sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Kardec, o bom senso encarnado

 


Kardec, o bom senso encarnado

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, Ed. 202, set/out 2024, p. 21 e 22


Tradicionalmente, no dia 3 de outubro, os espíritas destacam a relevância e o legado do Professor Rivail, posteriormente conhecido como Allan Kardec, lembrando o seu nascimento nessa data, em Lyon, França. Educador, filósofo e cientista, Kardec deve ser homenageado pelo protagonismo na estruturação e divulgação do Espiritismo, com suas valiosíssimas contribuições à compreensão das questões que sempre intrigaram a humanidade: quem somos, de onde viemos e para onde iremos.

              A Doutrina Espírita, apesar de não ser o produto de um só homem, expressa a síntese do conhecimento obtido no intercâmbio mediúnico, criteriosamente analisado, organizado e validado por Kardec. Sua disciplina, sensatez, postura ética e capacidade administrativa diante das inúmeras atividades sob sua responsabilidade, e os desafios decorrentes do embate entre as novas abordagens trazidas pelo Espiritismo e as ideias cristalizadas, geraram a admiração e o respeito não somente daqueles que compartilharam de sua proximidade, mas da sociedade em geral.

Após sua desencarnação, algumas características marcantes de Kardec foram evidenciadas nos discursos proferidos durante seu funeral[1]. Jules Levent, vice-presidente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), comentou sobre a benevolência e austeridade do mestre lionês, enfatizando sua ponderação e lógica incomparável, que pareciam ser inspiradas.

O renomado astrônomo Camille Flammarion pontuou aspectos relevantes sobre a trajetória de pesquisa do Professor Rivail, até que ele se dedicou integralmente ao estudo e divulgação do Espiritismo a milhões de pessoas em diversos continentes. Flammarion enalteceu o poder consolador e a proposta científica do Espiritismo. Por conta da razão reta e judiciosa de Kardec, Flammarion o designou como o “bom senso encarnado”.

              Alexandre Delanne, amigo pessoal e membro da SPEE, expressou o sentimento de pesar que ele compartilhava com inúmeros adeptos que tiveram a oportunidade de conhecer a filosofia dos Espíritos, graças à habilidade e sabedoria do mestre, que conseguiu colocá-la à altura de todas as inteligências, desde as mais simples até as mais eruditas.

              Por fim, o senhor Muller, amigo de Kardec e de sua esposa Amélie, enalteceu a conduta do dedicado educador, detentor de brilhante inteligência, que sempre procurou auxiliar a todos, inclusive com aulas gratuitas sobre diversas disciplinas para aqueles que não tinham condições financeiras. Com relação ao Espiritismo, o senhor Muller apontou que Kardec vivenciava completamente a tríade: Razão, Trabalho e Solidariedade.

Todos os elogiosos discursos tinham como pontos comuns a benevolência, a ética e a acuidade intelectual, reconhecidos pela comunidade espírita e científica da época como características desse nobre Espírito que acabava de deixar a experiência carnal.

              A capacidade de Kardec para pensar de forma clara, precisa e crítica envolvia uma percepção aguçada e a habilidade de discernir detalhes complexos, de identificar nuances em argumentos e processar informações de maneira lógica e coerente, algo que ele simplificadamente chamava de bom senso, mas que Flammarion capturou adequadamente em seu discurso póstumo. Ao analisar situações, problemas ou conceitos com profundidade, reconhecendo padrões, implicações e possíveis soluções que outros podem não perceber, Kardec demonstrava a tolerância e paciência para comunicar-se e esclarecer fraternalmente como um verdadeiro educador e líder.

              Nos trabalhos iniciais para a elaboração da doutrina espírita, fazia-se necessária a centralização do processo em um só homem encarnado, como relata Kardec em suas anotações particulares[2], a fim de manter a unidade e evitar o desvirtuamento conceitual diante de diferentes opiniões e motivações. Contudo, como elemento fundamental para a interpretação e aprimoramento do edifício doutrinário, alinhado com a própria realidade, Kardec insistiu no uso da razão e da lógica para unir a todos e superar divergências em nome do bom senso.

