Espiritismo, Juventude e Educação
Marco
Milani
O movimento espírita brasileiro enfrenta um desafio que merece
reflexão aprofundada: enquanto proclama a universalidade de seus princípios e a
importância da educação moral para todas as idades, observa-se, na prática, um
predomínio da população adulta, especialmente adultos maduros e idosos, nas
atividades doutrinárias e estudos sistematizados. A presença infantojuvenil tem
sido numericamente inferior e, em muitos casos, periférica às dinâmicas dos
centros espíritas. Tal realidade se entrelaça com aspectos socioculturais e
educacionais que afetam diretamente a capacidade de compreensão e interesse dos
jovens pela Doutrina Espírita.
Parte desse cenário pode ser compreendida à luz da formação
educacional heterogênea no Brasil, especialmente no que se refere à
alfabetização e ao desenvolvimento das habilidades de leitura, escrita e
pensamento abstrato.
O país tem adotado, nas últimas décadas, métodos pedagógicos
fortemente influenciados por correntes construtivistas e socioconstrutivistas.
Tais abordagens, inspiradas em autores como Jean Piaget (1990), Lev Vygotsky
(2007), Jerome Bruner (2001) e Paulo Freire (2004), supõem valorizar a
autonomia do aluno, a aprendizagem pela experiência e o papel da interação
social na construção do conhecimento. Embora esses aportes tenham contribuído ao
debate educacional, estudos empíricos apontam falhas graves na aplicação dessas
metodologias, sobretudo quando adotadas de forma exclusiva ou desprovida de
apoio estrutural. Kirschner, Sweller e Clark (2006) demonstraram que métodos
com baixa orientação, como a aprendizagem por descoberta, tendem a ser
ineficazes para alunos com pouca bagagem cognitiva, sobrecarregando sua memória
de trabalho. Mayer (2004) reforça que a aprendizagem significativa depende, em
grande parte, de instrução clara e sistemática, especialmente na alfabetização.
No Brasil, a obra de Benedetti (2019) explicita como a adesão acrítica ao
socioconstrutivismo contribuiu para um quadro de fracasso na alfabetização e no
domínio da linguagem escrita, o que gera consequências nos ciclos posteriores.
Segundo os dados do Instituto Paulo Montenegro (IPM, 2018), cerca de 38%
dos alunos de cursos superiores não conseguem interpretar adequadamente textos mais
complexas que exigem abstração e domínio pleno de leitura e escrita. A
população em faixas educacionais menores apresenta mais dificuldade.
Não por acaso, o país figura entre aqueles com piores desempenhos em
testes educacionais internacionais, como o PISA (Programme for
International Student Assessment), TIMSS (Trends in International
Mathematics and Science Study) e PIRLS (Progress in
International Reading Literacy Study). Mesmo em testes nacionais, como o
SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), aponta-se níveis alarmantes de
analfabetismo funcional em todas as etapas escolares, principalmente no ensino
médio.
Esse contexto gravíssimo limita não apenas o acesso ao conhecimento educacional,
mas também a capacidade de compreender adequadamente conteúdos mais filosóficos,
como os presentes nas obras de Allan Kardec, cuja estrutura é logicamente
encadeada e exige maturidade para assimilar conceitos como perispírito, justiça
divina, reencarnação, livre-arbítrio, expiação e pluralidade dos mundos
habitados.
Nesse contexto, o desafio dos centros espíritas é duplo: de um lado,
manter a coerência doutrinária, que exige estudo, raciocínio e reflexão; de
outro, acolher a juventude com suas limitações educacionais, oferecendo meios
acessíveis de aproximação com os princípios espíritas.
As casas espíritas precisam, com urgência, adequar suas práticas à
complexa realidade educacional brasileira. Ignorar esses limites, mantendo uma
abordagem expositiva e textual rígida, pode afastar justamente os que mais
precisam do acolhimento, conforto e compreensão da própria realidade espiritual
(MILANI, 2023, p. 4).
