domingo, 3 de março de 2024

Ortodoxia e heterodoxia espíritas

 

Ortodoxia e heterodoxia espíritas

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 30, mar/abr 2024, p. 8-9

 

No Espiritismo, assim como em diferentes áreas do conhecimento, encontram-se presentes os conceitos de ortodoxia e heterodoxia, ainda que possam contar com interpretações e aplicações específicas, conforme o grupo em análise.

Sinteticamente, a ortodoxia espírita refere-se à plena concordância e adesão ao ensino dos Espíritos apresentado nas obras fundamentais de Allan Kardec, bem como à argumentação e às práticas coerentes com os respectivos princípios e valores doutrinários.

A heterodoxia espírita, por sua vez, liga-se às interpretações, práticas e narrativas que se afastam significativamente dos ensinos expressos em Kardec. Ela é caracterizada pela adoção de pressupostos divergentes dos princípios originais, seja pela incorporação de conceitos e ideias estranhas ao corpo doutrinário ou por variações interpretativas dos mesmos princípios.

Enquanto a ortodoxia está fundamentada em um conjunto teórico estruturado e consistente, a heterodoxia propõe, comumente, uma revisão e alteração dos princípios basilares mediante a adoção de novos elementos estruturantes.

Um equívoco recorrente dos menos afeitos ao pensamento científico e à própria Doutrina Espírita, é a suposição de que a ortodoxia prende-se à imobilidade e à cristalização das ideias, como se fosse um sistema fechado e impermeável a descobertas, impedindo o avanço no conhecimento. Tal suposição decorre do desconhecimento de que o Espiritismo foi concebido para progredir junto à ciência, caminhando lado a lado, de maneira que se for provado que algo está incorreto, abandona-se o que se provou falso para se adotar o verdadeiro.

Assim, o espírita ortodoxo está, naturalmente, aberto à análise e aceitação do novo, desde que esse prove-se correto em bases sólidas e objetivas, e não sobre opiniões e propostas hipotéticas que carecem da devida validação. Igualmente como agiu Kardec, pode-se afirmar que a prudência é uma condição necessária para a fé raciocinada.

Aquele que não analisa novos fatos e nega o caráter progressivo do Espiritismo não compreendeu a própria dinâmica ortodoxa espírita.

Por outro lado, a heterodoxia, ao partir de premissas e conceitos hipotéticos ou doutrinariamente divergentes, concebe um novo corpo teórico sobre bases que ainda carecem de legitimação e validação. Imprudentemente, abraçam-se ideias antagônicas ou destoantes ao ensino dos Espíritos que passaram pelo critério da universalidade adotado por Kardec, exigindo reformulação sem provas de princípios e práticas.

O ponto de tensão entre os diferentes posicionamentos de adeptos ortodoxos e heterodoxos é a ausência de um método capaz de legitimar e validar as informações doutrinárias diante de novos fatos e ideias no complexo ambiente tecnológico de hoje. Sob a perspectiva ortodoxa, somente por meio de um método objetivo é possível validar hipóteses e novas informações. Sob a perspectiva heterodoxa, o método é secundário, pois a validação poderia ocorrer subjetivamente, inclusive servindo-se de argumentos falaciosos de autoridade que transformariam opiniões de médiuns e desencarnados famosos em revelações indiscutíveis.

A prudente recomendação de Erasto denota o cuidado que todo adepto coerente com a fé raciocinada deveria expressar.

 

“Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crivo da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem. Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea. Efetivamente, sobre essa teoria poderíeis edificar um sistema completo, que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento edificado sobre areia movediça, ao passo que, se rejeitardes hoje algumas verdades, porque não vos são demonstradas clara e logicamente, mais tarde um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.”[1]



[1] Ver O livro dos médiuns, Capítulo XX, item 230.

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