A interpretação lúdica do Espiritismo
Marco
Milani
Texto
publicado na Revista Harmonia, jul/2025
Um fenômeno preocupante vem se consolidando no Movimento Espírita
Brasileiro nas últimas décadas: a transformação do Espiritismo em uma doutrina
de consumo literário emocional, guiada por narrativas fantasiosas, sem rigor
doutrinário e, em muitos casos, completamente descolada dos critérios de
validação estabelecidos por Allan Kardec. Trata-se daquilo que podemos chamar
de uma "interpretação lúdica do Espiritismo", em que o conteúdo
doutrinário é tratado como um conjunto de histórias para entretenimento e não
como um corpo de conhecimento filosófico, científico e moral.
Essa tendência se reflete na aceitação quase cega de informações
contidas em romances mediúnicos e obras de caráter claramente ficcional, cujos
conteúdos, apesar de frequentemente bem-intencionados, carecem de análise
crítica, de fundamentação lógica e, principalmente, do aval metodológico da
universalidade do ensino dos Espíritos, princípio que Kardec definiu como pedra
angular da segurança doutrinária. Ignora-se que o Espiritismo não é o que um ou
outro Espírito, ou médium, afirma isoladamente, mas sim o resultado de um
processo coletivo, controlado, racional e convergente de ensino espiritual.
Infelizmente, muitos adeptos aceitam como verdades doutrinárias
conceitos que surgiram em obras psicografadas de grande apelo comercial, sem
qualquer preocupação em confrontá-los com os fundamentos estabelecidos na
Codificação. Cria-se, assim, um cenário em que argumentos de autoridade,
baseados no prestígio do médium ou na popularidade do Espírito comunicante,
substituem o critério da fé raciocinada e o estudo comparativo e crítico. Essa
postura, além de perigosa, fragiliza o movimento espírita, tornando-o
vulnerável a mistificações, sincretismos e desvios conceituais.
O próprio Kardec, em diversas passagens de suas obras e especialmente
na introdução de O Evangelho segundo o Espiritismo, advertiu contra o
perigo de se aceitar ensinamentos particulares como expressão da doutrina. Ele
reforça que os Espíritos superiores, por serem coerentes e esclarecidos, não se
contradizem nas questões fundamentais, e que o controle universal do ensino dos
Espíritos é a garantia contra os erros individuais. O Espírito Erasto, por sua
vez, também alertou sobre o risco de que uma única teoria falsa, aceita como
verdade, poderia ser a base para a construção de um sistema inteiro de ideias
equivocadas.
Ao transformar o Espiritismo em uma sucessão de histórias de efeito
emocional, com descrições fantásticas de um mundo espiritual moldado à imagem
dos desejos e expectativas humanas, o Movimento Espírita abre mão de sua missão
educativa e libertadora de consciências. Temas como colônias espirituais
estruturadas à semelhança de cidades terrenas, Espíritos que mantêm funções
fisiológicas humanas, processos de gestação espiritual e tantos outros
conceitos que jamais passaram pelo crivo da universalidade tornaram-se, para
muitos, dogmas modernos de um Espiritismo romanceado e desconectado de suas
raízes científicas e filosóficas.
O resultado desse processo é o crescimento de um público espírita cada
vez mais apegado ao emocionalismo, ao apelo místico e ao consumo acrítico de
narrativas, em detrimento do estudo sistemático das obras básicas e da formação
de um pensamento doutrinário sólido. A fé raciocinada, princípio fundamental da
Doutrina Espírita, vai sendo substituída por uma fé literária, baseada na
emoção e na autoridade de médiuns populares.
A superação desse cenário só será possível com a valorização do estudo
sério, da pesquisa comparada e da revalorização da metodologia kardequiana como
bússola segura. É preciso resgatar o verdadeiro sentido do Espiritismo: uma
doutrina de conhecimento racional, de investigação moral e científica, cujo
objetivo maior é a emancipação intelectual e espiritual do ser humano, e não a
criação de mitologias modernas para entretenimento lúdico.
Respeitar o legado de Kardec significa, antes de tudo, ter o
compromisso com a verdade, com a razão e com a responsabilidade doutrinária.
Apenas assim o Espiritismo continuará sendo o que sempre foi: um farol de
esclarecimento, e não uma coleção de histórias agradáveis, mas perigosamente
ilusórias.
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