domingo, 24 de abril de 2022

A polêmica da alimentação animal e sua relação com a evolução espiritual

 


A POLÊMICA DA ALIMENTAÇÃO ANIMAL

E SUA RELAÇÃO COM A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL

 

Fernando de Oliveira Porto

Departamento de Doutrina - USE SP


(Texto publicado na Revista Dirigente Espírita - ed. 186 - nov/dez 2021 - p.40 a 42)


O consumo da alimentação animal é um assunto bastante em voga hoje em dia e abrange diversos aspectos, não somente relacionados à saúde humana, como também sobre sustentabilidade e mesmo aspectos éticos envolvidos. Para cada um desses temas, no entanto, observa-se divergência entre os especialistas sobre o impacto na saúde do ser humano e no equilíbrio da natureza.

Não nos compete analisar as questões relacionadas à nutrição propriamente dita, afeita aos especialistas no tema. O que motiva a nossa discussão é a defesa, por parte de determinados grupos de espíritas, da introdução da necessidade da abstenção da alimentação da proteína animal para o progresso do Espírito, como um princípio do Espiritismo.

Em geral, essa defesa se baseia no posicionamento de alguns Espíritos no cenário do Movimento Espírita Brasileiro, ao tecerem severas críticas ao consumo da carne, atribuindo consequências deletérias ao Espírito após o desencarne, além de ressaltarem como um ato de crueldade do ser humano a exploração dos animais.

Por maior respeitabilidade que esses irmãos espirituais mereçam da nossa parte, considera-se, para efeito da diretriz estabelecida pela coerência doutrinária, privilegiar-se os ensinamentos exarados na Codificação Espírita. Nestas obras, Allan Kardec adotou o controle universal do ensino dos Espíritos, evitando-se as opiniões isoladas e sistemáticas.

Em O Livro dos Espíritos, nas perguntas 722 a 724, foi abordada a questão da alimentação de maneira bastante lógica e equilibrada. Os Espíritos afirmam que todo o alimento que não prejudique a saúde do ser humano é permitido para o consumo. Acrescentam, ainda, que em face das leis de conservação e do trabalho, faz-se imprescindível alimentar-se bem, em benefício da saúde e da energia, pois a “carne alimenta a carne”, de acordo com a nossa constituição física. Somente em um caso, esclarecem eles, a abstenção do alimento, seja ele de qualquer natureza, é meritória: quando em benefício dos outros, isto é, “quando há privação séria e útil”.

Os Espíritos classificam de hipocrisia a privação apenas aparente de qualquer coisa, como uma espécie de sinalização de virtude, aliás algo muito comum em nossos dias. Vive-se de aparências e intolerância perante estilos de vida diferentes dos nossos. É por isso que o egoísmo e o orgulho são os grandes males a serem combatidos.

Os amigos espirituais vão mais além. Em O Céu e o Inferno, no item intitulado Cuidar do Corpo e do Espíritos, ao esclarecerem a necessidade dos cuidados com o envoltório material, em razão de sua influência sobre a alma, afirmam que o corpo precisa “estar são, disposto, forte”, a fim de que a alma “viva, divirta-se e chegue mesmo a conceber as ilusões da liberdade”.

Mas, alegam os críticos, e quanto à afirmação de Bernard Palissy, na Revista Espírita de abril de 1858, de que os habitantes de Júpiter se alimentam exclusivamente de fonte vegetal, pois “o homem é o protetor dos animais”? Não seria um indicativo de uma imposição de mudança de hábitos de nossa parte?

A primeira objeção é a de que uma afirmação isolada de um Espírito não serve de critério infalível para o estabelecimento de uma regra de conduta. Em segundo lugar, a Revista Espírita foi um laboratório no qual as teorias e conceitos doutrinários foram gradativamente forjados e não um repositório de verdades prontas.

Mas, o mais relevante argumento é a assertiva de que a alimentação dos habitantes de Júpiter é composta de frutos e plantas, em razão da organização etérea de seus corpos e, portanto, nossos alimentos são pesados para eles. Muito interessante, porém, a observação de que a alimentação deles “não seria suficientemente substancial para os nossos estômagos grosseiros”. 

A sensualidade, o apego às coisas materiais e o desregramento das paixões estão entre os fatores capazes de prejudicarem o nosso progresso espiritual, aproximando-nos da nossa natureza animal, conforme os ditames da matéria. Mas não são as paixões más em si mesmas, e sim o seu excesso o problema. A moderação, a temperança e o equilíbrio aplicados às nossas condutas, inclusive na conservação da vida, são os preceitos recomendados em consonância com o Espiritismo.

O Espiritismo é a doutrina do livre exame e da livre consciência e não pode ser encarado nos mesmos moldes das religiões dogmáticas existentes, nas quais a posição de sacerdotes, pastores e instituições, em razão da solidez de suas tradições, tem força de autoridade sobre os fiéis e seguidores.

Se o espírita considera modificar hábitos alimentares para benefício de sua saúde, com a devida orientação médica, por considerar relevante para o seu bem-estar, físico, psíquico e espiritual, é plenamente livre para fazê-lo. Mas que tenha consciência que esse fator, em absoluto, não representa por si mesmo garantia de elevação espiritual perante os seus semelhantes.

Lembremos de Jesus que, em Mateus 11:18-19, ironiza seus adversários, ao acusarem-no de endemoninhado por comer e beber na presença de publicanos e “pecadores”, assim como criticavam João Batista, não obstante não comesse e nem bebesse com eles. O mestre, aliás, se sai com um epíteto curioso: “a sabedoria é justificada pelas suas obras”.

Na intencionalidade da consciência, no sentimento bom ou mau que nos guia, mais do que as ações exteriores, situa-se o valor de nosso procedimento, pois, conforme o próprio Cristo ponderou sobre a questão do alimento, não é o que entra pela boca do homem que o contamina, mas o que procede do seu coração (Mateus 15:17-18).

 

Bibliografia

BÍBLIA. O Novo Testamento. Trad. Haroldo Dutra Dias. Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Brasília: FEB, 2016.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Brasília: FEB, 2016.

KARDEC, Allan. Revista Espírita. Vol. I (1858). Trad. Evandro Noleto Bezerra. Brasília: FEB, 2004.


Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2021/11/DE186.pdf





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