Não por acaso, os conceitos de fé inabalável e de fé raciocinada perpassam todas as obras fundamentais do Espiritismo, uma vez que a proposta doutrinária exige a interpretação crítica dos fatos para se contrapor à superstição e ao misticismo inerentes a diversas correntes religiosas estabelecidas com seus dogmas inquestionáveis. O Espiritismo representa uma ruptura com o pensamento acrítico e devocional religioso, e com as crendices populares, situação que exige maturidade moral e intelectual para ser compreendida por adeptos e não-adeptos.

A adoção do Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE), como método prevalente para validar as informações mediúnicas, representou um marco crucial ao corpo teórico espírita e exemplificou a prudência inerente à fé raciocinada. A autoridade do Espiritismo repousa essencialmente na aplicação desse método.[3]

Passados quase dois séculos após a publicação de sua obra inicial, o Espiritismo ainda é um grande desconhecido para aqueles que não meditaram adequadamente no ensino dos Espíritos, validados pelo CUEE, e o aplicaram em suas vidas.

Possivelmente, a maneira mais efetiva de se homenagear Kardec não é pela simples apresentação de seus dados biográficos ou contando curiosidades históricas de sua vida privada, mas estudando seriamente a doutrina espírita, autoconhecendo-se, praticando a caridade e analisando criticamente qualquer informação envolvendo a natureza e a realidade espiritual com o bom senso que ele tanto prezou e se esforçou para que todos utilizassem.



[1] Ver Revista Espírita, maio/1869 – Discursos pronunciados sobre o túmulo

[2] Ver Obras Póstumas, 2ª parte – Minha iniciação no Espiritismo – O meu sucessor

[3] Ver O Evangelho Segundo o Espiritismo – Introdução – item II - Autoridade da doutrina espírita


Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2024/09/reDE-202-Set-Out-2024.pdf

domingo, 1 de setembro de 2024

A boa nova trazida pelo Espiritismo

 


A boa nova trazida pelo Espiritismo

 

Marco Milani


 Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 36, setembro de 2024, p. 9-11


A palavra Evangelho (em grego, Euangelion), etimologicamente é composta por dois elementos: Eu, que significa bom ou boa, e Angelion, que significa mensagem ou notícia. Portanto, Evangelho significa boa notícia, boa mensagem ou boa nova.

Na cultura cristã, Evangelho passou a ser utilizado genericamente para designar a mensagem central trazida por Jesus, referente à salvação do homem e ao Reino de Deus. A expressão “boa nova”, portanto, está tradicionalmente associada ao Evangelho de Jesus, sendo entendida como uma mensagem de esperança e um roteiro de conduta à humanidade.

As principais fontes históricas dos ensinos cristãos sãos os Evangelhos cujas autorias são atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João, ainda que tais registros estejam sujeitos a questionamentos críticos como a incerteza sobre a real origem e datação dos textos, a confiabilidade das fontes utilizadas e algumas discrepâncias nos relatos. Além disso, a influência das intenções teológicas dos autores e o contexto sociocultural da época impactam a objetividade desses registros. A tradição oral antes da escrita e a comparação com outras fontes históricas contemporâneas também são analisados modernamente para avaliar a precisão e a autenticidade dos relatos evangélicos.

Na perspectiva espírita, essa boa nova ganha uma dimensão ampliada, pois o Espiritismo não só reafirma os ensinamentos morais de Cristo, como também os reinterpreta à luz da razão e da ciência.

