Autoengano doutrinário
Marco Milani
Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 44, mai/2025,
p. 9-10
O Espiritismo, enquanto corpo teórico-doutrinário
estruturado por Allan Kardec, notabilizou-se por propor o exercício constante
da razão como fundamento indispensável para a adesão às suas ideias e
princípios, caracterizando-se a fé raciocinada. Essa proposta, inovadora à
época e ainda hoje profundamente desafiadora, delineia uma clara oposição ao
tradicional dogmatismo religioso cego, que dispensa explicações ou comprovações
em favor de explicações absolutas e inquestionáveis. No entanto,
paradoxalmente, muitos adeptos do Espiritismo têm-se comportado exatamente como
seguidores passivos, dirigidos não pelo discernimento lógico ou pelo exame
racional dos fatos, mas pela autoridade de líderes carismáticos e místicos.
Essa contradição é especialmente intrigante quando
se observa que, apesar de adotarem um comportamento típico das religiões
tradicionais, as quais são caracterizadas pela aceitação acrítica das
orientações dadas por figuras de destaque, tais adeptos frequentemente
acreditam estar distantes desse padrão justamente por se intitularem espíritas.
Há nesse fenômeno uma espécie de autoengano doutrinário, em que indivíduos se
convencem de que, pelo simples fato de professarem uma doutrina que prega
explicitamente a necessidade da análise crítica e racional de qualquer informação
ou fenômeno, seja mediúnico ou não, estariam automaticamente imunizados contra
formas de crença acrítica.
Contudo, a realidade tem mostrado que a
identificação formal com os princípios espíritas não é garantia suficiente para
assegurar uma prática verdadeiramente fundamentada na razão.
Esse fenômeno parece derivar, em parte, do
comportamento humano em busca do conforto e segurança emocional, elementos
frequentemente oferecidos pelos líderes dotados de carisma e aparente segurança
espiritual.
Diante das dificuldades da vida cotidiana e das
incertezas existenciais, torna-se tentador para muitos adeptos buscar refúgio
em figuras religiosas capazes de oferecer soluções imediatas, reconfortantes e
isentas de complexidade intelectual. O resultado disso é a formação de núcleos
espíritas que se assemelham mais a comunidades religiosas tradicionais, em que
a autoridade do dirigente, seja médium, palestrante ou escritor de renome, torna-se
um elemento fundamental e raramente questionado.
Nesse contexto, líderes carismáticos frequentemente
assumem papéis semelhantes aos de pastores em congregações religiosas
convencionais, influenciando decisivamente o pensamento e o comportamento dos
adeptos sob sua orientação.
O problema essencial não está, naturalmente, na
existência de líderes ou no exercício legítimo da liderança espiritual, mas sim
na abdicação consciente ou inconsciente do dever doutrinário de pensar e
refletir individualmente. A consequência dessa abdicação é a cristalização de
uma fé cega, muito semelhante àquela criticada veementemente por Kardec, que
enfraquece o elemento distintivo do Espiritismo, qual seja, a liberdade e a
responsabilidade de questionar, analisar e compreender antes de aceitar
qualquer ideia como verdadeira.
Esse quadro tem levado muitos grupos espíritas a
afastarem-se gradualmente da proposta original de Kardec, com crenças superficiais,
voltada sobretudo para atender às demandas imediatas e quase lúdicas dos
frequentadores. Nessas circunstâncias, frequentemente se valorizam discursos de
autoajuda, relegando-se o estudo sério e metódico do Espiritismo a um plano
secundário. Romances mediúnicos, relatos fantásticos e experiências mediúnicas
não submetidas ao controle universal proposto por Kardec ganham espaço central
nas reuniões, contribuindo para o aumento do fascínio por líderes capazes de
fornecer respostas envolventes e, sobretudo, emocionalmente satisfatórias.
Perante esse cenário, torna-se necessário recordar
constantemente aos adeptos espíritas a importância fundamental da fé
raciocinada. O Espiritismo, como proposta filosófica, requer um permanente
exercício intelectual de análise crítica, um esforço individual contínuo para
compreender profundamente suas bases conceituais e para submeter todas as
manifestações mediúnicas e conteúdos divulgados ao crivo da lógica, da
coerência e da universalidade.
Tal atitude demanda maturidade intelectual e
espiritual, exigindo que cada adepto assuma a responsabilidade plena por sua
própria compreensão doutrinária, evitando a comodidade de terceirizar suas
convicções.
Certamente, a existência de líderes carismáticos e
místicos no movimento espírita não seria um problema se suas ações e discursos fossem
consistentemente submetidos ao necessário exame racional proposto por Kardec.
O verdadeiro desafio reside em estimular uma
cultura de estudo sério e constante, capaz de libertar os adeptos espíritas da
postura passiva de dóceis ovelhas e levá-los a assumir a posição ativa, analítica
e esclarecida que a doutrina promove. Somente através desse compromisso
consciente com a razão é possível preservar a essência do Espiritismo,
garantindo que seu diferencial mais significativo, a fé raciocinada, não seja debilitada
por narrativas sedutoras de crendices e fantasias.
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