Liberdade, igualdade e
fraternidade*
Allan Kardec
Liberdade, igualdade e
fraternidade. Estas três palavras constituem, por si sós, o programa de toda
uma ordem social que realizaria o mais absoluto progresso da Humanidade, se os
princípios que elas exprimem pudessem receber integral aplicação. Vejamos quais
os obstáculos que, no estado atual da sociedade, se lhes opõem e, ao lado do
mal, procuremos o remédio.
A fraternidade, na
rigorosa acepção do termo, resume todos os deveres dos homens, uns para com os
outros. Significa: devotamento, abnegação, tolerância, benevolência,
indulgência. É, por excelência, a caridade evangélica e a aplicação da máxima:
“Proceder para com os outros, como quereríamos que os outros procedessem para
conosco.” O oposto do egoísmo. A fraternidade diz: “Um por todos e todos por
um.” O egoísmo diz: “Cada um por si.” Sendo estas duas qualidades a negação uma
da outra, tão impossível é que um egoísta proceda fraternalmente para com os
seus semelhantes, quanto a um avarento ser generoso, quanto a um indivíduo de
pequena estatura atingir a de um outro alto. Ora, sendo o egoísmo a chaga
dominante da sociedade, enquanto ele reinar soberanamente, impossível será o
reinado da fraternidade verdadeira. Cada um a quererá em seu proveito; não
quererá, porém, praticá-la em proveito dos outros, ou, se o fizer, será depois
de se certificar de que não perderá coisa alguma.
Considerada do ponto de
vista da sua importância para a realização da felicidade social, a fraternidade
está na primeira linha: é a base. Sem ela, não poderiam existir a igualdade,
nem a liberdade séria. A igualdade decorre da fraternidade e a liberdade é
consequência das duas outras.
Com efeito, suponhamos uma
sociedade de homens bastante desinteressados, bastante bons e benévolos para
viverem fraternalmente, sem haver entre eles nem privilégios, nem direitos
excepcionais, pois de outro modo não haveria fraternidade. Tratar a alguém de
irmão é tratá-lo de igual para igual; é querer quem assim o trate, para ele, o
que para si próprio quereria. Num povo de irmãos, a igualdade será a consequência
de seus sentimentos, da maneira de procederem, e se estabelecerá pela força
mesma das coisas. Qual, porém, o inimigo da igualdade? O orgulho, que faz
queira o homem ter em toda parte a primazia e o domínio, que vive de
privilégios e exceções, poderá suportar a igualdade social, mas não a fundará
nunca e na primeira ocasião a desmantelará. Ora, sendo também o orgulho uma das
chagas da sociedade, enquanto não for banido, oporá obstáculo à verdadeira
igualdade.
A liberdade, dissemo-lo, é
filha da fraternidade e da igualdade. Falamos da liberdade legal e não da
liberdade natural, que, de direito, é imprescritível para toda criatura humana,
desde o selvagem até o civilizado. Os homens que vivam como irmãos, com direitos
iguais, animados do sentimento de benevolência recíproca, praticarão entre si a
justiça, não procurarão causar danos uns aos outros e nada, por conseguinte,
terão que temer uns dos outros. A liberdade nenhum perigo oferecerá, porque
ninguém pensará em abusar dela em prejuízo de seus semelhantes. Mas, como
poderiam o egoísmo, que tudo quer para si, e o orgulho, que incessantemente
quer dominar, dar a mão à liberdade que os destronaria? O egoísmo e o orgulho
são, pois, os inimigos da liberdade, como o são da igualdade e da fraternidade.
A liberdade pressupõe
confiança mútua. Ora, não pode haver confiança entre pessoas dominadas pelo
sentimento exclusivista da personalidade. Não podendo cada uma satisfazer-se a
si própria senão à custa de outrem, todas estarão constantemente em guarda umas
contra as outras. Sempre receosas de perderem o a que chamam seus direitos, a
dominação constitui a condição mesma da existência de todas, pelo que armarão
continuamente ciladas à liberdade e a coarctarão quanto puderem.