Apresentado ao mundo por Allan Kardec no século XIX, o Espiritismo surgiu como um marco na evolução do pensamento filosófico, oferecendo uma nova perspectiva sobre a “natureza, origem e destino dos Espíritos, assim como suas relações com o mundo corporal”[1]. Sendo uma doutrina filosófica com consequências morais, Jesus foi apontado como a referência máxima de conduta e, ainda, seus ensinamentos foram esclarecidos e desenvolvidos sob novas luzes.

Ao propor uma visão mais abrangente do Evangelho, o Espiritismo destaca a importância da evolução espiritual contínua, em diferentes encarnações, bem como da responsabilidade individual perante a leis divinas.

Uma das principais concepções da boa nova espírita é a abordagem da preexistência e imortalidade da alma em um ambiente regido por leis naturais perfeitas. Enquanto muitas filosofias e doutrinas apresentam a origem do ser e a vida após a morte como mistérios ou dogmas inquestionáveis, o Espiritismo as trata como uma realidade natural, passível de estudo e compreensão. Por meio da mediunidade, fenômeno amplamente documentado e estudado da doutrina espírita, é possível estabelecer valiosas comunicações com os seres desencarnados, demonstrando a continuidade da vida além do corpo físico e nutrir-se dos esclarecimentos proporcionados diretamente sob a ótica espiritual. Esse entendimento não só alivia o medo da morte, mas também oferece uma visão consoladora sobre o destino da alma, integralmente fundamentada na justiça e bondade divina.

A reencarnação, como elemento central na boa nova espírita, justifica o fato de que cada indivíduo vive múltiplas experiências objetivando o seu progresso moral e intelectual. Com uma explicação lógica para as desigualdades e sofrimentos humanos, o Espiritismo aponta a inúmeras oportunidades de aprimoramento espiritual. Sendo o principal mecanismo da justiça divina, em que cada ser depara-se com os resultados de suas escolhas, acertadas ou não, o fenômeno reencarnatório reforça a ideia de responsabilidade pessoal, como também promove uma visão otimista e evolutiva da existência, onde as dificuldades enfrentadas na vida alinham-se a um propósito educativo e transformador do ser.

Outro aspecto relevante da boa nova espírita é o axioma de que todo efeito possui uma causa, vinculando as ações realizadas ou intencionadas pelo indivíduo com as consequências, positivas ou negativas, refletidas em sua vida atual ou em futuras encarnações. A compreensão desse axioma estimula o desenvolvimento de uma consciência ética mais profunda, onde a prática do bem se torna não apenas uma virtude, mas uma necessidade para a construção de um futuro melhor.

A moral cristã, fundamentada na caridade, na humildade e no perdão, é outro ponto fundamental da boa nova sob a perspectiva espírita. No entanto, ultrapassa a simples adesão a esses princípios, propondo uma aplicação prática e cotidiana. O Espiritismo incentiva o autoconhecimento e o aperfeiçoamento constante do indivíduo pela prática do bem. Essa transformação é essencial para o progresso espiritual e para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. A caridade, em particular, é enfatizada no ensino dos Espíritos como a base de todas as virtudes, sendo considerada o verdadeiro caminho para a harmonia e a paz interior.

Ao promover valores como a liberdade e a solidariedade, o Espiritismo alinha-se com as propostas que valorizam os direitos individuais, as ações voluntárias humanistas e a liberdade de consciência.

Por fim, é importante destacar a relação do Espiritismo com a ciência, especificamente pelo pensamento crítico e racional que lhe permite ressaltar um de seus pilares: a fé raciocinada. Ao contrário de muitas linhas religiosas que veem a ciência como uma ameaça à fé, o Espiritismo a considera uma aliada na busca pela verdade. Por meio do estudo dos fenômenos mediúnicos e das investigações sobre a natureza da alma, o Espiritismo concilia fé e razão, oferecendo uma visão coerente e integrada do universo. Essa abordagem lógica permite que a doutrina espírita seja acessível a diferentes públicos, independentemente de crenças religiosas ou culturais, promovendo um diálogo aberto sobre as grandes questões da existência.

