Kardec e o espiritualismo americano
Marco Milani
Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.206, mai/jun
2025, p.8-9
O Espiritismo teve sua origem num contexto
histórico em que o interesse por fenômenos mediúnicos já se espalhava por
diversos países, sobretudo após o surgimento do chamado espiritualismo moderno
nos Estados Unidos. O ponto de partida desse movimento foi o célebre episódio
das irmãs Fox, em Hydesville, no Estado de Nova York, em 1848, e rapidamente
popularizou sessões mediúnicas por diversas regiões do país. No entanto, Allan
Kardec, ao examinar o fenômeno com rigor filosófico e método científico, reconheceu
os méritos iniciais do movimento americano, mas também apontou com clareza suas
limitações e diferenças fundamentais em relação ao Espiritismo.
Em seu artigo intitulado “A escola espírita americana”,
publicado na Revista Espírita em maio de 1864, Kardec analisou diretamente o
espiritualismo anglo-saxão, com atenção às suas características e implicações.
Ele destacou que os fatos observados nos Estados Unidos desempenharam um papel
importante ao provar, de modo público e ostensivo, a existência de uma
inteligência além da matéria. No entanto, ele observou que no espiritualismo
americano a atenção aos fenômenos predominou, sem se ocupar da compreensão
racional das causas nem da dedução de suas consequências morais.
Uma das diferenças mais evidentes apontadas por
Kardec é que, enquanto o espiritualismo moderno gerou espetáculos e abordagens
superficiais, o Espiritismo nasceu como uma doutrina com estrutura filosófica e
metodológica próprias. A mediunidade, para o Espiritismo, não foi objeto de
adoração nem de exibição, mas uma ferramenta para a aquisição de conhecimento e
a elevação moral do ser humano. Kardec estruturou sua investigação a partir de
princípios de controle universal, coerência lógica e finalidade educativa,
elementos ausentes nas práticas mais comuns do espiritualismo popular
americano.
Outra diferença significativa, segundo Kardec, centrou-se
no tratamento dado à reencarnação. Enquanto o espiritualismo anglo-saxão, bastante
enraizado em tradições protestantes, rejeitava ou ignorava essa ideia, o
Espiritismo a colocava como um dos pilares fundamentais da evolução do
Espírito. Para Kardec, a resistência à reencarnação por parte dos
norte-americanos e ingleses estava ligada a preconceitos sociais e a uma visão
teológica restritiva. Ele destacou que, nas comunicações mediúnicas recebidas em
diversos locais europeus, esse princípio era tratado de forma mais aberta e
coerente, o que indicava um meio cultural mais propício e maduro para absorver
conceitos mais avançados sobre justiça divina, progresso, liberdade e
responsabilidade individual.
Kardec criticou, ainda, a tendência do
espiritualismo americano de absorver conceitos esotéricos e místicos, observando
com cautela a promoção dos fenômenos espirituais sem o devido discernimento
doutrinário. Ele defendeu que a comunicação com os Espíritos não podia ser vista
como fonte de oráculos infalíveis ou conselhos terrenos, mas como um meio de
aprendizado moral e racional sobre a realidade espiritual. Dessa maneira, o
Espiritismo não se trata de uma simples continuação do que ocorria na América
do Norte.
Sendo uma doutrina autônoma, com objetivos
distintos, o Espiritismo não apenas comprova a existência da alma, mas também esclarece
sobre as leis que regem sua existência antes, durante e após a encarnação. Mais
do que fenômenos, o Espiritismo apresenta uma visão integrada e progressiva da
vida, que une ciência, filosofia e moral em torno da imortalidade da alma e da
evolução espiritual.
A originalidade do Espiritismo está, portanto, na
sua proposta de transformação do ser humano a partir da razão esclarecida e da
moral vivida. Ao sistematizar os ensinamentos dos Espíritos, Kardec não apenas
racionalizou o invisível, como também ofereceu à humanidade uma chave de
leitura para o sofrimento, a justiça, a liberdade e o amor, sem dogmatismo, sem
hierarquias sacerdotais e sem mistificações. Nesse sentido, o Espiritismo é um
ponto de superação do espiritualismo moderno, cuja força está não na autoridade
humana, mas na coerência das ideias e na universalidade do ensino dos
Espíritos.
As diferenças entre o espiritualismo anglo-saxão e
o Espiritismo não apenas persistiram ao longo do tempo, mas se consolidaram em
razão de suas bases metodológicas antagônicas. Enquanto o primeiro manteve-se
frequentemente vinculado a uma abordagem mais intuitiva e menos crítica, o
segundo firmou-se sobre o princípio da fé raciocinada, que rejeita a aceitação
passiva de crendices em favor de uma compreensão lógica e experimental dos
fenômenos espirituais. Essa distinção fundamental explica por que o Espiritismo
logrou desenvolver uma doutrina coerente, enquanto o espiritualismo americano,
em muitos aspectos, fragmentou-se em correntes esotéricas e práticas
desconexas.
A fé raciocinada propõe uma espiritualidade
crítica, onde comunicações mediúnicas e princípios doutrinários devem ser
analisados pela razão e moral, evitando os excessos do misticismo e a
banalização dos fenômenos espirituais. No entanto, em contextos marcados pelo
sincretismo religioso e pouca formação analítica, esse ideal enfrenta desafios,
representados por práticas sem fundamentação doutrinária ou científica, bem
como a valorização exacerbada de opiniões e argumentos de autoridade de médiuns,
Espíritos ou obras romanceadas, reproduzindo os mesmos problemas que Kardec
criticou no espiritualismo americano do século XIX.
Atualmente, para preservar a sua essência, o
movimento espírita necessita reafirmar, efetivamente, seu compromisso com a
razão esclarecida, caminho seguro para evitar distorções e cumprir seu papel
educativo e transformador.
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