Comentários sobre as alterações
da 5ª edição de A Gênese – Cap. III
Marco
Milani
(Texto
publicado no boletim Dirigente Espírita nº 172 - p.5)
Assim
como em todos os demais capítulos da 5ª edição de A Gênese: os
milagres e as predições segundo o Espiritismo, o capítulo III,
intitulado O Bem e o Mal, teve parte de seu texto alterado e não há
evidências de que teria sido Allan Kardec o autor dessas
modificações, uma vez que o codificador desencarnou três anos
antes da publicação dessa versão e não deixou qualquer registro
de que estivesse atualizando a obra. Além do mais, algumas dessas
modificações fragilizam a compreensão ou representam contradições
doutrinárias, como demonstrado em análises anteriores dos capítulos
XIV, XV e XVIII, publicados em números anteriores do Dirigente
Espírita.
Dos
24 itens presentes no capítulo III da edição original, 16 sofreram
algum tipo de alteração na 5ª edição, como eliminação,
reordenamento ou adição de palavras, trechos ou parágrafos
inteiros.
Destaca-se
a eliminação integral do item 3, reproduzido a seguir, no qual
Kardec analisa e critica a crença de algumas denominações
religiosas sobre a existência de entidades criadas para a prática
do mal ou que retroagiram moralmente:
Segundo
uma doutrina, o Espírito do mal, criado bom, teria se tornado mau, e
Deus, para puní-lo, o teria condenado a permanecer eternamente mau,
dando-lhe, por missão, seduzir os homens para induzi-los ao mal.
Ora, podendo um único erro custar-lhe os mais cruéis castigos pela
eternidade, sem esperança de perdão, haveria aqui mais que uma
falta de bondade, seria uma crueldade premeditada porque, para tornar
a sedução mais fácil, e melhor ocultar a cilada, Satã seria
autorizado a se transformar em anjo de luz e a simular as próprias
obras de Deus até ao ponto de se enganar. Aí haveria mais
iniquidade e imprevidência da parte de Deus, porque dando a Satã
toda a liberdade para sair do império das trevas e de se entregar
aos prazeres mundanos, para a eles arrastar os homens, o provocador
do mal seria menos punido que as vítimas de suas astúcias, que
nelas caem por fraqueza, visto que, uma vez dentro do abismo, dele
não conseguem mais sair. Deus lhes recusa um copo de água para
saciar a sede, e durante toda a eternidade escuta, ele e seus anjos,
os gemidos dessas vítimas sem se deixar comover, enquanto permite a
Satã ter todos os prazeres que deseje. De todas as doutrinas sobre a
teoria do mal, esta é, sem dúvida, a mais irracional e a mais
injuriosa para a Divindade. (KARDEC, A Gênese, Cap. III, item 3, 1ª
edição, 1868)
Didaticamente,
Kardec recorria a exemplos para apresentar os argumentos lógicos
sobre os tópicos tratados. O item eliminado, acima, expressa um
desses exemplos para se discorrer sobre a origem do bem e do mal.
Essa
argumentação está diretamente vinculada ao capítulo IX do livro O
Céu e o Inferno, bem como se relaciona ao capítulo XI, de A Gênese,
o qual aborda a questão dos “anjos decaídos”.
A
não-retrogradação espiritual também relaciona-se às questões
118, 612 e 805, dentre outras, de O Livro dos Espíritos. Sob a
perspectiva da progressão espiritual, é inconcebível que um ser
perca as suas conquistas morais e seja punido por isso.
A
eliminação do item 3 talvez agrade aqueles que acreditem em ideias
antidoutrinárias como a metempsicose, assim como fazem os
roustanguistas, os quais abraçam suposições esdrúxulas de que
Espíritos que faliram em suas provas são forçados a reencarnar
como larvas (criptógamos carnudos) em mundos primitivos (J.B.
Roustaing – Os quatro evangelhos, Tomo 1, N.58).
O
item 19 de A Gênese, em sua 5ª edição, também foi mutilado
significativamente. Ao discorrer sobre a relação entre instinto e
inteligência, o trecho, a seguir, foi eliminado:
Todos
os homens passaram pelas fileiras das paixões; aqueles que não as
têm mais, que, por natureza, não são nem orgulhosos, nem
ambiciosos, nem egoístas, nem rancorosos, nem vingativos, nem
cruéis, nem coléricos, nem sensuais, que fazem o bem sem esforço,
sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque
progrediram na sequência das suas existências anteriores; eles
foram purgados do usagre. É injusto dizer-se que eles têm menos
mérito ao fazer o bem do que aqueles que precisam lutar contra as
suas tendências, é que estes já alcançaram a vitória e os outros
ainda não, mas, quando a alcançarem, eles serão iguais aos
primeiros: farão o bem sem pensar nele, como as crianças que leem
corretamente sem terem a necessidade de soletrar; são como dois
doentes dos quais um está curado e pleno de forças, enquanto que o
outro está convalescente e cambaleia ao caminhar; são, enfim, como
dois corredores dos quais um está mais perto do ponto de chegada que
o outro. (KARDEC, A Gênese, Cap. III, item 19, 1ª edição, 1868)
O
trecho acima desenvolve as ideias tratadas no item 19 e sua
eliminação, além de deixar o item muito curto, não se justifica
como ato de síntese.
Interessante
apontar que até a nota de rodapé que encerra o capítulo III sofreu
alterações. Foram acrescidos comentários contendo críticas
válidas ao materialismo, porém, com uma afirmação irreal de que o
fanatismo já teria sido extinto da humanidade.
*
Diretor do Departamento de Doutrina da USE-SP
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