Um dos equívocos mais recorrentes nesse cenário é a ideia ilusória de
que basta apresentar os jovens aos preceitos cristãos, como a caridade, o
perdão, a humildade, sem oferecer-lhes a fundamentação doutrinária espírita que
os sustenta e racionaliza. Ainda que esses princípios morais sejam essenciais e
estejam presentes em várias tradições religiosas, o Espiritismo lhes confere
profundidade e coerência, ao explicá-los à luz da justiça divina, da
reencarnação, das leis morais e da imortalidade da alma. Quando se suprime essa
fundamentação, corre-se o risco de apresentar apenas uma moral genérica,
emocional e desarticulada do pensamento espírita, o que dificulta tanto o
entendimento da justiça divina e a necessidade do esforço individual frente às
adversidades quanto a aplicação consciente desses valores na vida prática.
É importante reconhecer que a capacidade e compreensão desejada nem
sempre é alcançada de forma espontânea por todos os jovens, sobretudo por aqueles
vindos de contextos educacionais fragilizados. Por isso, a simples exposição da
doutrina, em moldes tradicionais de estudo, pode não ser suficiente para
despertar o interesse nem garantir a reflexão necessária.
Diante disso, torna-se imprescindível que os centros espíritas adotem
estratégias didáticas e comunicacionais que respeitem a diversidade cognitiva
da população infantojuvenil. Isso envolve, por exemplo, o uso de recursos
visuais, rodas de conversa mediadas, projetos com linguagem acessível,
experiências práticas baseadas na vivência ética e afetuosa, atividades
interativas e leitura compartilhada. Ao mesmo tempo, é fundamental manter a
estrutura lógica, motivando os jovens, progressivamente, ao domínio doutrinário.
Há, felizmente, valorosas iniciativas já em curso nesse sentido.
Entidades federativas como a União das Sociedades Espíritas do Estado de São
Paulo (USE-SP) promovem constantes encontros, fóruns e seminários voltados à
reflexão sobre o acolhimento e educação dos jovens nos centros espíritas. Essas
ações revelam esforço institucional legítimo e comprometido com a formação das
novas gerações. No entanto, o tema exige maior envolvimento de todos,
dirigentes, educadores, famílias e frequentadores, para que as boas práticas se
ampliem, sejam compartilhadas e se convertam em transformação efetiva das
realidades locais.
Essa postura exige sensibilidade dos dirigentes espíritas, além de
investimento na formação pedagógica das equipes de educação infantojuvenil. A
simples replicação de modelos expositivos usados com adultos não atende às
necessidades de um público jovem, muitas vezes emocionalmente vulnerável e
cognitivamente desigual. A proposta não é diluir o Espiritismo, mas mediá-lo
com inteligência, generosidade e criatividade, tornando-o acessível sem
comprometer sua profundidade.
Para que o Espiritismo cumpra sua missão de regeneração da humanidade,
é preciso olhar com atenção para a juventude, não como “futuro do movimento”,
mas como integrante do presente que demanda respostas às suas inquietações. A compreensão
doutrinária passa por um esforço constante de traduzir seus princípios para diferentes
aptidões intelectuais, em todos os tempos e realidades.
Referências
BENEDETTI,
Kátia S. A falácia socioconstrutivista: por que os alunos brasileiros
deixaram de aprender a ler e escrever. Itatiba: Kírion, 2019.
BRUNER,
Jerome. A cultura da educação. Porto Alegre: Artmed, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia
da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2004.
INSTITUTO PAULO
MONTENEGRO (IPM). Ação Educativa - Indicador de Analfabetismo Funcional -
INAF 2018. São Paulo: Instituto Paulo Montenegro, 2018.
KIRSCHNER, Paul
A.; SWELLER, John; CLARK, Richard E. Why minimal guidance during instruction
does not work: An analysis of the failure of constructivist, discovery,
problem-based, experiential, and inquiry-based teaching. Educational
Psychologist, v. 41, n. 2, p. 75–86, 2006.
MAYER, Richard
E. Should There Be a Three-Strikes Rule Against Pure Discovery Learning? American
Psychologist, v. 59, n. 1, p. 14–19, 2004.
MILANI, Marco. Analfabetismo
doutrinário. Correio News, 4 maio 2020. Disponível em: https://correio.news/especial/analfabetismo-doutrinario.
Acesso em: 19 jul. 2025.
PIAGET, Jean. A
epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
VYGOTSKY, Lev
S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos
superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Um texto oportuno para todos os que desempenham função de direção nas Casas Espíritas. Sugestões bem fáceis de serem aplicadas, desde que por pessoas capacitadas para tanto.
ResponderExcluir