quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Limites e desafios do diálogo inter-religioso no contexto espírita

 

Limites e desafios do diálogo inter-religioso no contexto espírita

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, Ed. 202, set/out 2024, p. 33-34

 

O diálogo inter-religioso, entendido como um esforço de comunicação e interação entre pessoas ou grupos de diferentes tradições e sistemas de crença, objetiva promover a compreensão mútua, o respeito, e a cooperação em questões de interesse comum. Em um mundo cada vez mais integrado, em que variadas culturas e cosmovisões sobrepõem-se, o diálogo entre as religiões é visto como um meio de superar preconceitos, construir pontes de entendimento e promover a paz.

Em regiões historicamente marcadas por conflitos de origem religiosa, esse tipo de diálogo tem contribuído para amainar antagonismos. Destacam-se, por exemplo, os esforços que buscam aproximar indianos e paquistaneses. Desde a partição do subcontinente indiano em 1947, que resultou na criação da Índia e do Paquistão como estados independentes, as relações entre hindus e muçulmanos têm sido tensas e frequentemente violentas. Iniciativas de diálogo inter-religioso, promovidas tanto por governos quanto por organizações da sociedade civil, procuram estimular a reconciliação entre essas comunidades.

Contudo, embora ofereça inegáveis benefícios, o diálogo inter-religioso também enseja cuidados, especialmente quando as diferenças que caracterizam as identidades de cada grupo não são adequadamente respeitadas.

Um dos desafios a serem enfrentados é o sincretismo, que pode ocorrer quando elementos de diferentes tradições filosóficas e religiosas são misturados, distorcendo as crenças originais. O sincretismo, inclusive, pode ser discutido como um fenômeno que surge em contextos de contato cultural intenso, onde há uma tentativa de harmonizar diferentes sistemas de crença. Embora essa harmonização possa, em alguns casos, enriquecer a espiritualidade individual, ela também pode levar à perda da integridade doutrinária.

A participação de representantes espíritas em eventos multiculturais que celebrem a paz entre diferentes crenças é esperada e bem-vinda, em nome da convivência fraterna e da tolerância religiosa.

Certamente, o Espiritismo é aberto ao diálogo e à análise de outras tradições e filosofias, porém isso não deve ser feito em detrimento da distorção dos próprios princípios e valores. Mesmo que haja uma intenção positiva, como promover a cooperação ou o entendimento entre diferentes partes, isso não deve acontecer às custas de sacrificar ou modificar os princípios e conceitos que formam a base doutrinária da identidade espírita.

Allan Kardec apontou que a unidade do Espiritismo depende da plena compreensão e prática de seus princípios e valores, destacando como condição indispensável que todas as partes do conjunto da doutrina estejam determinadas com precisão e clareza[1]. Superstições, crendices, misticismos e interpretações estanhas ao Espiritismo, quando não diferenciados dos próprios conceitos espíritas, prejudicam severamente essa unidade sob a perspectiva dos adeptos e simpatizantes.

Por um lado, portanto, o diálogo inter-religioso pode construir pontes de entendimento entre culturas com visões antagônicas, mas por outro, não se deve aplicar a mesma proposta para favorecer a quebra de identidade conceitual.

Imprudentemente, dirigentes de centros espíritas que não compreenderam a necessidade do respeito à doutrina que dizem abraçar, podem supor que as palestras e outros serviços oferecidos devam conter elementos sincréticos para melhor acolher aqueles que estão “chegando agora” e não conhecem o Espiritismo, para que se sintam confortáveis e atraídos por encontrar conceitos, práticas e símbolos com os quais estejam mais familiarizados. Supõem, erroneamente, que isso seja um ato fraterno de tolerância e “diálogo inter-religioso”, mas constitui-se em evidente deturpação doutrinária que ilude e confunde.

Quem procura uma casa espírita, seja ou não pela primeira vez, obviamente espera conhecer o Espiritismo em sua essência e não encontrar um arremedo sincrético ali preparado sob a alegação de uma questionável flexibilidade holística ou ecumênica.

O diálogo inter-religioso é uma oportunidade para fortalecer o Espiritismo em ambientes específicos com esse claro propósito, sem comprometer a clareza do ensino dos Espíritos apresentados nas obras de Allan Kardec na própria casa espírita.



[1] Ver Revista espírita, dez/1868, Constituição transitória do Espiritismo - Dos cismas.


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