A imortalidade da
alma e a reencarnação na Grécia Antiga
por Marco Milani*
(Publicado no jornal Correio Fraterno, edição 450 -
março/abril 2013)
No
início de janeiro de 2013 tive a oportunidade de conhecer e conversar com Dr.
Marco Antonio Santamaría Álvarez, professor titular de filologia grega no
Departamento de Filologia Clássica e Indo-europeia da Universidade de Salamanca,
Espanha.
Autor
de diversos artigos científicos sobre a cultura e os pensadores da Grécia
Antiga, Santamaría também é um dos organizadores, junto com os professores
Alberto Bernabé Pajares e Madayo Kahle, do livro lançado em 2011 na Espanha,
intitulado Reencarnación: La
transmigración del alma entre Oriente y Occidente1.
O
livro reúne trabalhos inéditos de destacados acadêmicos espanhóis e vem
encontrando ótima recepção, tanto pelo público acadêmico quanto pelo leitor em
geral, já se cogitando uma versão inglesa da obra.
Destaco
aqui alguns trechos de nossa conversa sobre o livro e a temática reencarnação.
Marco Milani: Em um
dos capítulos de sua autoria, aponta-se que Ferécides de Siro foi o primeiro
grego a divulgar que a alma é imortal e a tratar da ideia da transmigração da
alma, mas não se tem certeza sobre a origem das fontes de Ferécides. Quais são
as principais dificuldades para conhecê-las?
Marco
Santamaría: As informações que temos hoje relacionadas às fontes de Ferécides,
o qual supõe-se que viveu no século VI a.C., são de origem tardia, encontradas
principalmente em autores cristãos e neoplatônicos dos séculos IV d.C. e V
d.C., portanto há uma distância temporal significativa entre eles, o que
permite supor que esses autores refletiram algumas tradições. Portanto, não se
tem segurança para se afirmar sobre a origem dessas fontes e é um ponto que
ainda necessita ser desvendado.
Poderia uma
experiência pessoal ter dado origem à crença propagada por Ferécides, ou seja,
uma situação ter gerado o ato cognitivo da descoberta, sem que ele tivesse
tido a necessidade de se basear em ideias anteriores para a construção das
relações entre os homens, deuses, a morte e a sobrevivência da alma?
É
possível que os ensinamentos de Ferécides sobre a alma provenham de
experiências pessoais, mas não temos dados suficientes sobre a sua vida e sua
obra para nos assegurarmos disso. Nesse aspecto, sabe-se que a postura e a
experiência pessoal foram condições necessárias para seguir determinadas
escolas, como nos órficos e pitagóricos, e ter acesso aos ensinamentos sobre os
mistérios relacionados às questões ontológicas.
Há pensadores que
defendiam a sobrevivência e a imortalidade da alma que afirmavam que uma das
fontes de conhecimento era originada nas almas dos desencarnados?
Sócrates,
segundo alguns diálogos de Platão, tinha um gênio protetor um tanto misterioso
que lhe transmitia conhecimentos e lhe advertia sobre determinados fatos, mas
não se considera exatamente que essa teria sido a sua fonte. De forma geral a
fonte dos filósofos não se situava na relação com almas desencarnadas. Pode-se
dizer que a comunicação entre os homens e seres divinos estava presente na
sociedade grega por intermédio das pitonisas, porém esse tipo de conhecimento
relacionava-se à magia e aos seus mistérios.
Era importante para
os filósofos uma experiência individual para a confirmação dessas crenças?
Isso
é muito claro nos casos de Pitágoras e Empédocles. Sobre Pitágoras não se
conservaram textos específicos, mas há testemunhos antigos de que ele se
apresentava como alguém em contato com os deuses e com uma capacidade de se
recordar de vidas passadas e reconhecer almas, parecido com a figura de um
sacerdote. Empédocles se apresentava de maneira semelhante, com a capacidade de
recordar vidas anteriores e considerava-se um personagem com capacidades
divinas entre os homens com dotes especiais de curar e oferecer oráculos.
