sábado, 8 de novembro de 2025

Riscos conceituais e doutrinários do uso da inteligência artificial


 

Riscos conceituais e doutrinários do uso da inteligência artificial

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.209, nov/dez 2025, p. 35-36

 

O avanço da inteligência artificial (IA) transformou a escrita e a pesquisa, oferecendo recursos úteis para organizar ideias, revisar textos e ampliar o acesso ao conhecimento. Entretanto, o uso indiscriminado dessas ferramentas na elaboração de artigos, aulas e palestras espíritas, sem a devida revisão humana, apresenta sérios riscos conceituais, doutrinários e éticos. As próprias empresas desenvolvedoras de IA advertem que seus sistemas podem gerar erros, omissões e distorções. No contexto espírita, isso exige redobrada cautela.

O primeiro problema é epistemológico. A IA não “sabe” o que escreve, pois ela apenas reproduz padrões de linguagem aprendidos em grandes bases de dados, sem compreender o conteúdo. Assim, pode mesclar ideias corretas e equívocos, citar fontes imprecisas ou confundir conceitos essenciais. Em textos sobre Espiritismo, essa limitação é grave, pois o sistema pode misturar o pensamento de Allan Kardec com interpretações fantasiosas ou doutrinas alheias. A linguagem fluente e convincente das respostas automatizadas aumenta o risco, já que o erro se apresenta com aparência de verdade.

O segundo problema é metodológico e doutrinário. O Espiritismo propõe um método baseado na razão, na verificação e na coerência. Kardec sempre defendeu o exame rigoroso das comunicações espirituais e a responsabilidade moral do divulgador. Utilizar a IA sem revisão equivale a publicar mensagens mediúnicas sem análise. O resultado pode conter desvios e comprometer a credibilidade do texto, do autor e da própria Doutrina aos olhos dos mais desatentos. A revisão criteriosa é, portanto, uma exigência moral e intelectual, pois é o autor encarnado quem responde pelo conteúdo que assina e divulga.

Outro risco é a diluição conceitual. A IA tende a uniformizar expressões e simplificar significados, confundindo termos de valor específico dentro da Doutrina. Pode tratar caridade como sinônimo de assistencialismo, fé como crença cega, ou perispírito como corpo físico, comprometendo a clareza e a coerência doutrinária. A precisão terminológica é essencial à preservação do pensamento espírita e qualquer descuido nesse campo contribui para distorção doutrinária.

Há também implicações éticas e pedagógicas. O educador e o expositor espírita têm responsabilidade sobre o que ensinam. A produção de textos automáticos reduz o envolvimento do autor e o transforma em mero transmissor de frases bem compostas, mas sem a devida reflexão pessoal. A força da aula ou da palestra está no diálogo entre o conhecimento e a experiência de quem fala, algo que nenhuma máquina pode reproduzir. O ensino espírita tem consequências morais, não sendo apenas informativo, exigindo ponderação e autenticidade.

As instituições espíritas também enfrentam riscos. Revistas, boletins e sites que publicam textos gerados por IA sem revisão comprometem sua credibilidade e responsabilidade doutrinária. A pressa em produzir materiais não pode se sobrepor ao compromisso com a verdade e a coerência ao ensino dos Espíritos. Como advertiu Erasto, “mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma só falsidade”[1]. O cuidado na divulgação é parte integrante da ética espírita.

A inteligência artificial, quando usada com discernimento, pode ser muito útil, mas deve permanecer como instrumento de apoio, e nunca como substituto do raciocínio. Produzir conteúdo espírita requer envolvimento moral e intelectual, pois se trata de transmitir valores e princípios que ultrapassam a linguagem.

O progresso técnico é legítimo e deve ser incorporado ao trabalho espírita com responsabilidade. Contudo, nenhuma ferramenta garante a coerência doutrinária. A tarefa do divulgador é compreender o que ensina, refletindo o ideal de Kardec de unir razão e moral, ciência e fé.

 As máquinas não compreendem os valores que expressam nem assumem responsabilidade moral por eles. Cabe, portanto, aos trabalhadores espíritas revisar, corrigir e discernir o que divulgam.

 



[1] Ver O Livro dos Médiuns, capítulo XX, “Influência moral dos médiuns”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário