Livro espírita: discernir sem sincretizar
Marco
Milani
Texto
publicado na Revista Dirigente Espírita, n.207, jul/ago 2025, p. 27-28
É comum que muitos adeptos cheguem ao Espiritismo com um repertório de
referências formado por livros espiritualistas de diversos matizes. Seja por
meio de romances mediúnicos, textos de autoajuda, doutrinas esotéricas ou
filosofias orientais, a porta de entrada para o interesse pelos temas
espirituais não é, necessariamente, caracterizada pelo ensino dos Espíritos
devidamente validado e apresentado nas obras de Allan Kardec. Essa
trajetória, por mais legítima que seja como experiência pessoal, traz consigo
um desafio inevitável: distinguir o conteúdo realmente espírita do que são
interpretações, crenças ou práticas alheias aos princípios doutrinários.
O próprio Allan Kardec, ao elaborar o Catálogo Racional para se Fundar
uma Biblioteca Espírita, incluiu obras de outras correntes filosóficas,
científicas e até de contraditores. Sua intenção era clara: estimular o estudo
comparado, a análise crítica e a formação de um espírito investigativo. Kardec
não temia o contato com outras ideias, mas alertava para a necessidade de não
confundir os fundamentos doutrinários espíritas com conceitos externos,
evitando o sincretismo que compromete a coerência e a identidade do
Espiritismo.
Nesse contexto, iniciativas como a campanha "Comece pelo
Começo", promovida pela União das Sociedades Espíritas do Estado de São
Paulo, ganham um significado ainda mais relevante. Destaca-se que essa campanha
não propõe uma simples orientação sequencial de leitura, como se as obras de
Kardec fossem uma etapa inicial a ser superada, complementada ou substituídas por
outras obras mais “modernas e reveladoras”. O que ela propõe é muito mais
profundo: trata-se da formação de uma estruturação sólida e segura dos
princípios fundamentais da Doutrina Espírita, que servirão de referência
permanente e indispensável para a análise crítica de qualquer outro conteúdo ou
informação, seja de fonte mediúnica ou não, que se pretenda associar ao
Espiritismo.
“Comece pelo Começo” não é apenas um convite à leitura, mas um chamado
à formação de um olhar doutrinário maduro, analítico e bem fundamentado, capaz
de filtrar com segurança as inúmeras informações supostamente espirituais
disponíveis atualmente, muitas das quais, embora bem-intencionadas, podem
colidir frontalmente com os ensinos dos Espíritos superiores sistematizados por
Kardec.
O desafio, dessa maneira, não está em ler ou conhecer outras referências,
mas em não absorver de forma acrítica conteúdos que colidam com os princípios
espíritas fundamentais. Por exemplo, há no mercado editorial romances que
descrevem o mundo espiritual de maneira incoerente com o ensino dos Espíritos
validado pelo critério da universalidade. Alguns desses reproduzem na esfera
extrafísica, indevidamente, a vida material e as relações sociais dos
encarnados.[1]
É nesse cenário que os dirigentes e os estudantes espíritas precisam
cultivar uma postura de fé raciocinada, um dos pilares do Espiritismo. Isso
implica ler com discernimento, avaliar com base na lógica e na razão, e sempre
confrontar novas informações com os critérios doutrinários. O Espiritismo, por
sua natureza científica e filosófica, convida ao questionamento, mas também
exige responsabilidade na formação de convicções.
Misturar conceitos sem o filtro adequado pode levar à deturpação da
doutrina, à formação de um movimento espírita sincrético e desfigurado, ou à
adoção de crenças místicas incompatíveis com os fundamentos teóricos. Por outro
lado, um estudo aberto, mas criterioso, permite ao adepto compreender melhor a
diversidade de pensamentos espirituais sem perder a base sólida que a
codificação oferece.
O caminho não é o isolamento intelectual, mas a análise lúcida e
rigorosa. Ler sem misturar, estudar sem sincretizar, conhecer sem abandonar os
princípios.
Alguns podem alegar que sem a incorporação de novidades o Espiritismo
estará engessado ou, ainda, estimulará um “fundamentalismo religioso”. Ao
contrário, para se entender o natural dinamismo doutrinário, previsto pela
ortodoxia espírita com o progresso das ideias, deve-se aplicar um método
racional calcado em fatos e na fundamentação objetiva para o respectivo avanço
e não na aceitação cega baseada em argumentos de autoridade, sofismas e
falácias presentes em opiniões de encarnados ou desencarnados.
“Começar pelo começo” implica conhecer e aplicar a prudência e solidez
metodológica que Kardec valorizou partindo dos princípios doutrinários
validados para se separar o joio do trigo e contribuir para um movimento espírita
mais coerente e pujante.
[1]
Para uma descrição doutrinária sobre a realidade espiritual, pode-se consultar,
dentre outros textos, “Quadro da vida espírita” - Revista Espírita de
abril/1869, “A fome entre os Espíritos” - Revista Espírita de junho de 1868 ou
as dezenas de relatos no livro O céu e o inferno -2ª parte, por Allan Kardec.
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