terça-feira, 5 de agosto de 2025

Indignação seletiva: o viés político-ideológico de grupos pseudoespíritas

Indignação seletiva: o viés político-ideológico de grupos pseudoespíritas

 

Marco Milani

 

Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum observar manifestações de determinados grupos que se intitulam espíritas, mas que, na prática, desviam-se dos fundamentos originais do Espiritismo. Entre os diversos sinais dessa distorção, um dos mais evidentes é a adoção de posicionamentos políticos e ideológicos enviesados, muitas vezes sob o disfarce de uma pretensa busca pela paz, pela justiça social ou pelos direitos humanos. Um exemplo notório dessa postura é a recente publicação de manifestos por parte desses grupos em apoio à Palestina, com duras críticas ao Estado de Israel, ignorando, deliberadamente, o contexto mais amplo dos conflitos armados que assolam o planeta.

Esses manifestos, travestidos de clamor humanitário, denunciam com veemência os ataques de Israel e proclamam solidariedade ao povo palestino, evocando princípios de compaixão e fraternidade que, em tese, estariam alinhados com o ideal espírita. No entanto, o que se revela por trás dessa retórica é uma clara indignação seletiva, movida não por princípios universais, mas por afinidades político-ideológicas marcadamente alinhadas à esquerda identitária e à retórica anticapitalista e contrária aos valores de liberdade que vem permeando parte da militância pseudoespírita.

Essa seletividade se escancara quando se observa o silêncio absoluto desses mesmos grupos diante de outros conflitos ainda mais sangrentos e prolongados. A guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, já ultrapassou centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados, com ataques sistemáticos à infraestrutura civil ucraniana, crimes de guerra documentados e uma ameaça constante à estabilidade europeia. No entanto, pouco ou nada se ouviu dos manifestantes “pela paz” quando a invasão russa foi deflagrada em 2022 ou mesmo quando seus efeitos devastadores se intensificaram nos anos seguintes.

Mais ainda, o planeta contabiliza atualmente mais de trinta conflitos armados ativos, em países como Etiópia, Sudão, Mianmar, Iêmen, Congo e Síria, muitos deles com níveis de violência extrema, limpeza étnica, perseguição religiosa e colapsos humanitários. São milhões de mortos, feridos e refugiados ignorados por esses mesmos que, seletivamente, voltam seus olhos apenas para causas que se ajustam à sua narrativa ideológica, especialmente quando envolvem a crítica ao Ocidente, a Israel, ou a valores considerados "imperialistas". O sofrimento humano parece só comover quando encaixa-se em determinado contexto político, o que revela não compaixão genuína, mas instrumentalização da dor alheia.

Do ponto de vista espírita, essa postura é duplamente condenável. Primeiro, porque contraria a ética da imparcialidade, do amor ao próximo sem distinções e da fraternidade universal defendida por Kardec. Reconhece-se o verdadeiro espírita pelo entendimento e prática dos princípios doutrinários, objetivando a própria transformação moral com esforços domar as suas más inclinações. Entre essas inclinações, encontra-se o sectarismo ideológico, que embaça a razão, incita o julgamento parcial e mina a serenidade do discernimento.

Segundo, porque ao se envolverem com bandeiras político-partidárias, esses grupos comprometem a neutralidade doutrinária que Kardec tanto prezava. O Espiritismo não é um instrumento de militância, mas um sistema filosófico, científico e moral que busca a elevação do ser humano acima das paixões políticas, e não sua sujeição a elas. Misturar Espiritismo com ideologias políticas, sejam elas de direita ou de esquerda, é trair sua essência, seu método e sua finalidade.

A indignação seletiva não é apenas um erro ético e filosófico: é um sintoma de uma grave enfermidade moral que mancha o movimento espírita. Ao optar pela militância política, esses grupos propõem que o sectarismo se sobreponha à razão e à universalidade dos princípios espíritas, buscando converter o Espiritismo em palanque ideológico.

A paz não se constrói com partidarismos, nem a justiça floresce sob o manto da hipocrisia seletiva. Que cada sofrimento humano nos comova igualmente, que cada vítima de guerra seja por nós acolhida em prece e solidariedade, independentemente da geopolítica que a cercou. Só assim estaremos sendo coerentes ao Espiritismo de Kardec: racional, livre, universalista e essencialmente cristão.

 

 

4 comentários:

  1. Em suma, a crítica é terem escolhido um conflito particular para protestar e não todos os outros? Se for assim, o fato de vc ter se manifestado sobre essa escolha específica, sem considerar os méritos, também não trai um viés, só que oposto?

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    1. Olá Rodrigo. Não, a crítica é a escolha de um lado específico contra outro em nome do Espiritismo, por isso o título "indignação seletiva". A busca da paz deve envolver a todos os "lados" e, ainda, há outros conflitos no mundo com até mais mortes e agressões humanitárias que convenientemente são ignorados.

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  2. Perfeito! Agradeço a publicação.

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  3. Precisão cirúrgica desse texto, muito bem estruturado e claro. Carecemos de amor e respeito entre todos.

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