A
universalidade do Espiritismo frente às abordagens decoloniais
Marco
Milani
Texto
publicado no Portal Espiritismo com Kardec - Revista Harmonia – maio/2025*
O crescimento da influência do pensamento decolonial em algumas áreas
das ciências humanas tem levado a tentativas recentes de aplicar suas
categorias críticas ao Espiritismo, buscando reinterpretar a doutrina
codificada por Allan Kardec a partir de paradigmas associados à descolonização
do saber. Essa aproximação, embora por vezes bem-intencionada, revela uma
profunda incompreensão epistemológica sobre a natureza do Espiritismo, tanto em
seus fundamentos quanto em sua proposta metodológica.
Enquanto o pensamento decolonial se estrutura como uma crítica à
hegemonia do conhecimento ocidental e às relações de poder que se expressam nas
formas de produção e validação do saber, o Espiritismo nasce, ao contrário,
como um projeto de emancipação racional do pensamento religioso e místico,
fundado em princípios universais e em método experimental.
A proposta central da teoria decolonial, como a própria denominação
sugere, é questionar a colonialidade do poder, do saber e do ser, buscando
valorizar epistemologias “do Sul”, saberes oriundos de tradições não
ocidentais, e formas culturais historicamente marginalizadas (Mignolo &
Walsh, 2018). No entanto, ao se tentar aplicar essa matriz crítica ao
Espiritismo, incorre-se em um equívoco fundamental: confundir o universalismo
da razão com etnocentrismo europeu.
O Espiritismo, conforme delineado por Kardec, não é um sistema
ideológico de domínio cultural, mas uma filosofia de base científica que busca
compreender as leis universais da vida espiritual a partir da observação dos
fenômenos e do exame racional das comunicações dos espíritos. Não se trata,
portanto, de um saber imposto pelo Ocidente sobre outras culturas, mas de um
esforço para construir um conhecimento verificável, passível de ser reproduzido
e criticado por qualquer pessoa, em qualquer lugar, independentemente de sua
origem cultural. Como afirma Kardec (2008), "o Espiritismo é uma ciência
que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos e de suas relações com o
mundo corporal", e sua validade independe do local de onde se manifeste.
Kardec, sendo francês e atuando no século XIX, estava obviamente
imerso na cultura europeia e servia-se da linguagem, códigos e valores típicos
de seu tempo e espaço para a expressão das ideias que organizava. No entanto,
isso não compromete a proposta universal do ensino dos Espíritos, os quais, por
sua própria natureza, não estão confinados nem geograficamente nem
culturalmente.
A doutrina espírita parte do princípio de que a verdade espiritual é
acessível a todos e não depende da tradição particular de um povo ou de um
continente, mas sim da capacidade de análise racional e moral de qualquer ser
humano. A cultura de Kardec serviu como veículo para a sistematização, mas o
conteúdo, oriundo dos Espíritos, transcende os limites históricos e geográficos
de sua codificação.
A tentativa de reinterpretar o Espiritismo sob uma ótica decolonial
frequentemente se apoia em três premissas equivocadas: a primeira é a suposição
de que a doutrina representaria uma apropriação eurocêntrica de saberes
espirituais ancestrais, apagando sua diversidade; a segunda, que haveria uma
homogeneização da experiência espiritual em moldes racionais e cientificistas;
e a terceira, que o Espiritismo teria se alinhado historicamente a projetos de
poder colonial, direta ou indiretamente. Autores como Pereira (2023) têm
sugerido que o Espiritismo, ao sistematizar saberes espirituais em linguagem
científica ocidental, teria silenciado vozes não europeias e espiritualidades
autóctones. Contudo, nenhuma dessas ideias se sustenta à luz de uma análise objetiva
das fontes primárias da doutrina. Kardec deixou claro, em diversas ocasiões,
que seu papel foi o de organizador e sistematizador de um conjunto de
manifestações espirituais que ocorriam em diferentes países, sob variadas
formas. Ele não reivindicou para si a autoria das ideias, mas o mérito de
aplicar um critério racional e metódico para discernir, entre as mensagens
mediúnicas, aquelas coerentes com os princípios universais de moral, lógica e
progresso. A autoridade da doutrina está, justamente, no método utilizado para
a sua elaboração (Kardec, 2003).
