Kardec, o bom senso encarnado
Marco Milani
Tradicionalmente, no dia 3 de outubro, os espíritas
destacam a relevância e o legado do Professor Rivail, posteriormente conhecido
como Allan Kardec, lembrando o seu nascimento nessa data, em Lyon, França.
Educador, filósofo e cientista, Kardec deve ser homenageado pelo protagonismo na
estruturação e divulgação do Espiritismo, com suas valiosíssimas contribuições à
compreensão das questões que sempre intrigaram a humanidade: quem somos, de
onde viemos e para onde iremos.
A
Doutrina Espírita, apesar de não ser o produto de um só homem, expressa a
síntese do conhecimento obtido no intercâmbio mediúnico, criteriosamente
analisado, organizado e validado por Kardec. Sua disciplina, sensatez, postura
ética e capacidade administrativa diante das inúmeras atividades sob sua
responsabilidade, e os desafios decorrentes do embate entre as novas abordagens
trazidas pelo Espiritismo e as ideias cristalizadas, geraram a admiração e o respeito
não somente daqueles que compartilharam de sua proximidade, mas da sociedade em
geral.
Após sua desencarnação, algumas características
marcantes de Kardec foram evidenciadas nos discursos proferidos durante seu
funeral[1].
Jules Levent, vice-presidente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE),
comentou sobre a benevolência e austeridade do mestre lionês, enfatizando sua
ponderação e lógica incomparável, que pareciam ser inspiradas.
O renomado astrônomo Camille Flammarion pontuou
aspectos relevantes sobre a trajetória de pesquisa do Professor Rivail, até que
ele se dedicou integralmente ao estudo e divulgação do Espiritismo a milhões de
pessoas em diversos continentes. Flammarion enalteceu o poder consolador e a
proposta científica do Espiritismo. Por conta da razão reta e judiciosa de
Kardec, Flammarion o designou como o “bom senso encarnado”.
Alexandre Delanne,
amigo pessoal e membro da SPEE, expressou o sentimento de pesar que ele
compartilhava com inúmeros adeptos que tiveram a oportunidade de conhecer a
filosofia dos Espíritos, graças à habilidade e sabedoria do mestre, que
conseguiu colocá-la à altura de todas as inteligências, desde as mais simples até
as mais eruditas.
Por fim, o senhor
Muller, amigo de Kardec e de sua esposa Amélie, enalteceu a conduta do dedicado
educador, detentor de brilhante inteligência, que sempre procurou auxiliar a
todos, inclusive com aulas gratuitas sobre diversas disciplinas para aqueles
que não tinham condições financeiras. Com relação ao Espiritismo, o senhor
Muller apontou que Kardec vivenciava completamente a tríade: Razão, Trabalho e
Solidariedade.
Todos os elogiosos discursos tinham como pontos
comuns a benevolência, a ética e a acuidade intelectual, reconhecidos pela
comunidade espírita e científica da época como características desse nobre
Espírito que acabava de deixar a experiência carnal.
A capacidade de
Kardec para pensar de forma clara, precisa e crítica envolvia uma percepção
aguçada e a habilidade de discernir detalhes complexos, de identificar nuances
em argumentos e processar informações de maneira lógica e coerente, algo que
ele simplificadamente chamava de bom senso, mas que Flammarion capturou
adequadamente em seu discurso póstumo. Ao analisar situações, problemas ou
conceitos com profundidade, reconhecendo padrões, implicações e possíveis
soluções que outros podem não perceber, Kardec demonstrava a tolerância e
paciência para comunicar-se e esclarecer fraternalmente como um verdadeiro
educador e líder.
Nos trabalhos
iniciais para a elaboração da doutrina espírita, fazia-se necessária a
centralização do processo em um só homem encarnado, como relata Kardec em suas
anotações particulares[2],
a fim de manter a unidade e evitar o desvirtuamento conceitual diante de
diferentes opiniões e motivações. Contudo, como elemento fundamental para a
interpretação e aprimoramento do edifício doutrinário, alinhado com a própria
realidade, Kardec insistiu no uso da razão e da lógica para unir a todos e
superar divergências em nome do bom senso.
Não por acaso, os conceitos de fé inabalável e de fé
raciocinada perpassam todas as obras fundamentais do Espiritismo, uma vez que a
proposta doutrinária exige a interpretação crítica dos fatos para se contrapor
à superstição e ao misticismo inerentes a diversas correntes religiosas estabelecidas
com seus dogmas inquestionáveis. O Espiritismo representa uma ruptura com o
pensamento acrítico e devocional religioso, e com as crendices populares,
situação que exige maturidade moral e intelectual para ser compreendida por
adeptos e não-adeptos.
A adoção do Controle Universal do Ensino dos
Espíritos (CUEE), como método prevalente para validar as informações mediúnicas,
representou um marco crucial ao corpo teórico espírita e exemplificou a prudência
inerente à fé raciocinada. A autoridade do Espiritismo repousa essencialmente
na aplicação desse método.[3]
Passados quase dois séculos após a publicação de sua
obra inicial, o Espiritismo ainda é um grande desconhecido para aqueles que não
meditaram adequadamente no ensino dos Espíritos, validados pelo CUEE, e o
aplicaram em suas vidas.
Possivelmente, a maneira mais efetiva de se
homenagear Kardec não é pela simples apresentação de seus dados biográficos ou
contando curiosidades históricas de sua vida privada, mas estudando seriamente
a doutrina espírita, autoconhecendo-se, praticando a caridade e analisando
criticamente qualquer informação envolvendo a natureza e a realidade espiritual
com o bom senso que ele tanto prezou e se esforçou para que todos utilizassem.
[1]
Ver Revista Espírita, maio/1869 – Discursos pronunciados sobre o túmulo
[2]
Ver Obras Póstumas, 2ª parte – Minha iniciação no Espiritismo – O meu sucessor
[3]
Ver O Evangelho Segundo o Espiritismo – Introdução – item II - Autoridade da
doutrina espírita
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