Marco
Milani
Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum observar manifestações
de determinados grupos que se intitulam espíritas, mas que, na prática,
desviam-se dos fundamentos originais do Espiritismo. Entre os diversos sinais
dessa distorção, um dos mais evidentes é a adoção de posicionamentos políticos
e ideológicos enviesados, muitas vezes sob o disfarce de uma pretensa busca
pela paz, pela justiça social ou pelos direitos humanos. Um exemplo notório
dessa postura é a recente publicação de manifestos por parte desses grupos em
apoio à Palestina, com duras críticas ao Estado de Israel, ignorando,
deliberadamente, o contexto mais amplo dos conflitos armados que assolam o
planeta.
Esses manifestos, travestidos de clamor humanitário, denunciam com
veemência os ataques de Israel e proclamam solidariedade ao povo palestino,
evocando princípios de compaixão e fraternidade que, em tese, estariam
alinhados com o ideal espírita. No entanto, o que se revela por trás dessa
retórica é uma clara indignação seletiva, movida não por princípios universais,
mas por afinidades político-ideológicas marcadamente alinhadas à esquerda
identitária e à retórica anticapitalista e contrária aos valores de liberdade
que vem permeando parte da militância pseudoespírita.
Essa seletividade se escancara quando se observa o silêncio absoluto
desses mesmos grupos diante de outros conflitos ainda mais sangrentos e
prolongados. A guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, já ultrapassou
centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados, com ataques
sistemáticos à infraestrutura civil ucraniana, crimes de guerra documentados e
uma ameaça constante à estabilidade europeia. No entanto, pouco ou nada se
ouviu dos manifestantes “pela paz” quando a invasão russa foi deflagrada em
2022 ou mesmo quando seus efeitos devastadores se intensificaram nos anos
seguintes.
Mais ainda, o planeta contabiliza atualmente mais de trinta conflitos
armados ativos, em países como Etiópia, Sudão, Mianmar, Iêmen, Congo e Síria,
muitos deles com níveis de violência extrema, limpeza étnica, perseguição
religiosa e colapsos humanitários. São milhões de mortos, feridos e refugiados
ignorados por esses mesmos que, seletivamente, voltam seus olhos apenas para
causas que se ajustam à sua narrativa ideológica, especialmente quando envolvem
a crítica ao Ocidente, a Israel, ou a valores considerados
"imperialistas". O sofrimento humano parece só comover quando
encaixa-se em determinado contexto político, o que revela não compaixão
genuína, mas instrumentalização da dor alheia.
Do ponto de vista espírita, essa postura é duplamente condenável.
Primeiro, porque contraria a ética da imparcialidade, do amor ao próximo sem
distinções e da fraternidade universal defendida por Kardec. Reconhece-se o
verdadeiro espírita pelo entendimento e prática dos princípios doutrinários,
objetivando a própria transformação moral com esforços domar as suas más
inclinações. Entre essas inclinações, encontra-se o sectarismo ideológico, que
embaça a razão, incita o julgamento parcial e mina a serenidade do
discernimento.
Segundo, porque ao se envolverem com bandeiras político-partidárias,
esses grupos comprometem a neutralidade doutrinária que Kardec tanto prezava. O
Espiritismo não é um instrumento de militância, mas um sistema filosófico,
científico e moral que busca a elevação do ser humano acima das paixões
políticas, e não sua sujeição a elas. Misturar Espiritismo com ideologias
políticas, sejam elas de direita ou de esquerda, é trair sua essência, seu
método e sua finalidade.
A indignação seletiva não é apenas um erro ético e filosófico: é um
sintoma de uma grave enfermidade moral que mancha o movimento espírita. Ao optar
pela militância política, esses grupos propõem que o sectarismo se sobreponha à
razão e à universalidade dos princípios espíritas, buscando converter o
Espiritismo em palanque ideológico.
A paz não se constrói com partidarismos, nem a justiça floresce sob o
manto da hipocrisia seletiva. Que cada sofrimento humano nos comova igualmente,
que cada vítima de guerra seja por nós acolhida em prece e solidariedade,
independentemente da geopolítica que a cercou. Só assim estaremos sendo coerentes
ao Espiritismo de Kardec: racional, livre, universalista e essencialmente
cristão.
Em suma, a crítica é terem escolhido um conflito particular para protestar e não todos os outros? Se for assim, o fato de vc ter se manifestado sobre essa escolha específica, sem considerar os méritos, também não trai um viés, só que oposto?
ResponderExcluirOlá Rodrigo. Não, a crítica é a escolha de um lado específico contra outro em nome do Espiritismo, por isso o título "indignação seletiva". A busca da paz deve envolver a todos os "lados" e, ainda, há outros conflitos no mundo com até mais mortes e agressões humanitárias que convenientemente são ignorados.
ExcluirPerfeito! Agradeço a publicação.
ResponderExcluirPrecisão cirúrgica desse texto, muito bem estruturado e claro. Carecemos de amor e respeito entre todos.
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