Trecho extraído do artigo “Coerência doutrinária espírita: limites e desafios”, de autoria de Marco Milani, integrante do livro Coerência doutrinária na pesquisa espírita, coletânea publicada pelo CCDPE, em 2022.*
2.1 Um caso de incoerência doutrinária
Durante o período da liderança kardequiana, as tentativas de infiltrações de ideias incompatíveis com os princípios espíritas foram devidamente afastadas e esclarecidas com firmeza e fraternidade. Em texto publicado na edição de junho de 1866 da Revista Espírita, intitulado “Os evangelhos explicados pelo Sr. Roustaing”, Kardec assim se posiciona sobre a impertinência de se aceitar afoitamente opiniões como algo doutrinário sem passar pelo critério da universalidade:
(...) até nova ordem não daremos
às suas teorias nem aprovação nem desaprovação, deixando ao tempo o trabalho de
sancioná-las ou contraditá-las. Convém, pois, considerar essas explicações como
opiniões pessoais dos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser
justas ou falsas, e que, em todo caso, necessitam da sanção do controle
universal, e até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como
partes integrantes da Doutrina Espírita. (KARDEC, 1986d)
Em uma de suas últimas publicações, no livreto “Catálogo racional de obras para se fundar uma biblioteca espírita”, Kardec relaciona, além dos livros fundamentais, outros voltados ao estudo da temática, mas que não são, necessariamente, espíritas. Dentre os livros elencados está “Os quatro evangelhos”, de autoria de Roustaing, o qual possui a seguinte ressalva em Nota:
A teoria formulada nesta obra
sobre a natureza fluídica do corpo de Jesus, que não teria nascido e sofrido
senão em aparência, é a mesma dos docetistas e dos apolinaristas dos primeiros
séculos da Era Cristã. (Sobre essa teoria, vide A Gênese segundo o Espiritismo,
capítulo XV, nº. 64 e 68.) (KARDEC, 2000)
A desencarnação de Kardec ocorreu no final do mês e
março de 1869 e o Comitê Central, na forma proposta, não foi concretizado, logo
inexistiu, desde então, um órgão formal com legitimidade e reconhecimento
generalizados dos adeptos para o direcionamento de análises e debates sobre
ideias e conceitos estranhos ao corpo teórico, assim como inexistiram
congressos com representatividade para tal função.
Paradoxalmente, algumas instituições e adeptos
brasileiros abraçaram o roustainguismo como proposta espírita válida, mesmo
contrariando princípios doutrinários como a não retrogradação evolutiva do
Espírito e a natureza carnal do corpo de Jesus. A Federação Espírita
Brasileira, por exemplo, além de traduzir, editar e divulgar a obra Os quatro
evangelhos, de J. B. Roustaing, no começo do século XX inseriu em seu estatuto
a prática do estudo dessa obra (QUINTELLA, 2022).
A adoção de obra mediúnica de fonte única e sem
critérios de legitimação e validação do conteúdo é um grave desvio metodológico
perante a universalidade do ensino dos Espíritos e surpreende que seja aceita
de maneira passiva e acrítica por pessoas que se autodenominam espíritas.
Trata-se de caso de incoerência doutrinária.
Conforme o item 66, do Capítulo 15, de A Gênese, Kardec reitera que o corpo de Jesus foi carnal e, se não o fosse, tratar-se-ia de vão simulacro. Uma tentativa indireta de justificar a aceitação do desvio roustanguista sobre o corpo fluídico é encontrada em Nota desse item 66, constante na edição traduzida da 5ª edição francesa por Guillon Ribeiro, em que a Editora FEB assim se posicionou:
Nota da Editora: Diante das
comunicações e dos fenômenos surgidos após a partida de Kardec, concluiu-se que
não houve realmente vão simulacro, como igualmente não houve simulacro de
Jesus, após a sua morte, ao pronunciar as palavras que foram registradas por
Lucas (24:39): — “Sou eu mesmo, apalpai-me e vede, porque um Espírito não tem
carne nem osso, como vedes que eu tenho”. (KARDEC, 2013)
Nas últimas décadas, diversos autores brasileiros expuseram as inconsistências roustanguistas e a respectiva incompatibilidade com os princípios e valores espíritas, como por exemplo, Abreu Filho e Herculano Pires (1973), Gélio Lacerda Silva (1995) e Nazareno Tourinho (1999). Ainda assim, o direcionamento para o estudo da obra de Roustaing só deixou de ser cláusula estatutária da FEB em 2019.
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