A realidade espiritual e a ilusão das
necessidades materiais
Marco
Milani
Texto
publicado na revista Candeia Espírita, nº 46, jul/2025, p. 7-8
O relato mediúnico do Padre Bizet, publicado por Allan Kardec na
Revista Espírita de junho de 1868, apresenta uma descrição impactante de um
fenômeno que afeta muitos Espíritos após a morte física: a persistência
ilusória de sensações materiais.
Bizet narra as cenas de sofrimento de desencarnados que, tomados pela
perturbação, acreditavam estar submetidos a uma fome dilacerante, reagindo com
desespero, violência e alucinação. Observando esses Espíritos, ele sinaliza com
clareza que não há estômago para digerir, nem órgãos para assimilar, pois, no
plano espiritual, a fisiologia orgânica não encontra correspondência.
Essa constatação remete a um princípio doutrinário: os Espíritos
desencarnados não possuem órgãos físicos ou assemelhados. A manutenção de
percepções típicas da vida corporal é fruto de condicionamentos psíquicos e
apegos não superados, jamais da existência de uma estrutura orgânica
espiritual. Em abril de 1859, Kardec já havia sistematizado esse ensinamento no
artigo "Quadro da Vida Espírita", publicado também na Revista
Espírita, onde resume as principais características da existência espiritual,
entre elas a afirmação categórica: "não têm órgãos materiais". Isso
implica que todas as percepções, deslocamentos e formas de comunicação dos
Espíritos ocorrem por meios fluídicos, distintos das funções biológicas da
matéria densa.
Compreender essa diferença é essencial para a construção de uma visão
racional e desmaterializada da vida pós-morte, como propõe o Espiritismo. As
sensações de fome, sede ou dor relatadas por Espíritos em sofrimento são,
segundo Kardec, reflexos psíquicos gerados pela condição moral e emocional em
que se encontram, resultantes de hábitos materiais, culpa, apego ou ignorância.
À medida que o Espírito se esclarece e se liberta desses vínculos, tais ilusões
desaparecem.
Esse entendimento contrasta com certas descrições encontradas em
romances mediúnicos contemporâneos, que muitas vezes apresentam o mundo
espiritual como uma extensão do mundo físico, com Espíritos sujeitos a
necessidades orgânicas como alimentação, sono, digestão e até mesmo reprodução
biológica. Um exemplo particularmente grave dessa distorção doutrinária é a
afirmação, feita em determinada obra ficcional mediúnica, de que existiriam
casos de gravidez no mundo espiritual. Tal ideia, além de absolutamente incompatível
com a teoria espírita que torna biologicamente e espiritualmente impossível
qualquer processo gestacional entre desencarnados.
Embora tais narrativas possam parecer razoáveis sob a perspectiva de
encarnados, quando analisadas criticamente ferem os fundamentos estabelecidos pelo
ensino convergente dos Espíritos e podem gerar confusão entre aqueles mais
afeitos à literatura ficcional espiritualista.
A tentativa de justificar contradições sem qualquer lastro
metodológico objetivo com a frase "Kardec não disse tudo" representa
uma distorção do preceito da fé raciocinada. Como bem alertou o Espírito Erasto[1],
uma única teoria falsa pode servir de base para a edificação de um sistema
inteiro de erros, que ruirá diante da menor confrontação com a verdade. O
Espiritismo admite progresso e novos conhecimentos, mas sempre mediante
critérios de validação rigorosa, fundamentados em fatos, lógica e no método objetivo.
Revelações isoladas, por mais eloquentes que sejam os médiuns ou Espíritos que
as transmitam, não podem se sobrepor àquilo que foi universalmente ensinado,
confirmado e consolidado.
O Espiritismo, como ciência de observação e filosofia moral, convida
ao estudo sério e à reflexão crítica, livre de melindres por contrariar autores
de estimação ou narrativas populares. É dever do espírita responsável
distinguir entre o que é ensino doutrinário validado, fruto da fé raciocinada e
do método, e o que são criações literárias ou expressões simbólicas sem valor
doutrinário.
Exemplos como o relato de Bizet e o "Quadro da Vida
Espírita", assim como toda a 2ª parte do livro O céu e o inferno, de Allan
Kardec, contendo dezenas de depoimentos de desencarnados sobre como se
encontravam na erraticidade permanecem como referências essenciais para aqueles
que desejam compreender, com fidelidade e lucidez, a vida espiritual.
Reconhecer que os Espíritos não possuem órgãos materiais não é uma mera questão
teórica; é uma exigência lógica e doutrinária para manter a coerência da
filosofia espírita e a credibilidade de seu projeto educativo e emancipador.
Somente com essa base segura poderemos construir um entendimento
racional, ético e livre de ilusões sobre a vida após a morte, em sintonia com
os princípios decorrentes das Leis Naturais.
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