A boa nova trazida pelo Espiritismo representa, sinteticamente, um avanço no conhecimento revigorando os valores cristãos, condizentes com as necessidades e os desafios do mundo contemporâneo. Combinando ética, ciência e espiritualidade, o Espiritismo oferece uma mensagem de esperança e progresso para a humanidade, baseada na compreensão da pré-existência e da imortalidade da alma, na reencarnação, no axioma de causa e efeito e na prática do amor e da caridade. Essa nova visão do Evangelho, profundamente racional e fraterna, se coloca como um farol para aqueles que buscam um sentido maior na vida e um caminho para a evolução pessoal.

 



[1] Ver O que é o Espiritismo – Preâmbulo, de Allan Kardec.


sexta-feira, 12 de julho de 2024

A responsabilidade do dirigente espírita nas palestras públicas


 A responsabilidade do dirigente espírita nas palestras públicas

 

Marco Milani

 

 Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 201, jul/ago 2024, p. 34-35

 

Dentre as diversas atividades desenvolvidas em uma instituição espírita, o oferecimento de palestras públicas é uma das mais destacadas, não somente pela possibilidade de divulgação do Espiritismo à sociedade, mas também por representar uma prática relevante de caridade. O conhecimento sobre a existência e a natureza do mundo espiritual, assim como suas relações com o mundo corpóreo, amplia o horizonte intelectual e permite compreender a perfeita Justiça Divina que rege nossas vidas. O entendimento dessa realidade, aliado ao autoconhecimento, conforta, fortalece e motiva os indivíduos a buscarem uma situação mais feliz, com a certeza de que todo esforço voltado ao bem será recompensado.

Para apresentar essa riqueza de princípios e valores filosóficos com aplicações práticas, a tribuna espírita deve ser ocupada por trabalhadores comprometidos com a divulgação sincera, transparente e, principalmente, coerente do Espiritismo. A base doutrinária representada pelo ensino dos Espíritos, apresentada por Allan Kardec em suas obras após rigoroso critério de validação das informações obtidas por múltiplas fontes pelo método que ele mesmo denominou Controle Universal, é o caminho seguro que qualquer palestrante deve utilizar.

Um equívoco comum, cometido por aqueles que não percebem a significativa diferença entre as informações validadas metodologicamente por Allan Kardec e as informações obtidas por outras fontes que não passaram por nenhum processo rigoroso de análise crítica, lastreado em fatos objetivos, é supor que novidades descritas em romances ou mensagens mediúnicas sejam atualizações da base doutrinária.[1]

De forma simples, pode-se colocar o problema da seguinte maneira: o Espiritismo se estrutura sobre o ensino dos Espíritos, validado pelo Controle Universal, porém, para muita gente, as opiniões de médiuns e escritores teriam o mesmo peso ou até superariam as obras de Allan Kardec.

Certamente, o Espiritismo deve acompanhar o progresso da ciência, e isso é uma condição prevista por Kardec. Logo, o contínuo aprimoramento do conhecimento é uma característica intrínseca da ortodoxia espírita. A fé raciocinada decorre primordialmente da compreensão dos fatos e da argumentação filosófica robusta para ser exercida.

Com a mesma prudência da ciência, que avança considerando evidências e a aplicação de um método capaz de garantir a segurança dos resultados obtidos, o Espiritismo assim o faz. Até o momento, os princípios doutrinários não necessitaram ser reformulados diante de novas informações, pois nenhuma foi validada objetivamente.

Sendo assim, o palestrante espírita deve expor o conteúdo das obras de Allan Kardec e não confundir o público com informações contraditórias e sem validação, mesmo aquelas presentes nos milhares de títulos de romances e outras obras amplamente comercializadas no mercado editorial voltado aos leitores espiritualistas. A seleção de palestrantes, portanto, é de extrema relevância para a manutenção da integridade doutrinária e para o correto desenvolvimento das atividades dos centros espíritas. Cabe aos dirigentes a responsabilidade de convidar oradores que possuam um conhecimento baseado nos princípios estabelecidos por Allan Kardec, evitando aqueles que disseminam ideias místicas, fantasiosas ou opiniões pessoais polêmicas e conflitantes.

