Utilidade da lembrança do passado na erraticidade
Marco Milani
Texto publicado na Revista Dirigente
Espírita, ed. 204, jan/fev 2025, p. 47-48
Enquanto encarnado, o Espírito não lembra, com
lucidez, das existências anteriores e isso justifica-se. Segundo as questões
392 a 399 de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, o véu do esquecimento é
uma condição relevante para que o ser encarnado possa continuar sua jornada de
aprendizado e progresso moral no mundo físico. A lembrança do que fez e deixou
de fazer, das pessoas com quem se relacionou de maneira harmônica ou
antagônica, o contexto experimentado e as situações vivenciadas de maneira
específica trariam embaraços, exaltariam o orgulho e a vaidade ou, na maior
parte das vezes, gerariam remorso e constrangimento. Analisando as próprias tendências
morais, pode-se ter uma noção das conquistas já realizadas e daquelas que ainda
necessitam ser aperfeiçoadas.
Esse esquecimento, longe de ser um castigo, é uma situação
amorosa que, de alguma forma, protege o ser humano do peso consciente de suas
próprias falhas.
Sob a perspectiva científica, com ênfase nas áreas
de psicologia e psiquiatria, há valorosas iniciativas que exploram a lembrança
de vidas passadas com objetivos terapêuticos; nunca por curiosidade. Tais
abordagens não contam, ainda, com plena aceitação da comunidade acadêmica,
porém oferecem abrangente campo para a investigação da sobrevivência da alma e
do processo reencarnatório, além de apontar que a cura de fobias e outros
transtornos pode decorrer da identificação de fatos originados em existências
anteriores [1].
Cabe ao estudioso espírita a adoção de método criterioso, baseado nos
princípios doutrinários, a análise dessas abordagens.
No intervalo entre as encarnações, na chamada
erraticidade[2], é
facultado ao Espírito a recordação conforme o grau evolutivo em que se encontra;
contudo, isso não implica que ele o fará. Certamente, enquanto aguarda, planeja
ou prepara-se para nova encarnação, pode ser conveniente ao Espírito analisar
sua trajetória pregressa, mas a lembrança não é um fim em si mesma, mas um
recurso acessível apenas quando é útil e necessário ao seu desenvolvimento.
A memória espiritual atua de maneira seletiva,
priorizando os elementos que contribuem para o progresso. Recordar fatos
triviais ou irrelevantes de encarnações anteriores não tem qualquer utilidade
prática, uma vez que a memória do ser não é um mero repositório de informações,
mas um mecanismo que atende às exigências de seu progresso.
Os Espíritos que já alcançaram um certo grau evolutivo
têm consciência de sua trajetória e do aprendizado acumulado, mas não se detêm
nos detalhes de cada vida.
Uma metáfora que pode ser usada para ilustrar essa
ideia é a comparação entre a evolução do Espírito e o crescimento de um ser encarnado.
Um adulto, ao refletir sobre sua infância, tende a lembrar-se apenas dos fatos
que o marcaram e têm relevância em seu presente. Não há, em geral, interesse em
rememorar episódios pueris ou banais que não ofereçam aprendizado ou satisfação
objetiva. Do mesmo modo, o Espírito errante, especialmente quando já atingiu
certa maturidade espiritual, vê suas existências passadas como uma série de
etapas que, embora importantes para sua formação, não precisam ser revisadas em
detalhes.
Essa perspectiva é ainda mais evidente quando se
considera que, no processo de evolução, o Espírito não retroage. Hoje, todos
são melhores do que ontem. No passado, ele pode ter agido de forma instintiva,
guiado por impulsos egoístas ou até mesmo violentos, comparáveis às ações de
uma criança imatura. Contudo, à medida que progride, seu foco desloca-se do
passado para o presente e o futuro. As recordações de vidas anteriores,
portanto, são acionadas apenas quando servem como ferramentas para corrigir
tendências negativas ou consolidar virtudes.
A verdadeira recompensa do progresso espiritual
está na compreensão ampliada sobre a realidade, no autoconhecimento e na paz
interior desenvolvida, e não na satisfação de curiosidades sobre encarnações pretéritas
marcadas pela falta de discernimento e por erros comuns nesses estágios.
Aprimorado moral e intelectualmente, o Espírito errante
olha para o passado sem apego e com uma serena aceitação de que cada etapa foi
necessária para chegar aonde está, mirando sua plena realização na condição de
Espírito Puro, quando atingirá o grau máximo da perfeição de que é suscetível.
[1] Destacam-se
os trabalhos de Morris Netherton, Brian Weiss, Michael Newton e Roger Woolger.
[2]
Ver questões 223 a 233 de O Livro dos Espíritos.
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