O Espiritismo, ademais, jamais se propôs como instrumento de
homogeneização cultural. Pelo contrário, ele reconhece a pluralidade de
pensamentos, a diversidade das experiências espirituais e a dinamicidade das
sociedades. A moral espírita, embora baseada em princípios universais como
justiça, amor e caridade, é aplicada de modo relativo ao contexto cultural,
histórico e evolutivo de cada povo. Kardec não negou o valor dos saberes
tradicionais, mas defendeu que o critério para validar qualquer conhecimento deve
ser sua coerência com a razão, a experiência e a moral universal.
A intenção de opor a racionalidade à ancestralidade, como fazem alguns
autores decoloniais, constitui uma falsa dicotomia, pois o Espiritismo não
exclui, como mencionado, os saberes ancestrais, mas os examina sob um prisma
crítico, livre de dogmas e imposições. Como observa Kardec (1996), “todo ensino
metódico deve partir do conhecido para o desconhecido”, reforçando o respeito
às ideias particulares.
A suposta associação do Espiritismo com o colonialismo carece de
qualquer base histórica concreta. Ao contrário, muitos dos primeiros
espiritistas foram ativistas da abolição da escravatura, defensores da educação
popular, do direito das mulheres e da liberdade de expressão. O Espiritismo se
propagou no Brasil, por exemplo, entre intelectuais e setores que viam na
doutrina uma forma de resistência ao clericalismo e ao obscurantismo. A
doutrina espírita não se fez cúmplice do projeto colonial, mas antes ofereceu
uma via alternativa de emancipação moral e intelectual baseada na liberdade de
pensamento, na responsabilidade individual e na perfectibilidade do ser.
Além disso, aplicar categorias contemporâneas como a de colonialidade
do saber ao contexto de formulação do Espiritismo no século XIX incorre em
anacronismo metodológico, desconsiderando a especificidade histórica e o
projeto científico que movia Kardec, conforme salientado por Koselleck (2006)
ao advertir contra a projeção de conceitos modernos sobre realidades passadas.
A intenção de aplicar categorias decoloniais ao Espiritismo fracassa
em respeitar a singularidade epistemológica e histórica da doutrina. Ao
imputar-lhe um suposto eurocentrismo, ignora-se que a universalidade proposta
por Kardec não é imposição cultural, mas busca de leis gerais que possam ser
compreendidas e verificadas por todos. Reduzir o Espiritismo a um produto da
colonialidade é negar sua natureza científica, sua proposta moral universal e
seu compromisso com a liberdade de consciência. Assim, em vez de reinterpretá-lo
sob categorias exógenas, é mais coerente estudá-lo com base em suas próprias
premissas, em diálogo crítico, mas respeitoso, com sua proposta original de
conhecimento, moralidade e transformação espiritual.
Referências
Kardec, A.
(2003). O evangelho segundo o Espiritismo. Editora LAKE.
Kardec, A. (1996).
O livro dos médiuns. Editora EME.
Kardec, A.
(2008). O que é o Espiritismo. Federação Espírita Brasileira.
Koselleck, R.
(2006). Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Contraponto/EdUERJ.
Mignolo, W.,
& Walsh, C. (2018). On decoloniality: Concepts, analytics, praxis. Duke
University Press.
Pereira A. S.
(2023). Notas para um Espiritismo Decolonial. FAK. Desponível em <
https://www.faknet.org.br/wp-content/uploads/2023/01/Notas-para-um-Espiritismo-Decolonial_Versao-Final.pdf>.
Acessado em 04/05/25.
Vídeo relacionado: https://youtu.be/BAk1OfY3Ym0?si=Rcz48ezKmkH0rWTO
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