domingo, 15 de setembro de 2019

Comentários sobre as alterações da 5ª edição de A Gênese – Cap. III


Comentários sobre as alterações da 5ª edição de A Gênese – Cap. III

Marco Milani

(Texto publicado no boletim Dirigente Espírita nº 172 - p.5)

     Assim como em todos os demais capítulos da 5ª edição de A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo, o capítulo III, intitulado O Bem e o Mal, teve parte de seu texto alterado e não há evidências de que teria sido Allan Kardec o autor dessas modificações, uma vez que o codificador desencarnou três anos antes da publicação dessa versão e não deixou qualquer registro de que estivesse atualizando a obra. Além do mais, algumas dessas modificações fragilizam a compreensão ou representam contradições doutrinárias, como demonstrado em análises anteriores dos capítulos XIV, XV e XVIII, publicados em números anteriores do Dirigente Espírita.
     Dos 24 itens presentes no capítulo III da edição original, 16 sofreram algum tipo de alteração na 5ª edição, como eliminação, reordenamento ou adição de palavras, trechos ou parágrafos inteiros.
     Destaca-se a eliminação integral do item 3, reproduzido a seguir, no qual Kardec analisa e critica a crença de algumas denominações religiosas sobre a existência de entidades criadas para a prática do mal ou que retroagiram moralmente:

Segundo uma doutrina, o Espírito do mal, criado bom, teria se tornado mau, e Deus, para puní-lo, o teria condenado a permanecer eternamente mau, dando-lhe, por missão, seduzir os homens para induzi-los ao mal. Ora, podendo um único erro custar-lhe os mais cruéis castigos pela eternidade, sem esperança de perdão, haveria aqui mais que uma falta de bondade, seria uma crueldade premeditada porque, para tornar a sedução mais fácil, e melhor ocultar a cilada, Satã seria autorizado a se transformar em anjo de luz e a simular as próprias obras de Deus até ao ponto de se enganar. Aí haveria mais iniquidade e imprevidência da parte de Deus, porque dando a Satã toda a liberdade para sair do império das trevas e de se entregar aos prazeres mundanos, para a eles arrastar os homens, o provocador do mal seria menos punido que as vítimas de suas astúcias, que nelas caem por fraqueza, visto que, uma vez dentro do abismo, dele não conseguem mais sair. Deus lhes recusa um copo de água para saciar a sede, e durante toda a eternidade escuta, ele e seus anjos, os gemidos dessas vítimas sem se deixar comover, enquanto permite a Satã ter todos os prazeres que deseje. De todas as doutrinas sobre a teoria do mal, esta é, sem dúvida, a mais irracional e a mais injuriosa para a Divindade. (KARDEC, A Gênese, Cap. III, item 3, 1ª edição, 1868)

     Didaticamente, Kardec recorria a exemplos para apresentar os argumentos lógicos sobre os tópicos tratados. O item eliminado, acima, expressa um desses exemplos para se discorrer sobre a origem do bem e do mal.
     Essa argumentação está diretamente vinculada ao capítulo IX do livro O Céu e o Inferno, bem como se relaciona ao capítulo XI, de A Gênese, o qual aborda a questão dos “anjos decaídos”.
     A não-retrogradação espiritual também relaciona-se às questões 118, 612 e 805, dentre outras, de O Livro dos Espíritos. Sob a perspectiva da progressão espiritual, é inconcebível que um ser perca as suas conquistas morais e seja punido por isso.
     A eliminação do item 3 talvez agrade aqueles que acreditem em ideias antidoutrinárias como a metempsicose, assim como fazem os roustanguistas, os quais abraçam suposições esdrúxulas de que Espíritos que faliram em suas provas são forçados a reencarnar como larvas (criptógamos carnudos) em mundos primitivos (J.B. Roustaing – Os quatro evangelhos, Tomo 1, N.58).
     O item 19 de A Gênese, em sua 5ª edição, também foi mutilado significativamente. Ao discorrer sobre a relação entre instinto e inteligência, o trecho, a seguir, foi eliminado:

Todos os homens passaram pelas fileiras das paixões; aqueles que não as têm mais, que, por natureza, não são nem orgulhosos, nem ambiciosos, nem egoístas, nem rancorosos, nem vingativos, nem cruéis, nem coléricos, nem sensuais, que fazem o bem sem esforço, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência das suas existências anteriores; eles foram purgados do usagre. É injusto dizer-se que eles têm menos mérito ao fazer o bem do que aqueles que precisam lutar contra as suas tendências, é que estes já alcançaram a vitória e os outros ainda não, mas, quando a alcançarem, eles serão iguais aos primeiros: farão o bem sem pensar nele, como as crianças que leem corretamente sem terem a necessidade de soletrar; são como dois doentes dos quais um está curado e pleno de forças, enquanto que o outro está convalescente e cambaleia ao caminhar; são, enfim, como dois corredores dos quais um está mais perto do ponto de chegada que o outro. (KARDEC, A Gênese, Cap. III, item 19, 1ª edição, 1868)

     O trecho acima desenvolve as ideias tratadas no item 19 e sua eliminação, além de deixar o item muito curto, não se justifica como ato de síntese.
     Interessante apontar que até a nota de rodapé que encerra o capítulo III sofreu alterações. Foram acrescidos comentários contendo críticas válidas ao materialismo, porém, com uma afirmação irreal de que o fanatismo já teria sido extinto da humanidade.


* Diretor do Departamento de Doutrina da USE-SP

Nenhum comentário:

Postar um comentário