das riquezas são temas presentes no Capítulo 16 da obra O evangelho segundo o Espiritismo, assim como também ocuparam lugar de destaque entre diferentes e antagônicas correntes econômicas do século XIX.

Ainda que possa guardar certa semelhança em um ou outro aspecto, a abordagem espírita desses temas, entretanto, não se subordinou a nenhuma escola específica de pensamento da época, uma vez que se tratou de concepção inovadora e muito mais ampla do que as limitadas propostas materialistas.

Essa diferenciação teórica é relevante, pois não é raro encontrar alguém tentando distorcer os conceitos espíritas desses mesmos temas, considerados hoje politicamente sensíveis, objetivando reinterpretá-los e moldá-los de acordo com suas preferências políticas pessoais sob a alegação de “atualização”.

Para favorecer a ressignificação dos conceitos alegando-se que Kardec estaria ultrapassado, detratores do Espiritismo deliberadamente ignoram que a autoridade doutrinária decorre do Controle Universal do Ensino dos Espíritos, ou seja, omitem que os princípios e conceitos que estruturam o corpo teórico espírita não são uma concepção de um homem, mas de uma coletividade de seres cujas informações foram metodologicamente validadas e não se restringiram a um contexto social e econômico específico. É mais fácil para esses revisionistas históricos acusar uma suposta obsolescência de Kardec do que assim proceder com o Espírito da Verdade, Santo Agostinho, Sócrates, Platão, São Luís e muitos outros seres desencarnados que participaram da elaboração da doutrina.

No Espiritismo, a propriedade privada e a fortuna são tidas como legítimas quando adquiridas honestamente, cabendo aos seus possuidores o direito de defendê-las e a responsabilidade pelo bom uso. Sob a ótica espírita, a propriedade privada, fruto do trabalho e sem prejuízo a terceiros, é um direito natural “tão sagrado quanto o de trabalhar e de viver”.[1] Essa perspectiva está profundamente enraizada na justiça divina, onde a riqueza material é vista como uma prova voltada a exercitar o caráter e a moralidade dos indivíduos.

Os Espíritos aprofundam a discussão ressaltando que a riqueza verdadeira não reside nos bens materiais, mas nas qualidades morais e intelectuais que o indivíduo desenvolve ao longo de suas existências[2]. A riqueza material é temporária e deve ser usada para o bem do rico como dos mais vulneráveis. Kardec enfatiza que a acumulação egoísta de riqueza contraria os preceitos cristãos de fraternidade. Essa abrangência moral e espiritual proporciona uma compreensão mais profunda e equilibrada da questão da propriedade e da fortuna como oportunidades temporárias de progresso, transcendendo as meras considerações materialistas da posse de bens em si mesma.

A desigualdade das riquezas, sob a perspectiva espírita, é vista como reflexo da diversidade natural de características e aptidões pessoais. Sobre a tentativa de militantes políticos que pretendem, artificialmente, forçar uma igualdade absoluta de riquezas, os Espíritos assim se posicionaram:

 

“São cultores de sistemas, esses tais, ou ambiciosos cheios de inveja. Não compreendem que a igualdade com que sonham seria a curto prazo desfeita pela força das coisas. Combatei o egoísmo, que é a vossa chaga social, e não corrais atrás de quimeras.”[3]

 

Na comunicação mediúnica que Allan Kardec selecionou para lê-la integralmente em sua visita aos espíritas da cidade de Lyon, destaca-se o alerta contra as propostas sociais utópicas que pregavam a igualdade absoluta:

 

“Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil nela deter-me um pouco, porque não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, pois, ao contrário, repelimos energicamente tudo quanto pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antissocial. Antes de tudo, somos essencialmente propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos encarnados. Consequentemente, somos inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos. Embora me dirija a um auditório em parte composto de artífices e proletários, sei que suas consciências, esclarecidas pelas radiações da verdade espírita, já repeliram todo contato com as teorias antissociais dadas com apoio da palavra igualdade.[4]

 

Certamente, é um anseio justo e necessário a busca por melhores condições de vida enquanto encarnados. É fundamental, entretanto, a valorização da vida espiritual para a construção do verdadeiro reino de Deus em nós mesmos, em contraste com as ilusões utópicas promovidas por sistemas políticos que buscam a realização plena do indivíduo nas transitórias sociedades físicas.

Embora o homem procure instintivamente o bem-estar e trabalhe para melhorar suas condições terrenas, esses esforços são temporários e relativos. Os prazeres terrenos são muito bem-vindos, mas o respectivo abuso em detrimento dos valores espirituais constitui uma deturpação dos reais objetivos humanos. Aqueles que se identificam com a vida futura dão menos importância às preocupações materiais e encontram consolo nos seus insucessos, enquanto aqueles focados na vida terrena tendem a se desesperar com as perdas materiais.

Sendo o Espiritismo mais amplo e profundo do que qualquer ideologia política e econômica atual ou do passado, ele contribui diretamente para que cada um aumente o grau de compreensão da vida espiritual, conhecimento essencial para se alcançar a verdadeira e duradoura realização pessoal.

 



[1] Ver a Nota da questão 882, em O livro dos espíritos.

[2] Ver o item Capítulo XVI de O evangelho segundo o espiritismo.

[3] Ver a questão 811-a, em O livro dos espíritos.

[4] Ver a Revista Espírita, out/1861 - Epístola de Erasto aos espíritas lioneses

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