Além da solidez doutrinária, é essencial que os palestrantes se comuniquem de maneira clara e envolvente, com técnicas apropriadas de oratória, expressividade corporal, uso de recursos audiovisuais e capacidade de motivar o público. A promoção de cursos ou seminários de expositores nas casas espíritas gera um significativo aumento da qualidade dos colaboradores para essa tarefa. Adicionalmente, o compartilhamento fraterno de palestrantes entre instituições próximas ou a presença de convidados para determinados temas previamente selecionados favorece a sinergia do movimento espírita. O órgão local da USE (no Estado de São Paulo) ou das entidades federativas de cada região poderá, sem dúvida, contribuir nesse sentido.

Recomenda-se, por fim, a formação de um cadastro positivo de palestrantes locais que demonstrem o comprometimento e a coerência doutrinária esperados, assim como a disponibilidade para atuar nas casas da região.

 

 

 

 



[1] Ver O evangelho segundo o espiritismo, Introdução, item 2 – Autoridade da doutrina espírita.

terça-feira, 9 de julho de 2024

A utilização providencial dos meios materiais


 

A utilização providencial dos meios materiais

 

Marco Milani


Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 201, jul/ago 2024, p. 19-20

 

A legitimidade da propriedade privada, o emprego da fortuna e a desigualdade das riquezas são temas presentes no Capítulo 16 da obra O evangelho segundo o Espiritismo, assim como também ocuparam lugar de destaque entre diferentes e antagônicas correntes econômicas do século XIX.

Ainda que possa guardar certa semelhança em um ou outro aspecto, a abordagem espírita desses temas, entretanto, não se subordinou a nenhuma escola específica de pensamento da época, uma vez que se tratou de concepção inovadora e muito mais ampla do que as limitadas propostas materialistas.

Essa diferenciação teórica é relevante, pois não é raro encontrar alguém tentando distorcer os conceitos espíritas desses mesmos temas, considerados hoje politicamente sensíveis, objetivando reinterpretá-los e moldá-los de acordo com suas preferências políticas pessoais sob a alegação de “atualização”.

Para favorecer a ressignificação dos conceitos alegando-se que Kardec estaria ultrapassado, detratores do Espiritismo deliberadamente ignoram que a autoridade doutrinária decorre do Controle Universal do Ensino dos Espíritos, ou seja, omitem que os princípios e conceitos que estruturam o corpo teórico espírita não são uma concepção de um homem, mas de uma coletividade de seres cujas informações foram metodologicamente validadas e não se restringiram a um contexto social e econômico específico. É mais fácil para esses revisionistas históricos acusar uma suposta obsolescência de Kardec do que assim proceder com o Espírito da Verdade, Santo Agostinho, Sócrates, Platão, São Luís e muitos outros seres desencarnados que participaram da elaboração da doutrina.

No Espiritismo, a propriedade privada e a fortuna são tidas como legítimas quando adquiridas honestamente, cabendo aos seus possuidores o direito de defendê-las e a responsabilidade pelo bom uso. Sob a ótica espírita, a propriedade privada, fruto do trabalho e sem prejuízo a terceiros, é um direito natural “tão sagrado quanto o de trabalhar e de viver”.[1] Essa perspectiva está profundamente enraizada na justiça divina, onde a riqueza material é vista como uma prova voltada a exercitar o caráter e a moralidade dos indivíduos.

