A Excelência Metodológica do
Espiritismo*
Silvio Seno Chibeni
Seções:
1. Introdução
2. O Espiritismo é
científico
3. "O Espiritismo
não é da alçada da ciência"
4. As deficiências das
chamadas "ciências psi"
5. O Espiritismo é
religioso
1. Introdução
O Espiritismo não
pode considerar crítico sério senão aquele que tudo tenha visto, estudado e
aprofundado com a paciência e a perseverança de um observador consciencioso;
que do assunto saiba tanto quanto o adepto mais esclarecido; que haja, por
conseguinte, haurido seus conhecimentos algures, que não nos romances da
ciência; aquele a quem não se possa opor fato algum que
lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não tenha cogitado e cuja
refutação faça, não por mera negação, mas por meio de outros argumentos mais
peremptórios; aquele, finalmente, que possa indicar, para os fatos averiguados,
causa mais lógica do que a que lhe aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está
por aparecer.
Allan Kardec, Le Livre des
Médiuns, § 14, n. 8. [nota
1]
Ao procurarmos aplicar esses critérios
para a caracterização de um crítico legítimo do Espiritismo a cada um daquele
que o têm pretendido ser durante os mais de cento e vinte anos que se passaram
desde que Allan Kardec os enumerou, verificamos, facilmente e sem possibilidade
de erro, que mesmo hoje tal crítico "ainda está para
aparecer", em patente demonstração da excelência metodológica do
Espiritismo, da solidez de seus fundamentos, de sua superioridade relativamente
aos demais sistemas, doutrinas, teorias que com ele têm em comum o mesmo objeto
de estudo, ou seja, a existência e a natureza do elemento espiritual.
Essa tese foi tão lucidamente defendida
pelo próprio Kardec em várias de usas obras que acreditamos redundantes
quaisquer argumentações posteriores. Nosso propósito aqui será, portanto, tão
unicamente o de relembrar alguns dos aspectos já considerados pelo Codificador
da Doutrina Espírita, comentando-os dentro do contexto de certas dificuldades
encontradas por alguns espíritas quando da análise comparativa do Espiritismo
com "sistemas" alternativos.
Não é inexpressivo o número de
indivíduos e instituições ditos espíritas empenhados na busca de
"novidades" que possam, segundo pensam, "atualizar" a
Doutrina, dar-lhe "fundamentação científica", "harmonizá-la às
conquistas da Ciência". Nesse sentido, procuram ressaltar e dar cobertura
- inclusive através de periódicos espíritas, ciclos de palestras, etc - a
pesquisadores das chamadas "ciências psi", notadamente aqueles
detentores de títulos acadêmicos. Tentaremos, dentro das limitações de espaço
de um artigo, mostrar que tais atitudes decorrem de uma injustificável inversão
de valores, prejudicial tanto ao Movimento Espírita como ao próprio
desenvolvimento da Doutrina e do conhecimento humano em geral.
2. O Espiritismo é científico
O Espiritismo é uma ciência que trata
da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o
mundo corporal.
Allan Kardec, Qu'est-ce
que le Spiritisme, Preâmbulo.
Evidentemente, o estatuto científico de
uma teoria não pode ser decidido através da mera deliberação de se definir como
uma "ciência". Esse atributo é inerente à natureza intrínseca da
teoria, e não à denominação que se lhe dê.
A tarefa de determinar quais as
características de uma teoria são necessárias e suficientes ao seu
enquadramento na categoria de ciência cabe à sub-área da Filosofia intitulada Filosofia
da Ciência. Essa disciplina, assim como outros ramos do saber, vem
evoluindo constantemente. Em seu caso específico, progressos essenciais
ocorreram no século XX, e , mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os
trabalhos de vários filósofos, entre os quais Karl Popper, Willard Quine,
Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Imre Lakatos, evidenciaram graves problemas na
concepção de ciência que prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito
freqüente encontrar-se entre os não filósofos.
A compreensão dessa visão
"antiga" de ciência, de suas várias dificuldades, dos argumentos
avançados por esses filósofos e das novas concepções que propuseram requer
estudos especializados de muitos anos, não podendo pois ser avançada dentro de
um artigo, por maior que seja sua extensão. Em trabalho anterior tivemos
ocasião de tentar fornecer uma tosca idéia dessas questões. Procuraremos aqui
relembrar algo do que ali foi exposto, a fim de dar substância à nossa presente
argumentação. [nota
2]
Muito simplificadamente, poderíamos
dizer que pelo menos desde o surgimento da ciência moderna, por volta do século
XVII, acreditava-se que a Ciência consistia na catalogação neutra de um grande
número de "fatos", dos quais então resultariam, de maneira
"espontânea", certa e infalível, as leis gerais que o regem; a
reunião de tais leis constituiria então uma teoria científica.
Conforme mencionamos, essa visão
"clássica" de ciência mostrou-se insustentável. Percebeu-se que a
descrição, busca e classificação dos fatos necessariamente envolve
pressuposições teóricas de um tipo ou de outro; que nenhuma lei teórica pode
resultar lógica e infalivelmente de um conjunto de fatos, qualquer que ele
seja; que uma teoria científica não é um simples amontoado de leis, sendo,
antes, uma estrutura dinâmica complexa, na qual participam elementos de
diversas naturezas, como resultados observacionais, hipóteses livremente
concebidas, regras para o desenvolvimento futuro da teoria, decisões
metodológicas, fragmentos de outras teorias etc.
