Marco
Milani
Texto
publicado na Revista Dirigente Espírita, n.208, set/out 2025, p. 13-14
Recentemente, a desencarnação do conhecido médium baiano, Divaldo
Pereira Franco, suscitou diferentes reflexões sobre as características
culturais do movimento espírita brasileiro. Além de se reconhecer a sua
profícua divulgação do Espiritismo, constata-se que ele foi o último dos
grandes nomes cuja vasta produção mediúnica e eloquente oratória atravessaram
as fronteiras nacionais e influenciaram os adeptos de dezenas de países. Tal
produção é superada, apenas, pelo médium mineiro, Francisco Cândido Xavier, o
qual foi, para muitos, o maior representante espírita brasileiro ao popularizar
a doutrina a partir de meados do século XX.
Estudos sociológicos e antropológicos anteriores, como os de Hess
(1991)[1],
Stoll (1999)[2] e
Lewgoy (2004)[3],
já destacaram o papel central que médiuns carismáticos desempenharam na
formação cultural do Espiritismo no Brasil, imprimindo elementos muito
peculiares.
Desde a formação dos primeiros grupos mediúnicos espíritas brasileiros,
no final do século XIX, existiram tensões comportamentais, principalmente
quanto à postura desviante religiosista, conforme relatam Arribas (2008)[4]
e Quintela (2010)[5],
apontando o embate ideológico entre os chamados “místicos” e “científicos” no
Rio de Janeiro, então capital do Império. Observou-se a tendência de se adotar
um comportamento de tom venerativo em relação aos Espíritos comunicantes,
priorizando sua identidade e suposta elevação moral em detrimento dos cuidados
metodológicos da universalidade e da fé raciocinada.
Apesar de não ser o desejado, é compreensível que, ao ser disseminada
para diferentes contextos geográficos e culturais, qualquer filosofia ou
sistema de pensamento passe por um processo de ressignificação local. Essa
“ambientação cultural” é objeto de estudo de diversas correntes das ciências
sociais que observam como ideias universais são reinterpretadas conforme os
códigos simbólicos, históricos e afetivos de cada sociedade. Geertz (1978)[6]
destacou que não existe apropriação neutra de um corpo doutrinário: ele será
necessariamente moldado por mediações simbólicas e práticas locais. No caso do
Espiritismo, sua chegada ao Brasil encontrou um solo promissor para esse tipo
de recriação, marcado por uma religiosidade popular influenciada pela tradição
católica, pelo sincretismo e pela valorização da autoridade carismática, fatores
que contribuíram para a configuração de um modelo devocional próprio, ainda que
sustentado por referências formais à codificação original de Kardec.
Entretanto, se por um lado tais adaptações culturais são
compreensíveis no processo de disseminação de qualquer doutrina, por outro é
igualmente esperado que, com o tempo, haja um amadurecimento capaz de promover
o retorno crítico e consciente às suas bases originárias. Assim como a fase
adulta supera a juvenil não por negar sua história, mas por ressignificá-la com
maior lucidez, também o movimento espírita pode evoluir superando formas de
adesão baseadas no carisma individual ou na emoção devocional. Esse percurso
não representa um retrocesso, mas um avanço no sentido da coerência doutrinária
e da fidelidade reflexiva. O próprio Espiritismo, ao propor-se como o
Consolador prometido, não anulou a mensagem de Jesus, mas a retomou em sua
essência moral e racional, despida das deturpações dogmáticas acumuladas ao
longo dos séculos. Trata-se de um exemplo claro de progresso intelectual e
ético que, longe de repetir o passado, o eleva e o depura. Da mesma forma, a valorização
consciente aos fundamentos kardequianos ao invés de posições opinativas de
determinados médiuns e Espíritos deve representar para o movimento espírita não
uma negação de sua história, mas a continuidade de seu propósito de iluminação
das consciências com liberdade, responsabilidade e razão.
Esse amadurecimento pode se concretizar por meio de uma educação
doutrinária mais vigorosa e estruturada, que vá além da memorização de frases
consagradas ou da aceitação automática de conteúdos atribuídos a médiuns
renomados. O combate efetivo às más inclinações e o consequente aprimoramento
moral, objetivos do verdadeiro espírita, decorrem da precisa compreensão da
realidade espiritual, o que é possível quando se adota a fé raciocinada proposta
por Kardec. Essa fé não se sustenta em crenças passivas ou emocionais, mas em
uma postura analítica, capaz de avaliar racionalmente as informações recebidas
e de submetê-las ao crivo da lógica, da moral universal e da coerência com o
conjunto do ensino dos Espíritos. Assim, incentivar o estudo aprofundado dos
princípios doutrinário, o debate respeitoso com outras áreas do saber e,
sobretudo, a adoção sistemática do critério da universalidade como método de
validação de conteúdo, são práticas fundamentais para o desenvolvimento
consciente e autêntico do movimento espírita. Dessa forma, o Espiritismo seguirá
fortalecido em sua proposta original, marchando com solidez e discernimento no
cumprimento de sua missão esclarecedora e moralizadora.
A crescente oferta de cursos e estudos sistemáticos das obras de
Kardec tem favorecido uma compreensão mais crítica e robusta do Espiritismo,
enquanto o estímulo ao diálogo com a ciência contribui para consolidar uma
abordagem mais racional e menos fantasiosa. Paralelamente, pesquisas acadêmicas
sobre temas como reencarnação, experiências de quase-morte e mediunidade,
conduzidas por estudiosos não espíritas em diversos países, reforçam a
legitimidade do estudo da realidade espiritual em bases empíricas e interdisciplinares.
Diante dos desafios e possibilidades do presente, os rumos do
Espiritismo envolvem o resgate integral de sua proposta filosófico-científica:
uma doutrina fundamentada na razão, no método e na moral, sem o devocionalismo
que a obscurece. O caminho para que o movimento espírita brasileiro avance com firmeza
e serenidade é pautado pelo conhecimento que liberta dos grilhões da ignorância
mística e supersticiosa.
[1] HESS,
David J. Spirits and Scientists: Ideology, Spiritism, and Brazilian Culture.
University Park, PA: Penn State University Press, 1991
[2] STOLL,
Sandra J. Entre dois mundos: o Espiritismo da França e no Brasil. Tese
de Doutorado, São Paulo, USP, 1999.
[3] LEWGOY,
Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru:
Edusc, 2004.
[4] ARRIBAS,
Célia G. O crescimento do aspecto religioso do Espiritismo no Brasil
no século XX e XXI: um estudo das representações sociais da doutrina espírita
na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado, São Paulo, PUC, 2008.
[5] QUINTELLA,
Mauro. História do espiritismo no Brasil: origens, consolidação e
desenvolvimento. AJEE, 2010.
[6] GEERTZ,
Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar,
1978
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