quinta-feira, 1 de maio de 2025

Autoengano doutrinário

 

Autoengano doutrinário

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 44, mai/2025, p. 9-10

 

O Espiritismo, enquanto corpo teórico-doutrinário estruturado por Allan Kardec, notabilizou-se por propor o exercício constante da razão como fundamento indispensável para a adesão às suas ideias e princípios, caracterizando-se a fé raciocinada. Essa proposta, inovadora à época e ainda hoje profundamente desafiadora, delineia uma clara oposição ao tradicional dogmatismo religioso cego, que dispensa explicações ou comprovações em favor de explicações absolutas e inquestionáveis. No entanto, paradoxalmente, muitos adeptos do Espiritismo têm-se comportado exatamente como seguidores passivos, dirigidos não pelo discernimento lógico ou pelo exame racional dos fatos, mas pela autoridade de líderes carismáticos e místicos.

Essa contradição é especialmente intrigante quando se observa que, apesar de adotarem um comportamento típico das religiões tradicionais, as quais são caracterizadas pela aceitação acrítica das orientações dadas por figuras de destaque, tais adeptos frequentemente acreditam estar distantes desse padrão justamente por se intitularem espíritas. Há nesse fenômeno uma espécie de autoengano doutrinário, em que indivíduos se convencem de que, pelo simples fato de professarem uma doutrina que prega explicitamente a necessidade da análise crítica e racional de qualquer informação ou fenômeno, seja mediúnico ou não, estariam automaticamente imunizados contra formas de crença acrítica.

Contudo, a realidade tem mostrado que a identificação formal com os princípios espíritas não é garantia suficiente para assegurar uma prática verdadeiramente fundamentada na razão.

Esse fenômeno parece derivar, em parte, do comportamento humano em busca do conforto e segurança emocional, elementos frequentemente oferecidos pelos líderes dotados de carisma e aparente segurança espiritual.

Diante das dificuldades da vida cotidiana e das incertezas existenciais, torna-se tentador para muitos adeptos buscar refúgio em figuras religiosas capazes de oferecer soluções imediatas, reconfortantes e isentas de complexidade intelectual. O resultado disso é a formação de núcleos espíritas que se assemelham mais a comunidades religiosas tradicionais, em que a autoridade do dirigente, seja médium, palestrante ou escritor de renome, torna-se um elemento fundamental e raramente questionado.

Nesse contexto, líderes carismáticos frequentemente assumem papéis semelhantes aos de pastores em congregações religiosas convencionais, influenciando decisivamente o pensamento e o comportamento dos adeptos sob sua orientação.

O problema essencial não está, naturalmente, na existência de líderes ou no exercício legítimo da liderança espiritual, mas sim na abdicação consciente ou inconsciente do dever doutrinário de pensar e refletir individualmente. A consequência dessa abdicação é a cristalização de uma fé cega, muito semelhante àquela criticada veementemente por Kardec, que enfraquece o elemento distintivo do Espiritismo, qual seja, a liberdade e a responsabilidade de questionar, analisar e compreender antes de aceitar qualquer ideia como verdadeira.

Esse quadro tem levado muitos grupos espíritas a afastarem-se gradualmente da proposta original de Kardec, com crenças superficiais, voltada sobretudo para atender às demandas imediatas e quase lúdicas dos frequentadores. Nessas circunstâncias, frequentemente se valorizam discursos de autoajuda, relegando-se o estudo sério e metódico do Espiritismo a um plano secundário. Romances mediúnicos, relatos fantásticos e experiências mediúnicas não submetidas ao controle universal proposto por Kardec ganham espaço central nas reuniões, contribuindo para o aumento do fascínio por líderes capazes de fornecer respostas envolventes e, sobretudo, emocionalmente satisfatórias.

Perante esse cenário, torna-se necessário recordar constantemente aos adeptos espíritas a importância fundamental da fé raciocinada. O Espiritismo, como proposta filosófica, requer um permanente exercício intelectual de análise crítica, um esforço individual contínuo para compreender profundamente suas bases conceituais e para submeter todas as manifestações mediúnicas e conteúdos divulgados ao crivo da lógica, da coerência e da universalidade.

Tal atitude demanda maturidade intelectual e espiritual, exigindo que cada adepto assuma a responsabilidade plena por sua própria compreensão doutrinária, evitando a comodidade de terceirizar suas convicções.

Certamente, a existência de líderes carismáticos e místicos no movimento espírita não seria um problema se suas ações e discursos fossem consistentemente submetidos ao necessário exame racional proposto por Kardec.

O verdadeiro desafio reside em estimular uma cultura de estudo sério e constante, capaz de libertar os adeptos espíritas da postura passiva de dóceis ovelhas e levá-los a assumir a posição ativa, analítica e esclarecida que a doutrina promove. Somente através desse compromisso consciente com a razão é possível preservar a essência do Espiritismo, garantindo que seu diferencial mais significativo, a fé raciocinada, não seja debilitada por narrativas sedutoras de crendices e fantasias.

 


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