A prudência doutrinária perante romances mediúnicos
Marco
Milani
Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, Ed. 202, set/out 2024, p. 33-34
Não é raro, principalmente entre neófitos, encontrar quem considera a
vasta literatura romanceada e ficcional voltada ao mercado editorial espírita
como sendo parte integrante da Doutrina Espírita. Ao equiparar romances
mediúnicos às obras doutrinárias, comete-se um equívoco metodológico
significativo. Allan Kardec adotou um critério de validação das informações
obtidas por diferentes médiuns e em diferentes locais, denominado Controle
Universal do Ensino dos Espíritos, o qual consistia em identificar o conteúdo
convergente nas comunicações mediúnicas obtidas em diferentes grupos, por médiuns
que não se conheciam entre si. Somente as informações que fossem corroboradas
por múltiplas fontes, de maneira coerente e universal, eram aceitas como ensino
dos Espíritos, integrantes do Espiritismo. Esse método não limitava a validade
de princípios e valores a um único médium ou Espírito desencarnado.
Por outro lado, textos escritos por uma única fonte espiritual ou
mediúnica podem expressar, isoladamente, apenas a opinião do Espírito
comunicante.
Os romances mediúnicos merecem ser apreciados e estudados. O próprio Kardec
incluiu vários deles no Catálogo Racional para se fundar uma biblioteca
espírita, sugerindo ao estudioso espírita que tomasse contato com eles. Embora
possam trazer informações e reflexões valiosas sobre a vida espiritual, não
passam pelo mesmo rigor metodológico. Eles são frequentemente o produto da
interpretação e das vivências de um determinado Espírito. Por isso, esses
livros apresentam visões parciais, mais focados em impressões particularizadas
do que em conhecimentos universais.
Certamente, os romances ditos “mediúnicos” são muito populares,
ocupando lugar de destaque no gênero dos livros mais comercializados. Utilizando
uma linguagem próxima do cotidiano e contando com histórias emocionantes que
facilitam a identificação do leitor com as experiências narradas, romances
ficcionais sensibilizam. Além disso, como são obras mais recentes, alguns chegam
a acreditar que elas ofereceriam uma visão mais atualizada do mundo espiritual.
Essa percepção, no entanto, tende a ser enganosa, pois a validade das
informações não depende da data em que foram transmitidas, mas sim do método
pelo qual foram verificadas. A história envolvente e convincente desses romances,
atrelada à simpatia e à idoneidade dos médiuns, também pode levar muitos
leitores a aceitarem essas obras como relatos fidedignos do mundo espiritual,
sem o devido ceticismo ou análise crítica.
Especular que os romances mediúnicos sejam realistas e doutrinariamente
mais robustos do que as obras de Kardec, baseando-se em argumentos de
autoridade (quem assina a comunicação, quem foi o médium etc.) sem a necessária
validação metodológica, é uma imprudência grave, que fere a esperada fé
raciocinada. Tudo deve ser questionado e não se deve aceitar cegamente as
informações mediúnicas de fonte única.
Assim, é relevante aos adeptos do Espiritismo distinguir entre o valor
literário e moral dos romances mediúnicos e a Doutrina Espírita propriamente
dita. Os romances podem ser motivacionais e úteis para reflexões pessoais, inclusive
para a formulação de hipóteses descritivas da realidade espiritual, mas não
devem ser confundidos com a doutrina estabelecida através do CUEE. Essa falta
de distinção e a aceitação irrefletida de informações supostamente mediúnicas
como verdades objetivas podem levar a distorções na compreensão do Espiritismo
e à perpetuação de crenças não fundamentadas.
Leiamos
o que quisermos, mas com as lentes da razão.
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