domingo, 15 de setembro de 2019

Comentários sobre as alterações da 5ª edição de A Gênese – Cap. IV



Comentários sobre as alterações da 5ª edição de A Gênese – Cap. IV

O Papel da Ciência na Gênese

Marco Milani

(Texto publicado no boletim Dirigente Espírita nº 173 - p.5)

     Trata-se de capítulo fundamental para se conhecer os limites e equívocos do conhecimento religioso baseado em sistemas absolutos de crença para a compreensão da realidade. Allan Kardec contextualiza, ainda, o uso das religiões como instrumentos de poder e dominação apoiados na fé cega e declarações normativas inquestionáveis por trazerem a roupagem de palavra divina.
     Contrapondo-se às asfixiantes imposições religiosas, o conhecimento produzido pelo método científico é caracterizado como aquele que pode romper as superstições e interpretações dogmáticas sem evidências para, efetivamente, promover a revelação das Leis da Natureza, em marcha segura e progressiva. Certamente, a Ciência, tanto no século XIX quanto no atual, não se propõe a apresentar verdades absolutas, mas a edificar o conhecimento baseado em fatos e na razão. A própria Ciência evolui e, necessariamente, para continuar a revelar a Natureza de maneira adequada, deve-se considerar o elemento espiritual.
     As religiões que não acompanharem os avanços científicos por estarem cristalizadas em crenças que colidem com os fatos destinam-se à autodestruição no tempo, pois somente o que estiver fundamentado na verdade se sustentará. Assim, como afirma Kardec, se as religiões se recusarem a caminhar com a Ciência, a Ciência prosseguirá sozinha.
Importante destacar que Kardec também não dogmatiza a Ciência, transformando-a em um oráculo infalível, mas compreendendo-a como um conjunto de conhecimentos em evolução produzidos por métodos racionais conforme as especificidades de seus objetos de estudo.
   Assim como em todos os capítulos do livro A Gênese em sua 5ª edição (1872) e posteriores, o capítulo IV sofreu alterações quando comparadas à edição original (1868). No caso, destacam-se quatro eliminações de trechos ou itens, apontados a seguir.
     O item 2 da edição original foi integralmente eliminado na 5ª edição.

A religião era, então, um freio poderoso para se governar; os povos se curvavam facilmente sob as potências invisíveis em nome das quais eram subjugados e das quais os governantes diziam ter seu poder, quando não se consideravam iguais a essas mesmas potências. Para dar mais força à religião era preciso apresentá-la como absoluta, infalível e imutável sem o que ela teria perdido sua ascendência sobre seres quase brutos, apenas nascendo para a razão. Não era preciso que ela pudesse ser discutida, não mais que as ordens de um soberano, daí o princípio da fé cega e da obediência passiva que tinham assim, na origem, sua razão de ser e sua utilidade. A veneração que se tinha pelos livros sagrados, quase sempre considerados como descendidos do céu, ou inspirados pela Divindade, impedia, por outro lado, todo exame. (A Gênese, cap. IV, i.2, 1868)

     A supressão do item 2 faz com que se perca a análise crítica de Kardec sobre o uso da religião como instrumento de poder e dominação atrelada à fé cega. Essa alteração, portanto, ainda que não afete o conteúdo doutrinário do capítulo, fragiliza a reflexão sobre esse problema que ocorre até os nossos dias.
     Outra alteração ocorreu no item 3 da edição original. O primeiro parágrafo, apresentado a seguir, foi integralmente cortado.

Da mesma maneira que para compreender e definir o movimento correlativo dos ponteiros de um relógio é preciso conhecer as leis que presidem o seu mecanismo, avaliar a natureza dos materiais e calcular a magnitude das forças envolvidas, para compreender o mecanismo do Universo é preciso conhecer as leis que regem todas as forças postas em ação nesse vasto conjunto. (A Gênese, cap. IV, i. 3, 1868)

     Considerando que o parágrafo eliminado introduzia o argumento lógico de Kardec sobre a necessidade de se conhecer as leis que regem as coisas e o Universo, ainda que não impacte negativamente o conteúdo doutrinário do restante do item ou do capítulo, tal supressão afeta o desenvolvimento das ideias do autor e priva o leitor de conhecer esse aspecto lógico.
     A terceira alteração foi a eliminação do trecho a seguir, presente no item 15 da edição original.
  
E isso não podia ser diferente, com as religiões pretendendo possuir, cada uma, sozinha, toda a verdade; uma afirmando-a de um modo, e outra, de maneira diversa, sem dar provas suficientes de suas afirmativas para converter a maioria. Na indecisão, o homem se restringiu ao presente.


     Apesar de não haver consequências doutrinárias significativas para a compreensão do item, novamente retira-se do leitor a oportunidade de conhecer a crítica às posturas dogmáticas e desprovidas de fundamentação nos fatos das religiões tradicionais. Essa constatação é relevante para diferenciar a proposta espírita e o próprio dinamismo doutrinário, o qual amplia o horizonte do conhecimento humano e lastreia-se no avanço científico. As questões filosóficas fundamentais (quem somos, de onde viemos e para onde iremos) podem, segundo Kardec, serem desvendadas mediante o progresso do conhecimento científico, deixando de estar restritas às discussões metafísicas nem as respostas serem artigos de fé.
     A última alteração de destaque foi a eliminação do parágrafo final do item 18 da edição original, o qual também encerra o capítulo, apresentado a seguir.

Quanto à solução definitiva, talvez jamais seja dado ao homem encontrá-la sobre a Terra, por se tratar de coisas que são segredos de Deus.

     O trecho eliminado sinaliza as próprias limitações do conhecimento humano em nosso estágio evolutivo. O capítulo encerra-se sem essa reflexão.

* Diretor do Departamento de Doutrina da USE-SP. Presidente da USE Regional de Campinas.

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