Limites e desafios do diálogo inter-religioso no contexto
espírita
Marco Milani
Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, Ed. 202,
set/out 2024, p. 33-34
O diálogo inter-religioso, entendido como um
esforço de comunicação e interação entre pessoas ou grupos de diferentes
tradições e sistemas de crença, objetiva promover a compreensão mútua, o
respeito, e a cooperação em questões de interesse comum. Em um mundo cada vez
mais integrado, em que variadas culturas e cosmovisões sobrepõem-se, o diálogo
entre as religiões é visto como um meio de superar preconceitos, construir
pontes de entendimento e promover a paz.
Em regiões historicamente marcadas por conflitos de
origem religiosa, esse tipo de diálogo tem contribuído para amainar antagonismos.
Destacam-se, por exemplo, os esforços que buscam aproximar indianos e
paquistaneses. Desde a partição do subcontinente indiano em 1947, que resultou
na criação da Índia e do Paquistão como estados independentes, as relações
entre hindus e muçulmanos têm sido tensas e frequentemente violentas.
Iniciativas de diálogo inter-religioso, promovidas tanto por governos quanto
por organizações da sociedade civil, procuram estimular a reconciliação entre
essas comunidades.
Contudo, embora ofereça inegáveis benefícios, o
diálogo inter-religioso também enseja cuidados, especialmente quando as
diferenças que caracterizam as identidades de cada grupo não são adequadamente
respeitadas.
Um dos desafios a serem enfrentados é o sincretismo,
que pode ocorrer quando elementos de diferentes tradições filosóficas e religiosas
são misturados, distorcendo as crenças originais. O sincretismo, inclusive,
pode ser discutido como um fenômeno que surge em contextos de contato cultural
intenso, onde há uma tentativa de harmonizar diferentes sistemas de crença.
Embora essa harmonização possa, em alguns casos, enriquecer a espiritualidade
individual, ela também pode levar à perda da integridade doutrinária.
A participação de representantes espíritas em
eventos multiculturais que celebrem a paz entre diferentes crenças é esperada e
bem-vinda, em nome da convivência fraterna e da tolerância religiosa.
Certamente, o Espiritismo é aberto ao diálogo e à análise
de outras tradições e filosofias, porém isso não deve ser feito em detrimento
da distorção dos próprios princípios e valores. Mesmo que haja uma intenção
positiva, como promover a cooperação ou o entendimento entre diferentes partes,
isso não deve acontecer às custas de sacrificar ou modificar os princípios e
conceitos que formam a base doutrinária da identidade espírita.
Allan Kardec apontou que a unidade do Espiritismo
depende da plena compreensão e prática de seus princípios e valores, destacando
como condição indispensável que todas as partes do conjunto da doutrina estejam
determinadas com precisão e clareza[1].
Superstições, crendices, misticismos e interpretações estanhas ao Espiritismo,
quando não diferenciados dos próprios conceitos espíritas, prejudicam
severamente essa unidade sob a perspectiva dos adeptos e simpatizantes.
Por um lado, portanto, o diálogo inter-religioso
pode construir pontes de entendimento entre culturas com visões antagônicas,
mas por outro, não se deve aplicar a mesma proposta para favorecer a quebra de
identidade conceitual.
Imprudentemente, dirigentes de centros espíritas
que não compreenderam a necessidade do respeito à doutrina que dizem abraçar,
podem supor que as palestras e outros serviços oferecidos devam conter
elementos sincréticos para melhor acolher aqueles que estão “chegando agora” e não
conhecem o Espiritismo, para que se sintam confortáveis e atraídos por
encontrar conceitos, práticas e símbolos com os quais estejam mais familiarizados.
Supõem, erroneamente, que isso seja um ato fraterno de tolerância e “diálogo
inter-religioso”, mas constitui-se em evidente deturpação doutrinária que ilude
e confunde.
Quem procura uma casa espírita, seja ou não pela
primeira vez, obviamente espera conhecer o Espiritismo em sua essência e não
encontrar um arremedo sincrético ali preparado sob a alegação de uma
questionável flexibilidade holística ou ecumênica.
O diálogo inter-religioso é uma oportunidade para
fortalecer o Espiritismo em ambientes específicos com esse claro propósito, sem
comprometer a clareza do ensino dos Espíritos apresentados nas obras de Allan
Kardec na própria casa espírita.
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