Lisboa e Voltaire: tudo está bem?
Marco Milani *
(Texto publicado no Jornal Correio Fraterno – Edição 481 – mai/jun 2018)
Na manhã do dia 1º de novembro de 1755, parte da população de Lisboa ocupava as ruas e igrejas celebrando o Dia de Todos os Santos. No mesmo momento, a algumas centenas de quilômetros dali, no oceano Atlântico, um forte abalo sísmico dava início a uma série de eventos que marcaria dolorosamente essa data.
Um tremor atingiu a costa portuguesa com violência. Os desmoronamentos foram o prelúdio do que ainda estava por vir. Após o brusco recuo do mar, as enormes ondas devastaram a parte baixa da cidade. Finalmente, um incêndio de grandes proporções demorou dias a ser debelado, consumindo vidas e bens, estimando-se 60 mil fatalidades.
Cerca de vinte dias depois desse trágico acontecimento, o filósofo iluminista francês François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, publicava um provocativo texto intitulado Poema sobre o desastre de Lisboa: ou o exame do axioma “tudo está bem”, questionando o argumento ontológico de Leibniz sobre a providência divina.
Como explicar a existência de um Deus bom e justo que permita ou promova desgraças humanas? Quais teriam sido os crimes cometidos pelas crianças portuguesas esmagadas sob escombros juntas com suas mães?
Esses questionamentos, entretanto, refletem um incômodo que sempre pairou no ambiente filosófico sobre o dogmatismo teísta. O paradoxo de Epicuro, formulado cerca de 300 anos antes de Cristo, já apresentava um dilema lógico sobre a existência do mal e as qualidades de Deus. Nesse paradoxo, afirma-se que Deus poderia apresentar, simultaneamente, apenas duas das três características: onisciência, onipotência e benevolência.
Se fosse onisciente e onipotente, teria conhecimento do mal e poderia extingui-lo, mas não seria benevolente ao permitir que o mal existisse.
Se fosse onipotente e benevolente, então poderia extinguir o mal e, sendo bom, desejaria eliminá-lo, mas não o fazia por desconhecer onde todo o mal estaria, logo ele não seria onisciente.
Se fosse onisciente e benevolente, saberia onde todo o mal se encontrava e desejaria extingui-lo, mas como o mal aflige os homens, então ele não seria onipotente pois não consegue extinguir o mal mesmo desejando fazê-lo.
O paradoxo não discute a subjetividade presente nas definições de bem e mal, mas reflete a incompreensão, frente a atributos divinos baseados na experiência humana. Diferentes pensadores, em épocas variadas, propuseram respostas a essas questões, como Tomás de Aquino, no século XIII, que afirmou que o Homem seria incapaz de atingir os mistérios divinos servindo-se da razão, mas somente pela fé conseguiria.
O Poema de Voltaire sobre o desastre de Lisboa também não ficou sem resposta. Seu conterrâneo, Jean-Jacques Rousseau, escreveu em 1756 uma carta rebatendo o ceticismo e a indignação expressos pelo iluminista. Além da defesa sobre a perfeição da Providência e da ordem natural das coisas que escapa à compreensão humana, Rousseau ainda apontou que o próprio Homem pode agir contra si mesmo ao citar, no caso português, as perigosas construções erguidas de maneira imprudente para abrigar muitas famílias que agravaram os efeitos dos desmoronamentos.
Não satisfeito, Voltaire retomaria o assunto em 1759, quando publicou uma de suas obras mais conhecidas: Cândido ou O otimismo. Nesse conto filosófico, tendo como pano de fundo o terremoto de Lisboa, o personagem principal que dá título ao livro é caracterizado como um jovem ingênuo que recebe ensinamentos sobre o otimismo de Leibniz, mas diversos acontecimentos trágicos fazem com que sua visão de mundo seja questionada.
Voltaire desencarnou em 1778 deixando um legado de críticas e escárnios às crenças religiosas e àqueles que propagavam a ideia de ordem natural divina. A herança cultural de Voltaire, entretanto, não se resume a esses ataques destrutivos, mas também por adequadas contribuições à reflexão nos campos políticos, sociais e econômicos. Ao combater o absolutismo e o fanatismo dogmático, ele enalteceu a liberdade de pensamento, as liberdades civis e o livre comércio, posicionando-se contra a interferência do Estado na vida das pessoas e na economia.
No século seguinte, Allan Kardec indagou aos Espíritos sobre a mesma problemática do bem e do mal e, dentre outros tópicos, sobre os flagelos humanos e a justiça divina.
As respostas mediúnicas obtidas nas questões 737 a 741 de O Livro dos Espíritos lembram alguns dos argumentos de Leibniz e Rousseau, porém sustentadas no esclarecimento sobre o processo evolutivo do ser espiritual em detrimento da matéria transitória. Resumidamente, o que parece ser um castigo é, na verdade, uma oportunidade de aprimoramento moral e intelectual, individual e coletivo, reflexo natural da marcha evolutiva em que se encontra o Homem e de suas necessidades correlatas. Essa ordem só faz sentido abandonando-se as explicações materialistas ou aquelas que desembocam nos mistérios igrejeiros e abraçando-se o princípio da pluralidade das existências humanas guiadas por leis naturais imutáveis, fundamentadas na justiça e no amor divinos para a realização da perfeição espiritual de que os seres são suscetíveis.
Evocado por Kardec em 1859 e em comunicações posteriores (ver Revista Espírita ago-set/1859, mai/1862), Voltaire manifesta-se amargurado pelo rumo que tomou enquanto encarnado. Confessa ter deixado o orgulho e o sarcasmo conduzirem suas ações e que sofria pelas consequências danosas que promoveu ao influenciar muitas pessoas, especificamente sobre o aspecto religioso. Em vez de iluminar mentes, combatendo os defeitos e os vícios das religiões constituídas, enaltecendo a verdade perene contida na mensagem cristã, negou a bondade e a justiça divinas e fez-se vítima de sua própria arrogância cética.
A perspectiva espiritual fez Voltaire rever suas concepções sobre Deus e reconhecer a excelência do modelo de virtude que a humanidade possui em Jesus.
Hoje nos beneficiamos das luzes que o Espiritismo oferece, aliando a razão que Voltaire tanto prezava com a fé baseada em evidências e capaz de transportar montanhas mediante a liberdade e responsabilidade individuais. Tudo está bem.
* Presidente da USE Regional de Campinas/SP
Excelente
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