Os Espíritos aprofundam a discussão ressaltando que a riqueza verdadeira não reside nos bens materiais, mas nas qualidades morais e intelectuais que o indivíduo desenvolve ao longo de suas existências[2]. A riqueza material é temporária e deve ser usada para o bem do rico como dos mais vulneráveis. Kardec enfatiza que a acumulação egoísta de riqueza contraria os preceitos cristãos de fraternidade. Essa abrangência moral e espiritual proporciona uma compreensão mais profunda e equilibrada da questão da propriedade e da fortuna como oportunidades temporárias de progresso, transcendendo as meras considerações materialistas da posse de bens em si mesma.

A desigualdade das riquezas, sob a perspectiva espírita, é vista como reflexo da diversidade natural de características e aptidões pessoais. Sobre a tentativa de militantes políticos que pretendem, artificialmente, forçar uma igualdade absoluta de riquezas, os Espíritos assim se posicionaram:

 

“São cultores de sistemas, esses tais, ou ambiciosos cheios de inveja. Não compreendem que a igualdade com que sonham seria a curto prazo desfeita pela força das coisas. Combatei o egoísmo, que é a vossa chaga social, e não corrais atrás de quimeras.”[3]

 

Na comunicação mediúnica que Allan Kardec selecionou para lê-la integralmente em sua visita aos espíritas da cidade de Lyon, destaca-se o alerta contra as propostas sociais utópicas que pregavam a igualdade absoluta:

 

“Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil nela deter-me um pouco, porque não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, pois, ao contrário, repelimos energicamente tudo quanto pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antissocial. Antes de tudo, somos essencialmente propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos encarnados. Consequentemente, somos inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos. Embora me dirija a um auditório em parte composto de artífices e proletários, sei que suas consciências, esclarecidas pelas radiações da verdade espírita, já repeliram todo contato com as teorias antissociais dadas com apoio da palavra igualdade.[4]

 

Certamente, é um anseio justo e necessário a busca por melhores condições de vida enquanto encarnados. É fundamental, entretanto, a valorização da vida espiritual para a construção do verdadeiro reino de Deus em nós mesmos, em contraste com as ilusões utópicas promovidas por sistemas políticos que buscam a realização plena do indivíduo nas transitórias sociedades físicas.

Embora o homem procure instintivamente o bem-estar e trabalhe para melhorar suas condições terrenas, esses esforços são temporários e relativos. Os prazeres terrenos são muito bem-vindos, mas o respectivo abuso em detrimento dos valores espirituais constitui uma deturpação dos reais objetivos humanos. Aqueles que se identificam com a vida futura dão menos importância às preocupações materiais e encontram consolo nos seus insucessos, enquanto aqueles focados na vida terrena tendem a se desesperar com as perdas materiais.

Sendo o Espiritismo mais amplo e profundo do que qualquer ideologia política e econômica atual ou do passado, ele contribui diretamente para que cada um aumente o grau de compreensão da vida espiritual, conhecimento essencial para se alcançar a verdadeira e duradoura realização pessoal.

 



[1] Ver a Nota da questão 882, em O livro dos espíritos.

[2] Ver o item Capítulo XVI de O evangelho segundo o espiritismo.

[3] Ver a questão 811-a, em O livro dos espíritos.

[4] Ver a Revista Espírita, out/1861 - Epístola de Erasto aos espíritas lioneses

quinta-feira, 4 de julho de 2024

A prática da caridade e a ostentação pessoal


 

A prática da caridade e a ostentação pessoal

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 34, julho de 2024, p. 10-11

 

A prática da caridade é um dos pilares do Espiritismo objetivando-se o progresso espiritual. Doutrinariamente, a caridade não se limita à doação material, mas abrange a benevolência para com todos, a indulgência para com as imperfeições alheias e o perdão das ofensas[1]. No entanto, um problema que pode surgir na prática de ações assistenciais é a ostentação pessoal, a qual vincula-se diretamente ao orgulho e à vaidade.

