segunda-feira, 7 de julho de 2025

Livro espírita: discernir sem sincretizar

Livro espírita: discernir sem sincretizar

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.207, jul/ago 2025, p. 27-28

 

É comum que muitos adeptos cheguem ao Espiritismo com um repertório de referências formado por livros espiritualistas de diversos matizes. Seja por meio de romances mediúnicos, textos de autoajuda, doutrinas esotéricas ou filosofias orientais, a porta de entrada para o interesse pelos temas espirituais não é, necessariamente, caracterizada pelo ensino dos Espíritos devidamente validado e apresentado nas obras de Allan Kardec. Essa trajetória, por mais legítima que seja como experiência pessoal, traz consigo um desafio inevitável: distinguir o conteúdo realmente espírita do que são interpretações, crenças ou práticas alheias aos princípios doutrinários.

O próprio Allan Kardec, ao elaborar o Catálogo Racional para se Fundar uma Biblioteca Espírita, incluiu obras de outras correntes filosóficas, científicas e até de contraditores. Sua intenção era clara: estimular o estudo comparado, a análise crítica e a formação de um espírito investigativo. Kardec não temia o contato com outras ideias, mas alertava para a necessidade de não confundir os fundamentos doutrinários espíritas com conceitos externos, evitando o sincretismo que compromete a coerência e a identidade do Espiritismo.

Nesse contexto, iniciativas como a campanha "Comece pelo Começo", promovida pela União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, ganham um significado ainda mais relevante. Destaca-se que essa campanha não propõe uma simples orientação sequencial de leitura, como se as obras de Kardec fossem uma etapa inicial a ser superada, complementada ou substituídas por outras obras mais “modernas e reveladoras”. O que ela propõe é muito mais profundo: trata-se da formação de uma estruturação sólida e segura dos princípios fundamentais da Doutrina Espírita, que servirão de referência permanente e indispensável para a análise crítica de qualquer outro conteúdo ou informação, seja de fonte mediúnica ou não, que se pretenda associar ao Espiritismo.

“Comece pelo Começo” não é apenas um convite à leitura, mas um chamado à formação de um olhar doutrinário maduro, analítico e bem fundamentado, capaz de filtrar com segurança as inúmeras informações supostamente espirituais disponíveis atualmente, muitas das quais, embora bem-intencionadas, podem colidir frontalmente com os ensinos dos Espíritos superiores sistematizados por Kardec.

O desafio, dessa maneira, não está em ler ou conhecer outras referências, mas em não absorver de forma acrítica conteúdos que colidam com os princípios espíritas fundamentais. Por exemplo, há no mercado editorial romances que descrevem o mundo espiritual de maneira incoerente com o ensino dos Espíritos validado pelo critério da universalidade. Alguns desses reproduzem na esfera extrafísica, indevidamente, a vida material e as relações sociais dos encarnados.[1]

É nesse cenário que os dirigentes e os estudantes espíritas precisam cultivar uma postura de fé raciocinada, um dos pilares do Espiritismo. Isso implica ler com discernimento, avaliar com base na lógica e na razão, e sempre confrontar novas informações com os critérios doutrinários. O Espiritismo, por sua natureza científica e filosófica, convida ao questionamento, mas também exige responsabilidade na formação de convicções.

Misturar conceitos sem o filtro adequado pode levar à deturpação da doutrina, à formação de um movimento espírita sincrético e desfigurado, ou à adoção de crenças místicas incompatíveis com os fundamentos teóricos. Por outro lado, um estudo aberto, mas criterioso, permite ao adepto compreender melhor a diversidade de pensamentos espirituais sem perder a base sólida que a codificação oferece.

O caminho não é o isolamento intelectual, mas a análise lúcida e rigorosa. Ler sem misturar, estudar sem sincretizar, conhecer sem abandonar os princípios.

Alguns podem alegar que sem a incorporação de novidades o Espiritismo estará engessado ou, ainda, estimulará um “fundamentalismo religioso”. Ao contrário, para se entender o natural dinamismo doutrinário, previsto pela ortodoxia espírita com o progresso das ideias, deve-se aplicar um método racional calcado em fatos e na fundamentação objetiva para o respectivo avanço e não na aceitação cega baseada em argumentos de autoridade, sofismas e falácias presentes em opiniões de encarnados ou desencarnados.  

“Começar pelo começo” implica conhecer e aplicar a prudência e solidez metodológica que Kardec valorizou partindo dos princípios doutrinários validados para se separar o joio do trigo e contribuir para um movimento espírita mais coerente e pujante.



[1] Para uma descrição doutrinária sobre a realidade espiritual, pode-se consultar, dentre outros textos, “Quadro da vida espírita” - Revista Espírita de abril/1869, “A fome entre os Espíritos” - Revista Espírita de junho de 1868 ou as dezenas de relatos no livro O céu e o inferno -2ª parte, por Allan Kardec.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário