quarta-feira, 2 de julho de 2025

A realidade espiritual e a ilusão das necessidades materiais

 

A realidade espiritual e a ilusão das necessidades materiais

 

Marco Milani

 

Texto publicado na revista Candeia Espírita, nº 46, jul/2025, p. 7-8

 

O relato mediúnico do Padre Bizet, publicado por Allan Kardec na Revista Espírita de junho de 1868, apresenta uma descrição impactante de um fenômeno que afeta muitos Espíritos após a morte física: a persistência ilusória de sensações materiais.

Bizet narra as cenas de sofrimento de desencarnados que, tomados pela perturbação, acreditavam estar submetidos a uma fome dilacerante, reagindo com desespero, violência e alucinação. Observando esses Espíritos, ele sinaliza com clareza que não há estômago para digerir, nem órgãos para assimilar, pois, no plano espiritual, a fisiologia orgânica não encontra correspondência.

Essa constatação remete a um princípio doutrinário: os Espíritos desencarnados não possuem órgãos físicos ou assemelhados. A manutenção de percepções típicas da vida corporal é fruto de condicionamentos psíquicos e apegos não superados, jamais da existência de uma estrutura orgânica espiritual. Em abril de 1859, Kardec já havia sistematizado esse ensinamento no artigo "Quadro da Vida Espírita", publicado também na Revista Espírita, onde resume as principais características da existência espiritual, entre elas a afirmação categórica: "não têm órgãos materiais". Isso implica que todas as percepções, deslocamentos e formas de comunicação dos Espíritos ocorrem por meios fluídicos, distintos das funções biológicas da matéria densa.

Compreender essa diferença é essencial para a construção de uma visão racional e desmaterializada da vida pós-morte, como propõe o Espiritismo. As sensações de fome, sede ou dor relatadas por Espíritos em sofrimento são, segundo Kardec, reflexos psíquicos gerados pela condição moral e emocional em que se encontram, resultantes de hábitos materiais, culpa, apego ou ignorância. À medida que o Espírito se esclarece e se liberta desses vínculos, tais ilusões desaparecem.

Esse entendimento contrasta com certas descrições encontradas em romances mediúnicos contemporâneos, que muitas vezes apresentam o mundo espiritual como uma extensão do mundo físico, com Espíritos sujeitos a necessidades orgânicas como alimentação, sono, digestão e até mesmo reprodução biológica. Um exemplo particularmente grave dessa distorção doutrinária é a afirmação, feita em determinada obra ficcional mediúnica, de que existiriam casos de gravidez no mundo espiritual. Tal ideia, além de absolutamente incompatível com a teoria espírita que torna biologicamente e espiritualmente impossível qualquer processo gestacional entre desencarnados.

Embora tais narrativas possam parecer razoáveis sob a perspectiva de encarnados, quando analisadas criticamente ferem os fundamentos estabelecidos pelo ensino convergente dos Espíritos e podem gerar confusão entre aqueles mais afeitos à literatura ficcional espiritualista.

A tentativa de justificar contradições sem qualquer lastro metodológico objetivo com a frase "Kardec não disse tudo" representa uma distorção do preceito da fé raciocinada. Como bem alertou o Espírito Erasto[1], uma única teoria falsa pode servir de base para a edificação de um sistema inteiro de erros, que ruirá diante da menor confrontação com a verdade. O Espiritismo admite progresso e novos conhecimentos, mas sempre mediante critérios de validação rigorosa, fundamentados em fatos, lógica e no método objetivo. Revelações isoladas, por mais eloquentes que sejam os médiuns ou Espíritos que as transmitam, não podem se sobrepor àquilo que foi universalmente ensinado, confirmado e consolidado.

O Espiritismo, como ciência de observação e filosofia moral, convida ao estudo sério e à reflexão crítica, livre de melindres por contrariar autores de estimação ou narrativas populares. É dever do espírita responsável distinguir entre o que é ensino doutrinário validado, fruto da fé raciocinada e do método, e o que são criações literárias ou expressões simbólicas sem valor doutrinário.

Exemplos como o relato de Bizet e o "Quadro da Vida Espírita", assim como toda a 2ª parte do livro O céu e o inferno, de Allan Kardec, contendo dezenas de depoimentos de desencarnados sobre como se encontravam na erraticidade permanecem como referências essenciais para aqueles que desejam compreender, com fidelidade e lucidez, a vida espiritual. Reconhecer que os Espíritos não possuem órgãos materiais não é uma mera questão teórica; é uma exigência lógica e doutrinária para manter a coerência da filosofia espírita e a credibilidade de seu projeto educativo e emancipador.

Somente com essa base segura poderemos construir um entendimento racional, ético e livre de ilusões sobre a vida após a morte, em sintonia com os princípios decorrentes das Leis Naturais.

 



[1] Ver O livro dos médiuns – 2ª parte, Capítulo XX, item 230.


Nenhum comentário:

Postar um comentário