No capítulo XIII da obra “O evangelho segundo o espiritismo”, enfatiza-se que a verdadeira caridade deve ser humilde e desinteressada, destacando-se que não se trata apenas do ato em si, mas também da maneira como ela é praticada. No intuito de exibir-se perante os outros ou para obter reconhecimento público, o ato desvirtua-se.

Certamente, a divulgação de ações caridosas pode motivar outras pessoas a praticarem o bem, desde que seja feita com sinceridade, humildade e o propósito de inspirar e conscientizar. Nesse sentido, buscar-se-á criar um ambiente de solidariedade e empatia, onde mais pessoas se sentirão encorajadas a contribuir para o bem-estar coletivo, promovendo o progresso moral da coletividade.

A distinção entre a divulgação desinteressada do auxílio ao próximo e a ostentação vaidosa reside na intenção, mas ao contrário do que alguns poderiam supor, não se trata de um problema restrito ao orgulhoso, quando assim ocorrer. A exposição pública dos beneficiários dos bens e serviços oferecidos pode ser constrangedora, além dessas pessoas serem usadas como coadjuvantes para a própria satisfação egóica do “caridoso”.

O exercício do autoconhecimento, conforme orientado por Santo Agostinho[2], favorece o combate à vaidade e o cultivo da humildade. A reflexão frequente sobre os pensamentos, palavras e ações ao final de cada dia promove um exame introspectivo que permite reconhecer falhas e virtudes, levando a pessoa a um entendimento mais profundo de si mesmo.

A introspecção, em um processo direcionado ao aperfeiçoamento moral, estimula o desenvolvimento de uma consciência altruísta e o cultivo da empatia, fortalecendo a prática da caridade desinteressada.

O autoconhecimento, de maneira mais ampla, incentiva uma compreensão mais profunda de si mesmo, levando a uma maior segurança pessoal e independência emocional. Isso, por sua vez, reduz a necessidade de reconhecimento em redes sociais, pois a pessoa encontra valor e validação internamente e em conexões reais e significativas.

Assim, ao invés da pueril ostentação midiática de pretensos benfeitores ávidos por curtidas em suas postagens públicas, que os adeptos sinceros possam, efetivamente, praticar a caridade de maneira autêntica e desinteressada, contentando-se com o reconhecimento da própria consciência.



[1] Ver a questão 886, em O livro dos espíritos.

[2] Ver a questão 919, em O livro dos espíritos.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Os fins justificam os meios num centro espírita?

 

Os fins justificam os meios num centro espírita?

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 200, abr/jun 2024, p.27

 

          A atitude caridosa, em essência, implica amar o semelhante fazendo-lhe todo o bem que nos seja possível e que desejaríamos nos fosse feito. Sob essa concepção, não é raro ouvir-se de empolgados adeptos a proposta de implantação nos centros espíritas das mais variadas práticas terapêuticas alegando-se que tudo o que é voltado ao benefício do próximo é um ato caridoso e, portanto, alinhado à moral espírita.

          O Espiritismo, entretanto, não é estruturado como o produto das boas intenções e ações de seus adeptos. Trata-se de um conjunto de princípios e valores organizados de forma sistemática sobre a natureza, origem e destino dos Espíritos e suas relações com o mundo corporal.[1] Como corpo doutrinário, integra e harmoniza o ensino dos Espíritos liderados pelo Espírito da Verdade e apresentado nas obras de Allan Kardec com notável consistência interna, caracterizando sua própria percepção e interpretação da realidade.

          Nesse sentido, qualquer instituição que se afirme espírita deve expressar coerentemente os respectivos fundamentos doutrinários, sem abraçar práticas conceitualmente contraditórias que desfigurariam os próprios preceitos.

O equilíbrio entre os objetivos desejados e a coerência doutrinária dos métodos empregados para alcançá-los torna-se condição necessária para a caracterização de práticas espíritas. A moralidade de uma ação não é, exclusivamente, determinada pelo resultado final, mas também pelo caminho adotado para sua realização.

