domingo, 12 de janeiro de 2025

Utilidade da lembrança do passado na erraticidade

 

Utilidade da lembrança do passado na erraticidade

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 204, jan/fev 2025, p. 47-48

 

Enquanto encarnado, o Espírito não lembra, com lucidez, das existências anteriores e isso justifica-se. Segundo as questões 392 a 399 de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, o véu do esquecimento é uma condição relevante para que o ser encarnado possa continuar sua jornada de aprendizado e progresso moral no mundo físico. A lembrança do que fez e deixou de fazer, das pessoas com quem se relacionou de maneira harmônica ou antagônica, o contexto experimentado e as situações vivenciadas de maneira específica trariam embaraços, exaltariam o orgulho e a vaidade ou, na maior parte das vezes, gerariam remorso e constrangimento. Analisando as próprias tendências morais, pode-se ter uma noção das conquistas já realizadas e daquelas que ainda necessitam ser aperfeiçoadas.

Esse esquecimento, longe de ser um castigo, é uma situação amorosa que, de alguma forma, protege o ser humano do peso consciente de suas próprias falhas.

Sob a perspectiva científica, com ênfase nas áreas de psicologia e psiquiatria, há valorosas iniciativas que exploram a lembrança de vidas passadas com objetivos terapêuticos; nunca por curiosidade. Tais abordagens não contam, ainda, com plena aceitação da comunidade acadêmica, porém oferecem abrangente campo para a investigação da sobrevivência da alma e do processo reencarnatório, além de apontar que a cura de fobias e outros transtornos pode decorrer da identificação de fatos originados em existências anteriores [1]. Cabe ao estudioso espírita a adoção de método criterioso, baseado nos princípios doutrinários, a análise dessas abordagens.

No intervalo entre as encarnações, na chamada erraticidade[2], é facultado ao Espírito a recordação conforme o grau evolutivo em que se encontra; contudo, isso não implica que ele o fará. Certamente, enquanto aguarda, planeja ou prepara-se para nova encarnação, pode ser conveniente ao Espírito analisar sua trajetória pregressa, mas a lembrança não é um fim em si mesma, mas um recurso acessível apenas quando é útil e necessário ao seu desenvolvimento.

A memória espiritual atua de maneira seletiva, priorizando os elementos que contribuem para o progresso. Recordar fatos triviais ou irrelevantes de encarnações anteriores não tem qualquer utilidade prática, uma vez que a memória do ser não é um mero repositório de informações, mas um mecanismo que atende às exigências de seu progresso.

Os Espíritos que já alcançaram um certo grau evolutivo têm consciência de sua trajetória e do aprendizado acumulado, mas não se detêm nos detalhes de cada vida.

Uma metáfora que pode ser usada para ilustrar essa ideia é a comparação entre a evolução do Espírito e o crescimento de um ser encarnado. Um adulto, ao refletir sobre sua infância, tende a lembrar-se apenas dos fatos que o marcaram e têm relevância em seu presente. Não há, em geral, interesse em rememorar episódios pueris ou banais que não ofereçam aprendizado ou satisfação objetiva. Do mesmo modo, o Espírito errante, especialmente quando já atingiu certa maturidade espiritual, vê suas existências passadas como uma série de etapas que, embora importantes para sua formação, não precisam ser revisadas em detalhes.

Essa perspectiva é ainda mais evidente quando se considera que, no processo de evolução, o Espírito não retroage. Hoje, todos são melhores do que ontem. No passado, ele pode ter agido de forma instintiva, guiado por impulsos egoístas ou até mesmo violentos, comparáveis às ações de uma criança imatura. Contudo, à medida que progride, seu foco desloca-se do passado para o presente e o futuro. As recordações de vidas anteriores, portanto, são acionadas apenas quando servem como ferramentas para corrigir tendências negativas ou consolidar virtudes.

A verdadeira recompensa do progresso espiritual está na compreensão ampliada sobre a realidade, no autoconhecimento e na paz interior desenvolvida, e não na satisfação de curiosidades sobre encarnações pretéritas marcadas pela falta de discernimento e por erros comuns nesses estágios.

Aprimorado moral e intelectualmente, o Espírito errante olha para o passado sem apego e com uma serena aceitação de que cada etapa foi necessária para chegar aonde está, mirando sua plena realização na condição de Espírito Puro, quando atingirá o grau máximo da perfeição de que é suscetível.



[1] Destacam-se os trabalhos de Morris Netherton, Brian Weiss, Michael Newton e Roger Woolger.

[2] Ver questões 223 a 233 de O Livro dos Espíritos.


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