terça-feira, 9 de setembro de 2025

Um rumo possível do movimento espírita


Um rumo possível do movimento espírita

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.208, set/out 2025, p. 13-14

 

Recentemente, a desencarnação do conhecido médium baiano, Divaldo Pereira Franco, suscitou diferentes reflexões sobre as características culturais do movimento espírita brasileiro. Além de se reconhecer a sua profícua divulgação do Espiritismo, constata-se que ele foi o último dos grandes nomes cuja vasta produção mediúnica e eloquente oratória atravessaram as fronteiras nacionais e influenciaram os adeptos de dezenas de países. Tal produção é superada, apenas, pelo médium mineiro, Francisco Cândido Xavier, o qual foi, para muitos, o maior representante espírita brasileiro ao popularizar a doutrina a partir de meados do século XX.

Estudos sociológicos e antropológicos anteriores, como os de Hess (1991)[1], Stoll (1999)[2] e Lewgoy (2004)[3], já destacaram o papel central que médiuns carismáticos desempenharam na formação cultural do Espiritismo no Brasil, imprimindo elementos muito peculiares.

Desde a formação dos primeiros grupos mediúnicos espíritas brasileiros, no final do século XIX, existiram tensões comportamentais, principalmente quanto à postura desviante religiosista, conforme relatam Arribas (2008)[4] e Quintela (2010)[5], apontando o embate ideológico entre os chamados “místicos” e “científicos” no Rio de Janeiro, então capital do Império. Observou-se a tendência de se adotar um comportamento de tom venerativo em relação aos Espíritos comunicantes, priorizando sua identidade e suposta elevação moral em detrimento dos cuidados metodológicos da universalidade e da fé raciocinada.

Apesar de não ser o desejado, é compreensível que, ao ser disseminada para diferentes contextos geográficos e culturais, qualquer filosofia ou sistema de pensamento passe por um processo de ressignificação local. Essa “ambientação cultural” é objeto de estudo de diversas correntes das ciências sociais que observam como ideias universais são reinterpretadas conforme os códigos simbólicos, históricos e afetivos de cada sociedade. Geertz (1978)[6] destacou que não existe apropriação neutra de um corpo doutrinário: ele será necessariamente moldado por mediações simbólicas e práticas locais. No caso do Espiritismo, sua chegada ao Brasil encontrou um solo promissor para esse tipo de recriação, marcado por uma religiosidade popular influenciada pela tradição católica, pelo sincretismo e pela valorização da autoridade carismática, fatores que contribuíram para a configuração de um modelo devocional próprio, ainda que sustentado por referências formais à codificação original de Kardec.

Entretanto, se por um lado tais adaptações culturais são compreensíveis no processo de disseminação de qualquer doutrina, por outro é igualmente esperado que, com o tempo, haja um amadurecimento capaz de promover o retorno crítico e consciente às suas bases originárias. Assim como a fase adulta supera a juvenil não por negar sua história, mas por ressignificá-la com maior lucidez, também o movimento espírita pode evoluir superando formas de adesão baseadas no carisma individual ou na emoção devocional. Esse percurso não representa um retrocesso, mas um avanço no sentido da coerência doutrinária e da fidelidade reflexiva. O próprio Espiritismo, ao propor-se como o Consolador prometido, não anulou a mensagem de Jesus, mas a retomou em sua essência moral e racional, despida das deturpações dogmáticas acumuladas ao longo dos séculos. Trata-se de um exemplo claro de progresso intelectual e ético que, longe de repetir o passado, o eleva e o depura. Da mesma forma, a valorização consciente aos fundamentos kardequianos ao invés de posições opinativas de determinados médiuns e Espíritos deve representar para o movimento espírita não uma negação de sua história, mas a continuidade de seu propósito de iluminação das consciências com liberdade, responsabilidade e razão.

Esse amadurecimento pode se concretizar por meio de uma educação doutrinária mais vigorosa e estruturada, que vá além da memorização de frases consagradas ou da aceitação automática de conteúdos atribuídos a médiuns renomados. O combate efetivo às más inclinações e o consequente aprimoramento moral, objetivos do verdadeiro espírita, decorrem da precisa compreensão da realidade espiritual, o que é possível quando se adota a fé raciocinada proposta por Kardec. Essa fé não se sustenta em crenças passivas ou emocionais, mas em uma postura analítica, capaz de avaliar racionalmente as informações recebidas e de submetê-las ao crivo da lógica, da moral universal e da coerência com o conjunto do ensino dos Espíritos. Assim, incentivar o estudo aprofundado dos princípios doutrinário, o debate respeitoso com outras áreas do saber e, sobretudo, a adoção sistemática do critério da universalidade como método de validação de conteúdo, são práticas fundamentais para o desenvolvimento consciente e autêntico do movimento espírita. Dessa forma, o Espiritismo seguirá fortalecido em sua proposta original, marchando com solidez e discernimento no cumprimento de sua missão esclarecedora e moralizadora.

A crescente oferta de cursos e estudos sistemáticos das obras de Kardec tem favorecido uma compreensão mais crítica e robusta do Espiritismo, enquanto o estímulo ao diálogo com a ciência contribui para consolidar uma abordagem mais racional e menos fantasiosa. Paralelamente, pesquisas acadêmicas sobre temas como reencarnação, experiências de quase-morte e mediunidade, conduzidas por estudiosos não espíritas em diversos países, reforçam a legitimidade do estudo da realidade espiritual em bases empíricas e interdisciplinares.

Diante dos desafios e possibilidades do presente, os rumos do Espiritismo envolvem o resgate integral de sua proposta filosófico-científica: uma doutrina fundamentada na razão, no método e na moral, sem o devocionalismo que a obscurece. O caminho para que o movimento espírita brasileiro avance com firmeza e serenidade é pautado pelo conhecimento que liberta dos grilhões da ignorância mística e supersticiosa.



[1] HESS, David J. Spirits and Scientists: Ideology, Spiritism, and Brazilian Culture. University Park, PA: Penn State University Press, 1991

[2] STOLL, Sandra J. Entre dois mundos: o Espiritismo da França e no Brasil. Tese de Doutorado, São Paulo, USP, 1999.

[3] LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru: Edusc, 2004.

[4] ARRIBAS, Célia G. O crescimento do aspecto religioso do Espiritismo no Brasil no século XX e XXI: um estudo das representações sociais da doutrina espírita na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado, São Paulo, PUC, 2008.

[5] QUINTELLA, Mauro. História do espiritismo no Brasil: origens, consolidação e desenvolvimento. AJEE, 2010.

[6] GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978


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