terça-feira, 20 de setembro de 2022

Liberdade de consciência e fé raciocinada: a relação necessária

 


Liberdade de consciência e fé raciocinada: a relação necessária

 
Marco Milani
 
(Texto publicado na Revista Dirigente Espírita – Ed. set/out 2022, p. 40-41)
 

Allan Kardec, no terceiro diálogo descrito no Capítulo I do livro O que é o Espiritismo, afirma que “a liberdade de consciência é consequência da liberdade de pensar, que é um dos atributos do homem; e o Espiritismo, se não a respeitasse, estaria em contradição com os seus princípios de liberdade e tolerância”.

O respeito aos direitos e às escolhas individuais caracterizam, portanto, a situação mais avançada no cenário da convivência humana, ainda que seja plenamente compreensível o antagonismo de opiniões e posições sobre os mais variados assuntos polêmicos sob a perspectiva dialética. O embate sincero e fraterno de ideias, não de pessoas, fomenta o progresso do conhecimento, culminando por influenciar as leis e os costumes.

Conforme a Organização das Nações Unidas[i], a liberdade de consciência abrange toda a ética e valores que um ser humano preza, seja de natureza religiosa ou não. Não há limitações admissíveis a esta liberdade, desde que as convicções pessoais não sejam impostas aos outros nem os prejudiquem. Embora possa parecer evidente, o respeito pela liberdade de consciência é difícil de alcançar, pois tende-se a criticar as convicções alheias do que se defender o direito de todos às suas próprias convicções.

A Ciência é chamada para participar ativamente do desenvolvimento humano, ainda que não constitua-se em corpo homogêneo. Ao contrário, inúmeros grupos de pesquisa concorrem entre si, objetivando a produção de conhecimento servindo-se de métodos mais objetivos e sem a pretensão da verdade absoluta. O cientista, por sua vez, carrega crenças e valores particulares.

A doutrina espírita, estruturada sob um método racional orientado para a universalidade do ensino obtido por diferentes fontes mediúnicas e convergindo em sua essência de conteúdo, apresenta notável consistência interna. Os princípios espíritas expressam a diretriz conceitual que sustenta a argumentação lógica e coerente sobre a natureza, origem e destino dos Espíritos, e suas relações com o mundo corporal.

Afastando-se do formalismo e estrutura hierárquica das igrejas cristãs tradicionais, as quais sustentam-se em artigos de fé inquestionáveis e impõem aos respectivos profitentes práticas e condutas para uniformizar o comportamento considerado adequado, a fé proposta pelo Espiritismo alia-se à razão e convida os adeptos a questionar, conhecer, ponderar e finalmente crer, sem estagnar-se, mas em contínuo avanço do saber.

Nesse sentido, o verdadeiro espírita não tem a sua vontade subordinada a líderes ou a instituições, pois tem a liberdade de escolher e agir conforme a própria consciência, não por algum sentimento de culpa ou constrangimento, mas racionalmente voltado a atender os seus interesses e necessidade de aprimoramento moral e intelectual.

O panorama cultural espírita, entretanto, apresenta singularidades. Se, por um lado, o Espiritismo floresceu em terras brasileiras e angariou respeito e popularidade, por outro lado, enfrenta os desafios esperados de um ambiente marcado por forte sincretismo religioso, uma vez que parcela significativa dos adeptos carrega hábitos e conceitos cuja depuração não ocorre prontamente.

A cadência diferenciada dos participantes do movimento espírita nacional é perfeitamente compreensível, apesar de que o descompasso quanto à maturidade doutrinária pode gerar obstáculos para o entendimento e prática do ensino dos Espíritos.

O combate ao materialismo e ao relativismo moral pautam a essência da proposta doutrinária, objetivando a formação do homem de bem e, especificamente, dos bons espíritas.

A unidade doutrinária, tão valorizada por Kardec para o futuro do Espiritismo sem cismas nem fragmentação em seitas personalistas, só pode ser obtida, entretanto, pela devida compreensão dos princípios e valores espíritas, embasando-se na fé raciocinada. Não basta ter a intenção de amar, mas deve-se saber e efetivamente amar. Por isso a orientação do Espírito de Verdade para nos amarmos e igualmente nos instruirmos.

Os princípios espíritas, validados pela universalidade dos ensinos, não apresentam contradições e, por isso mesmo, não podem ser compreendidos misturando-os com conceitos falaciosos ou fantasiosos. A liberdade de consciência direciona o indivíduo ao caminho que conseguir trilhar, mas não lhe dá o direito de desconfigurar a doutrina espírita conforme seus interesses e limitações, para acomodar as suas convicções pessoais.

Não existem, dessa maneira, diferentes “espiritismos”, mas apenas um. O que varia é o entendimento e prática do Espiritismo. Logo, há uma única doutrina espírita, mas diferentes graus de maturidade doutrinária e cada indivíduo se expressará conforme a própria consciência.

Certamente, a postura coerente deve pautar a conduta do espírita perante qualquer fato ou informação, permanecendo aberto ao exame do contraditório e aceitação do que for, efetivamente, comprovado.

A fé raciocinada, adequadamente vivenciada, faz com que o adepto reconheça e valorize o ensino doutrinário apresentado por Kardec e que foi validado pelo critério da universalidade, ao invés de assumir precipitadamente como verdade opiniões de encarnados ou desencarnados que careçam de fundamentação metodológica e evidenciação.


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