terça-feira, 2 de março de 2021

Apresentação de J.Herculano Pires da obra O Céu e o Inferno



Notícia Sobre o Livro O Céu e o Inferno (LAKE Editora)

Lendo-se este livro com atenção vê-se que a sua estrutura corresponde a um verdadeiro processo de julgamento. Na primeira parte temos a exposição dos fatos que o motivaram e a apreciação judiciosa, sempre serena, dos seus vários aspectos, com a devida acentuação dos casos de infração da lei. Na segunda parte o depoimento das testemunhas. Cada uma delas caracteriza-se por sua posição no contexto processual. E diante dos confrontos necessários o juiz pronuncia a sua sentença definitiva, ao mesmo tempo enérgica e tocada de misericórdia.

Estamos ante um tribunal divino. Os homens e suas instituições são acusados e pagam pelo que devem, mas agravantes e atenuantes são levados em consideração à luz de um critério superior.

A 30 de setembro de 1863, como se pode ver em Obras Póstumas, Kardec recebeu dos Espíritos Superiores este aviso: “Chegou a hora de a Igreja prestar contas do depósito que lhe foi confiado, da maneira como praticou os ensinamentos do Cristo, do uso que fez de sua autoridade, enfim do estado de incredulidade a que conduziu os espíritos”. Esse julgamento começava com a preliminar constituída pelo O Evangelho Segundo o Espiritismo e devia continuar com O Céu e o Inferno. Dentro de dois anos, em seu número de setembro de 1865, a Revista Espírita publicaria em sua secção bibliográfica a notícia do lançamento do quarto livro de Codificação Espírita: O Céu e o Inferno. Faltava apenas A Génese para completar a obra da Codificação da III Revelação.

Dois capítulos de O Céu e o Inferno foram publicados antecipadamente na Revista: o capítulo intitulado Da Apreensão da Morte, vigorosa peça de acusação, no número de janeiro de 1865, e o capítulo Onde é o Céu, no número de março do mesmo ano. Apareceram ambos como se fossem simples artigos para a Revista, mas o último trazia uma nota final anunciando que ambos pertenciam a uma “nova obra que o Sr. Allan Kardec publicará proximamente”.

Em setembro a obra já aparece anunciada como à venda. Kardec declara que, não podendo elogiá-la nem criticá-la, a Revista se limitava a publicar um resumo do seu prefácio, revelando o seu conteúdo.

Os capítulos antecipadamente publicados aparecem, o primeiro com o mesmo título com que saíra e o segundo com o título reduzido para O Céu. 

Estava dado o golpe de misericórdia nos dogmas fundamentais d a teologia do cristianismo formalista, tipo inegável de sincretismo religioso com que o Cristianismo verdadeiro, essencial e não formal, conseguira penetrar na massa impura do mundo e levedá-la à custa de enormes sacrifícios. Kardec reafirma o caráter científico do Espiritismo. Como ciência de observação a nova doutrina enfrenta o problema das penas e recompensas futuras à luz da História, estabelecendo comparações entre as idealizações do céu e do inferno nas religiões anteriores e nas religiões cristãs, revelando as raízes históricas, antropológicas, sociológicas e psicológicas dessas idealizações e denunciando os absurdos a que chegara a imaginação teológica na formulação dos dogmas cristãos. 

O capítulo primeiro de O Céu e o Inferno intitula-se O Futuro e o Nada. Esse título coloca o leitor em face das duas alternativas fundamentais do espírito. Kardec se revela ao mesmo tempo cartesiano e shakespeariano. É cartesiano quando propõe esta premissa lógica, de agudo realismo: Vivemos, pensamos, agimos; isto é positivo; não é menos certo que morremos. É shakespeariano quando evoca o dilema: Ser ou não ser, eis a alternativa. Mas ao mesmo tempo se opõe, com a antecedência de mais de um século, à tese do nada que surgirá ali mesmo, na França, com a filosofia existencial de Jean-Paul Sartre, o teórico da frustração e da nadificaçâo do homem. 

O que mais impressiona neste processo jurídico é a objetividade da acusação. Não estamos diante de um tribunal romano, onde as normas do Direito se subordinam às exigências imediatistas do Império, mas perante um tribunal grego do mundo socrático, onde o juiz implacável pergunta a todo instante: o que é isso? e exige definição precisa segundo as leis da maiêutica. Estas comparações não são retóricas, são simplesmente históricas. O processo lógico de Kardec segue as linhas dialéticas da busca socrática da verdade, segundo a exposição platónica. O juiz que pontifica neste tribunal não enverga a toga impura de Anito, mas a túnica de Platão. 

A comparação do inferno pagão com o inferno cristão é um dos mais eficazes trabalhos de mitologia comparada que se conhece. A mitologia cristã se revela mais grosseira e cruel que a pagã. 