Aqueles três princípios
são, pois, conforme acima dissemos, solidários entre si e se prestam mútuo
apoio; sem a reunião deles o edifício social não estaria completo. O da
fraternidade não pode ser praticado em toda a pureza, com exclusão dos dois
outros, porquanto, sem a igualdade e a liberdade, não há verdadeira
fraternidade. A liberdade sem a fraternidade é rédea solta a todas as más
paixões, que desde então ficam sem freio; com a fraternidade, o homem nenhum
mau uso faz da sua liberdade: é a ordem; sem a fraternidade, usa da liberdade
para dar curso a todas as suas torpezas: é a anarquia, a licença. Por isso é
que as nações mais livres se veem obrigadas a criar restrições à liberdade. A
igualdade, sem a fraternidade, conduz aos mesmos resultados, visto que a
igualdade reclama a liberdade; sob o pretexto de igualdade, o pequeno rebaixa o
grande, para lhe tomar o lugar, e se torna tirano por sua vez; tudo se reduz a
um deslocamento de despotismo.
Seguir-se-á daí que,
enquanto os homens não se acharem imbuídos do sentimento de fraternidade, será
necessário tê-los em servidão? Dar-se-á sejam inaptas as instituições fundadas
sobre os princípios de igualdade e de liberdade? Semelhante opinião fora mais
que errônea; seria absurda. Ninguém espera que uma criança se ache com o seu
crescimento completo para lhe ensinar a andar. Quem, ao demais, os tem sob
tutela? Serão homens de ideias elevadas e generosas, guiados pelo amor do
progresso? Serão homens que se aproveitem da submissão dos seus inferiores para
lhes desenvolver o senso moral e elevá-los pouco a pouco à condição de homens
livres? Não; são, em sua maioria, homens ciosos do seu poder, a cuja ambição e
cupidez outros homens servem de instrumentos mais inteligentes do que animais e
que, então, em vez de emancipá-los, os conservam, por todo o tempo que for
possível, subjugados e na ignorância.
Mas, esta ordem de coisas
muda de si mesma, pelo poder irresistível do progresso. A reação é não raro
violenta e tanto mais terrível, enquanto o sentimento da fraternidade,
imprudentemente sufocado, não logra interpor o seu poder moderador; a luta se
empenha entre os que querem tomar e os que querem reter; daí um conflito que se
prolonga às vezes por séculos. Afinal, um equilíbrio fictício se estabelece; há
qualquer coisa de melhor. Sente-se, porém, que as bases sociais não estão
sólidas; a cada passo o solo treme, por isso que ainda não reinam a liberdade e
a igualdade, sob a égide da fraternidade, porque o orgulho e o egoísmo
continuam empenhados em fazer se malogrem os esforços dos homens de bem.
Todos vós que sonhais com
essa idade de ouro para a Humanidade trabalhai, antes de tudo, na construção da
base do edifício, sem pensardes em lhe colocar a cúpula; ponde-lhe nas
primeiras fiadas a fraternidade na sua mais pura acepção. Mas, para isso, não
basta decretá-la e inscrevê-la numa bandeira; faz-se mister que ela esteja no
coração dos homens e não se muda o coração dos homens por meio de ordenações.
Do mesmo modo que para fazer que um campo frutifique, é necessário se lhe
arranquem os pedrouços e os tocos, aqui também é preciso trabalhar sem descanso
por extirpar o vírus do orgulho e do egoísmo, pois que aí se encontra a causa
de todo o mal, o obstáculo real ao reinado do bem. Eliminai das leis, das
instituições, das religiões, da educação até os últimos vestígios dos tempos de
barbárie e de privilégios, bem como todas as causas que alimentam e desenvolvem
esses eternos obstáculos ao verdadeiro progresso, os quais, por assim dizer,
bebemos com o leite e aspiramos por todos os poros na atmosfera social. Somente
então os homens compreenderão os deveres e os benefícios da fraternidade e
também se firmarão por si mesmos, sem abalos, nem perigos, os princípios
complementares, os da igualdade e da liberdade.
Será possível a destruição
do orgulho e do egoísmo? Responderemos alto e terminantemente: SIM. Do
contrário, forçoso seria determinar um ponto de parada ao progresso da
Humanidade. Que o homem cresce em inteligência, é fato incontestável; terá ele
chegado ao ponto culminante, além do qual não possa ir? Quem ousaria sustentar
tão absurda tese? Progride ele em moralidade? Para responder a esta questão,
basta se comparem as épocas de um mesmo país. Por que teria ele atingido o
limite do progresso moral e não o do progresso intelectual? Sua aspiração por
uma melhor ordem de coisas é indício da possibilidade de alcançá-la. Aos homens
do progresso cabe acelerar esse movimento por meio do estudo e da utilização
dos meios mais eficientes.
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* Texto reproduzido do livro Obras Póstumas
de Allan Kardec – 1ª Parte – Questões e Problemas – Liberdade, igualdade e
fraternidade. Trad. João Teixeira de Paula. Editora LAKE, 2005.
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