Por exemplo, são reconhecidas pelo Ministério da Saúde como práticas integrativas e complementares e que contam com relatos favoráveis de alguns de seus atendidos, as seguintes: Medicina Tradicional Chinesa/Acupuntura, Medicina Antroposófica, Homeopatia, Plantas Medicinais e Fitoterapia, Termalismo Social/Crenoterapia, Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa, Yoga, Apiterapia, Aromaterapia, Bioenergética, Constelação familiar, Cromoterapia, Geoterapia, Hipnoterapia, Ozonioterapia e Terapia de Florais. Nenhuma dessas terapias, entretanto, apresenta fundamentação doutrinária espírita para ser assim considerada e desenvolvida numa instituição espírita.

          A frase "os fins justificam os meios", portanto, não se aplica aos centros espíritas diante de eventuais incoerências doutrinárias, mesmo sob a argumentação de que tudo valeria em nome do amor.



[1] KARDEC, A. O que é o Espiritismo. Araras: IDE, 1991.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Chicomedissismo: o problema continua


Chicomedissismo: o problema continua

Marco Milani 

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 200, abr/jun 2024, p.15

  

Em 2021, o Departamento de Doutrina da USE promoveu uma interessante roda de conversa virtual denominada “O problema do Chicomedissismo”[1], no qual foram apresentadas situações em que uma ou outra pessoa afirmava ter convivido com Francisco Cândido Xavier e ouvido diretamente dele, em tom de confidência, informações sigilosas, quase proféticas, sobre diferentes assuntos.

Passados três anos desse evento, e mais de duas décadas da desencarnação do popular médium mineiro, o número de confidentes de Chico parece ter aumentado...

Hoje em dia, novos “amigos íntimos” surgem repentinamente nas redes sociais com retumbantes e questionáveis revelações sobre o destino da humanidade e sobre a realidade espiritual, amparando-se na conhecida justificativa do “Chico me disse”.

Sob a perspectiva espírita, qualquer informação, seja ela proveniente de encarnado ou desencarnado, deve ser analisada com ponderação e razão, nunca baseada em argumento de autoridade, ou seja, não importa quem disse, mas qual é a comprovação existente do conteúdo.

No caso de Chico, sua inegável idoneidade moral e capacidade mediúnica o transformou num ícone do movimento espírita não somente brasileiro, mas mundial. Nesse sentido, muitos dos milhões de adeptos, pelo natural respeito e admiração a ele, tendem a aceitar com muito carinho tudo o que lhe esteja relacionado, mesmo que isso não dispense a necessidade de análise crítica.

O desafio metodológico enfrentado pelos adeptos, entretanto, recai na separação entre ideias e pessoas, bem como entre fatos e fantasias.

Ao utilizar o argumento chicomedissista, muitos têm atraído os holofotes midiáticos e locupletam-se com a visibilidade pessoal e a oportunidade de disseminar causos e contos mirabolantes que colidem com o bom senso e a lógica doutrinária.

Tais caronistas da popularidade alheia encontram no permissivo ambiente tecnológico atual o espaço para dar vazão às suas imaginativas estórias, iludindo e confundindo os mais incautos e contribuindo para a disseminação da fé cega.

Certamente, por não estar fisicamente entre nós, Chico não pode se defender das bizarrices atribuídas a ele por aqueles que declaram ter sido “seus amigos muito próximos” que, se realmente o fossem, não tentariam usurpar sua imagem social desse jeito.

Seja como for, compete ao espírita estudar as obras de Allan Kardec para ter referências comparativas seguras sobre a natureza, origem e destino dos Espíritos e suas relações com o mundo corporal[2] e, dessa maneira, conseguir analisar criticamente qualquer informação sob o ângulo doutrinário.



[1] Ver https://youtu.be/kSCHo7fqUy8?si=NJvHcCjqHfv66pNo

 [2] KARDEC, A. O que é o espiritismo. Araras: IDE, 1991