sexta-feira, 16 de maio de 2025

Kardec e o espiritualismo americano

 

Kardec e o espiritualismo americano

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.206, mai/jun 2025, p.8-9

 

O Espiritismo teve sua origem num contexto histórico em que o interesse por fenômenos mediúnicos já se espalhava por diversos países, sobretudo após o surgimento do chamado espiritualismo moderno nos Estados Unidos. O ponto de partida desse movimento foi o célebre episódio das irmãs Fox, em Hydesville, no Estado de Nova York, em 1848, e rapidamente popularizou sessões mediúnicas por diversas regiões do país. No entanto, Allan Kardec, ao examinar o fenômeno com rigor filosófico e método científico, reconheceu os méritos iniciais do movimento americano, mas também apontou com clareza suas limitações e diferenças fundamentais em relação ao Espiritismo.

Em seu artigo intitulado “A escola espírita americana”, publicado na Revista Espírita em maio de 1864, Kardec analisou diretamente o espiritualismo anglo-saxão, com atenção às suas características e implicações. Ele destacou que os fatos observados nos Estados Unidos desempenharam um papel importante ao provar, de modo público e ostensivo, a existência de uma inteligência além da matéria. No entanto, ele observou que no espiritualismo americano a atenção aos fenômenos predominou, sem se ocupar da compreensão racional das causas nem da dedução de suas consequências morais.

Uma das diferenças mais evidentes apontadas por Kardec é que, enquanto o espiritualismo moderno gerou espetáculos e abordagens superficiais, o Espiritismo nasceu como uma doutrina com estrutura filosófica e metodológica próprias. A mediunidade, para o Espiritismo, não foi objeto de adoração nem de exibição, mas uma ferramenta para a aquisição de conhecimento e a elevação moral do ser humano. Kardec estruturou sua investigação a partir de princípios de controle universal, coerência lógica e finalidade educativa, elementos ausentes nas práticas mais comuns do espiritualismo popular americano.

Outra diferença significativa, segundo Kardec, centrou-se no tratamento dado à reencarnação. Enquanto o espiritualismo anglo-saxão, bastante enraizado em tradições protestantes, rejeitava ou ignorava essa ideia, o Espiritismo a colocava como um dos pilares fundamentais da evolução do Espírito. Para Kardec, a resistência à reencarnação por parte dos norte-americanos e ingleses estava ligada a preconceitos sociais e a uma visão teológica restritiva. Ele destacou que, nas comunicações mediúnicas recebidas em diversos locais europeus, esse princípio era tratado de forma mais aberta e coerente, o que indicava um meio cultural mais propício e maduro para absorver conceitos mais avançados sobre justiça divina, progresso, liberdade e responsabilidade individual.

Kardec criticou, ainda, a tendência do espiritualismo americano de absorver conceitos esotéricos e místicos, observando com cautela a promoção dos fenômenos espirituais sem o devido discernimento doutrinário. Ele defendeu que a comunicação com os Espíritos não podia ser vista como fonte de oráculos infalíveis ou conselhos terrenos, mas como um meio de aprendizado moral e racional sobre a realidade espiritual. Dessa maneira, o Espiritismo não se trata de uma simples continuação do que ocorria na América do Norte.

Sendo uma doutrina autônoma, com objetivos distintos, o Espiritismo não apenas comprova a existência da alma, mas também esclarece sobre as leis que regem sua existência antes, durante e após a encarnação. Mais do que fenômenos, o Espiritismo apresenta uma visão integrada e progressiva da vida, que une ciência, filosofia e moral em torno da imortalidade da alma e da evolução espiritual.

A originalidade do Espiritismo está, portanto, na sua proposta de transformação do ser humano a partir da razão esclarecida e da moral vivida. Ao sistematizar os ensinamentos dos Espíritos, Kardec não apenas racionalizou o invisível, como também ofereceu à humanidade uma chave de leitura para o sofrimento, a justiça, a liberdade e o amor, sem dogmatismo, sem hierarquias sacerdotais e sem mistificações. Nesse sentido, o Espiritismo é um ponto de superação do espiritualismo moderno, cuja força está não na autoridade humana, mas na coerência das ideias e na universalidade do ensino dos Espíritos.

As diferenças entre o espiritualismo anglo-saxão e o Espiritismo não apenas persistiram ao longo do tempo, mas se consolidaram em razão de suas bases metodológicas antagônicas. Enquanto o primeiro manteve-se frequentemente vinculado a uma abordagem mais intuitiva e menos crítica, o segundo firmou-se sobre o princípio da fé raciocinada, que rejeita a aceitação passiva de crendices em favor de uma compreensão lógica e experimental dos fenômenos espirituais. Essa distinção fundamental explica por que o Espiritismo logrou desenvolver uma doutrina coerente, enquanto o espiritualismo americano, em muitos aspectos, fragmentou-se em correntes esotéricas e práticas desconexas.

A fé raciocinada propõe uma espiritualidade crítica, onde comunicações mediúnicas e princípios doutrinários devem ser analisados pela razão e moral, evitando os excessos do misticismo e a banalização dos fenômenos espirituais. No entanto, em contextos marcados pelo sincretismo religioso e pouca formação analítica, esse ideal enfrenta desafios, representados por práticas sem fundamentação doutrinária ou científica, bem como a valorização exacerbada de opiniões e argumentos de autoridade de médiuns, Espíritos ou obras romanceadas, reproduzindo os mesmos problemas que Kardec criticou no espiritualismo americano do século XIX.

Atualmente, para preservar a sua essência, o movimento espírita necessita reafirmar, efetivamente, seu compromisso com a razão esclarecida, caminho seguro para evitar distorções e cumprir seu papel educativo e transformador.


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