Bastaria isso para justificar o Renascimento. O mergulho da humanidade no sorvedouro medieval levou a natureza humana a um retrocesso histórico só comparável ao do nazifascismo em nosso tempo. Os intelectuais materialistas assustaram -se com o retrocesso do homem nos anos 40 do nosso século e puseram em dúvida a teoria da evolução. Se houvessem lido este livro de Kardec saberiam que a evolução não se processa em linha reta, mas em ascensão espiralada. Os teólogos medievais estavam racional e moralmente atrasados em relação aos teólogos gregos porque representavam uma vasta camada de população ainda não atingida pelas luzes da cultura helénica. A evolução do homem na Terra está sujeita às vicissitudes da superposição periódica de camadas populacionais inferiores que precisam aflorar na superfície cultural para se beneficiarem. A queda do Império Romano foi um momento de superposição dos bárbaros, que precisavam abeberar -se na cultura clássica. No episódio aparentemente inexplicável do nazifascismo tivemos um novo afloramento dos instintos bestiais do homem. 

Esses instintos ainda estão presentes em nosso mundo de após nazismo, mas vão sendo caldeados na ebulição cultural dos nossos dias. Nenhuma imagem explicaria melhor essa situação que a do caldeirão medieval, formulada por Wilhelm Dilthey. 

Vemos assim que este livro de Kardec tem muito para ensinar, não só aos espíritas, mas também aos luminares da inteligência neopagã que perdem o seu tempo combatendo o Espiritismo, como gregos e romanos combateram inutilmente o Cristianismo. O processo espírita se desenvolve na linha de sequência do processo cristão. A conversão do mundo ainda não se completou. Cabe ao Espiritismo dar-lhe a última demão, como desenvolvimento natural, histórico e profético do Cristianismo em nosso tempo. A leitura e o estudo sistemático deste livro se impõem a espíritas e não-espíritas, a todos os que realmente desejam compreender o sentido da vida humana na Terra. 

Mesmo entre os espíritas este livro é quase desconhecido. A maioria dos que o conhecem nunca se inteirou do seu verdadeiro significado. Kardec nos dá nas suas páginas o balanço da evolução moral e espiritual da humanidade terrena até os nossos dias. Mas ao mesmo tempo estabelece as coordenadas da evolução futura. As penas e recompensas de após morte saem do plano obscuro das superstições e do misticismo dogmático para a luz viva da análise racional e da pesquisa científica. É evidente que essa pesquisa não pode seguir o método das ciências de mensuração, pois o seu objeto não é material, mas segue rigorosamente as exigências do espírito científico moderno e contemporâneo. O grave problema da continuidade da vida após a morte despe-se dos aparatos mitológicos para mostrar-se com a nudez da verdade à luz da razão esclarecida. 

Como ciência de observação o Espiritismo nos oferece a análise de Kardec na primeira parte do volume. Como ciência de pesquisa nos oferece a segunda parte, em que vemos Kardec investigar objetivamente a situação dos espíritos após a morte. Como ele acentua incessantemente, as penas e recompensas, que são as consequências naturais do comportamento humano na Terra, não aparecem aqui como alegorias ou suposições elaboradas pela mente, mas como o resultado da pesquisa mediúnica, da investigação direta da situação dos espíritos através de suas próprias revelações. E essas revelações não são gratuitas nem colhidas ao acaso, mas provocadas pelo experimentador através de anos de trabalho árduo e paciente. Mais de um século depois de realizado, esse trabalho é hoje sancionado pelas investigações recentes, não só no meio espírita mas também no campo das investigações parapsíquicas. 

A imparcialidade de Kardec e o seu amor pela pesquisa, a sua confiança na eficiência da investigação científica transparecem a cada instante. Charles Richet teve razão ao reconhecer a vocação científica do Codificador do Espiritismo. Dando ao inferno e ao céu os seus contornos reais, com base nos resultados de sua investigação, Kardec não repudia o dogma do purgatório, o mais suspeito da estrutura teológica arbitrária porque introduzido tardiamente no sistema dogmático católico, mas aceita -o e justifica-o. O purgatório é a Terra, o lugar determinado e circunscrito em que purgamos as nossas imperfeições, encarnados ou desencarnados. 

A doutrina teológica dos anjos e demônios é submetida também à prova dupla da análise racional e da pesquisa científica. A con clusão é límpida e certa: somos demônios quando estamos saindo da animalidade para a espiritualização e somos anjos quando estamos saindo da humanidade para a angelitude. Mas isso não é uma ideia, uma hipótese, o produto de uma elucubração mental ou de uma interpretação arbitraria de textos sagrados. É o resultado da observação e da pesquisa. Milhares de criaturas espirituais observadas, interrogadas, submetidas à experiência mediúnica forneceram os tipos psicológicos e morais da escala espírita, numa verdadeira classificação psíquica aplicável não só aos espíritos, mas também à tipologia humana. 

A importância deste livro é maior do que realmente se pensa. No tocante à Teologia, como procuramos demonstrar em várias notas ao texto, O Céu e o Inferno antecipou de mais de um século as transformações que ora se operam no seio das várias igrejas. Se os teólogos, que pretendem ser homens mais do que homens, como Descartes os classificou, pudessem ter a humildade suficiente para consultá-lo, encontrariam nestas páginas a solução dos seus mais angustiantes problemas. 

São Paulo, 30 de julho de 1973 

J. Herculano Pires


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