Pode-se considerar o
orfismo e o pitagorismo como escolas que abraçavam a imortalidade e a
transmigração da alma em suas crenças e que influenciaram muitos pensadores,
tais como Empédocles, Parmênides, Sócrates e Platão. Supõe-se que Ferécides
tenha sido o mestre de Pitágoras. Qual seria a relação de Ferécides com o
orfismo?
Esta
é uma questão complexa e muito debatida, pois há inúmeras informações
dispersas. Certamente existem pontos em comum entre os órficos e o pensamento
de Ferécides, assim como ocorre com os pitagóricos, mas não se pode afirmar,
com segurança, que as crenças órficas decorreram de Ferécides em sua origem e
vice-versa. O que se pode afirmar com certeza é que todas essas correntes
disseminavam a crença da imortalidade da alma e da transmigração e esse fato é
muito interessante e revolucionário, pois na Grécia Antiga existia uma clara
distinção entre os homens mortais e os deuses imortais. Logo, as crenças
órficas, pitagóricas e de Ferécides contrapuseram-se, de certo modo, à
concepção vigente na época entre os homens e a divindade.
De maneira geral,
pode-se afirmar que para os órficos e pitagóricos a alma preexistiria ao
corpo, participando de um ciclo de transmigrações, com recompensas e castigos,
objetivando a sua purificação e, nesse processo, ela manteria a sua
individualidade sem se confundir ou se perder no todo?
Exatamente.
Para todas essas correntes a alma manteria a individualidade, não havendo uma
fusão com o todo nem extinção. E nesse processo, o corpo seria apenas o cárcere
de uma alma preexistente para ser utilizado durante determinado período e
depois a alma o abandonaria na morte. A reencarnação seria uma espécie de
castigo para a alma pagar alguma culpa e conseguir se purificar e depois disso
não mais teria que voltar em um outro corpo. Alguns poemas da época tratam da
questão paradoxal entre morrer no corpo e viver na alma livre, simbolizando a
morte na tumba de carne e a vida ao se deixar o corpo e obter-se a liberdade.
A recompensa para a alma depois do período cíclico transmigratório seria estar
junto aos deuses em uma região feliz ou em um mundo celeste, como exposto pelo
pitagorismo.
Atualmente, no âmbito
acadêmico, a discussão sobre a sobrevivência da alma e sobre a reencarnação não
se limita aos círculos filosóficos, mas também está presente em outras áreas do
conhecimento científico. Cito, por exemplo, os trabalhos de Ian Stevenson e
seus continuadores, como Jim Tucker, da Universidade de Virginia nos Estados
Unidos. Assim, temos atualmente estudos que podem apresentar evidências
empíricas sobre a sobrevivência da alma e a reencarnação. Como você percebe o
impacto desses estudos empíricos nos debates filosóficos sobre esses temas?
Parece-me muito interessante esses estudos,
mas não os conheço em profundidade, portanto não posso comentar
apropriadamente. Certamente todo o conhecimento decorrente de estudos empíricos
enriquecem os debates e permitem novas abordagens.
De maneira geral,
como o tema reencarnação é tratado atualmente pelos espanhóis?
É um contexto um tanto paradoxal, porque temos
aqui na Espanha um paradigma religioso relacionado ao catolicismo, mas a ideia
de reencarnação está um tanto generalizada. Percebe-se uma difusão do
conhecimento da reencarnação, ainda que exista a oposição de representantes
católicos, mas acho isso muito compreensível diante da complexidade do ser
humano com um conglomerado de crenças. Chama-me a atenção a grande semelhança
existente entre crenças atuais e crenças antigas!
---
1
Pajares, A.B; Kahle M.; Santamaría Álvarez. M.A. (Org). Reencarnación: La
transmigración del alma entre Oriente y Occidente. Madrid: Abada Editores,
2011.
* Marco Milani é
economista, professor universitário e em viagem à Espanha realizou esta
entrevista para o Correio Fraterno.
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