Imre Lakatos sistematizou as novas
idéias surgidas na Filosofia da Ciência, propondo que a atividade científica
desenvolve-se em torno do que denominou "programa científico de
pesquisa". [nota
3] Um tal programa de pesquisa consiste, em termos
simplificados, de um "núcleo rígido" de hipóteses teóricas básicas,
suplementado por um "cinturão protetor" de hipóteses auxiliares, que
serve para ligar e ajustar o núcleo aos fenômenos de que a ciência trata. A
cada programa ainda estão associadas duas "heurísticas", uma
"negativa", que é a decisão metodológica de se manter inalteradas as
hipóteses do núcleo, e outra "positiva", que é um conjunto de
sugestões ou idéias de como mudar ou desenvolver o cinturão protetor de modo
que o programa dê conta de novos fenômenos e explique os já conhecidos de
maneira mais precisa. Um programa de pesquisa é dito "progressivo"
caso leve sistematicamente à descoberta de novos fatos, que sejam por ele
explicados; caso contrário, será dito "degenerante".
Tomando o exemplo de um dos mais bem
sucedidos programas de pesquisa da Física, a Mecânica Newtoniana, vemos que
possui um núcleo rígido formado pelas três leis newtonianas do movimento e pela
lei da gravitação universal, que a heurística negativa do programa recomenda
sejam mantidas inalteradas: eventuais discrepâncias com a experiência devem ser
eliminadas através de ajustes nas hipóteses auxiliares do cinturão protetor.
Esse processo ocorreu várias vezes durante o desenvolvimento do programa, como
quando, no século XIX, se verificou que as previsões teóricas para a trajetória
do planeta Urano conflitavam com os dados da observação astronômica; ao invés
de imputar esse desvio a possível falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se
que deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória do
planeta; mais tarde, foi, de fato, observada a existência desse corpo, o
planeta Netuno. Assim como nesse episódio, a conjunção das heurísticas negativa
e positiva do programa newtoniano levou à inúmeros desenvolvimentos: novas
teorias ópticas, novos aparelhos e técnicas de observação, criação de novos
ramos da Matemática etc. A partir do início de nosso século, porém, o programa
tornou-se degenerante, por motivos vários que não cabe expor aqui, vindo a ser
substituído pelos programas das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica.
Olhando agora para o Espiritismo, vemos
que traz em si todas as características de um programa de pesquisa progressivo,
sendo, portanto, genuinamente científico, segundo o critério lakatosiano.
Possui um núcleo rígido formado pelo
princípio da existência de uma "inteligência suprema, causa primária de
todas as coisas", dotada da suprema justiça e bondade; pela lei de causa e
feito; pela imortalidade dos seres vivos; por sua evolução ilimitada; pela
existência do livre arbítrio, a partir de determinado estágio evolutivo. Desse
núcleo pode-se, com o auxílio da lógica ("raciocínio") e de assunções
auxiliares, deduzir ("explicar") a infinidade de fenômenos de que
trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos e anímicos, a evolução dos seres,
seus estados psicológicos, sua condição após a morte etc. Todos esses fato,
analisados extensiva e objetivamente pelo Espiritismo, embasam e sancionam o
corpo de seus princípios teóricos; este, a seu turno, concatena, torna
inteligíveis, explica aqueles fatos.
Allan Kardec percebeu, em admirável
antecipação às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, a importância
fundamental dessa "simbiose" entre fenômeno e teoria, e expendeu
extensos comentários sobre ela em várias de suas obras. Os três capítulos
iniciais da primeira parte de O Livro dos Médiuns, por exemplo, são
uma obra prima de argumentação filosófica que, embora visando à elucidação de
uma questão ligeiramente diferente, contém valiosos elementos relevantes ao
assunto que estamos analisando. Comecemos por estas considerações do Parágrafo
19:
É crença geral que, para convencer,
basta apresentar fatos. Esse, com efeito, parece o caminho mais lógico.
Entretanto, mostra a experiência que nem sempre é o melhor, pois que a cada
passo se encontram pessoas que os mais patentes fatos absolutamente não
convenceram. A que se deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.
No Parágrafo 29 Kardec volta ao ponto:
Podemos dizer que, para a maioria dos
que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm.
Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das
leis conhecidas, maior oposição encontram e isto por uma razão muito simples: é
que todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção
racional. Cada um a considera de seu ponto de vista e a explica a seu modo
[...].
Essa "sanção racional" é a
que advém da explicação dos fatos através da teoria. No Parágrafo 34, após
ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera,
por outro lado, que de dez pessoas novatas que assistam a uma sessão de
experimentação espírita "nove sairão sem estar convencidas e algumas mais
incrédulas do que antes, por não terem as experiências correspondido ao que
esperavam". Prossegue então Kardec:
O inverso se dará com as que puderem
compreender os fatos, mediante antecipado conhecimento teórico. Paras estas
pessoas, a teoria constitui um meio de verificação, sem que coisa alguma as
surpreenda, nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se
produzem e que não se lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a
inteligência prévia dos fatos não só as coloca em condições de se aperceberem
de todas as anomalias, mas também de apreenderem um sem número de
particularidades, de matizes, às vezes muito delicados, que escapam ao
observador ignorante.
Considerações interessantes nesse mesmo
sentido encontram-se também em O que é o Espiritismo. No diálogo
com o Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo) Kardec pondera, em resposta à
solicitação que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:
E julgais que isto vos baste para
poder, ex professo, falar de Espiritismo? Como poderíeis
compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las, quando não estudaste
os princípios em que elas se baseiam? Como apreciaríeis o resultado,
satisfatório ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a
fundo a metalurgia?
Mais adiante, no diálogo com o Céptico
(Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Elementos de convicção") Kardec
coloca a questão em termos explícitos:
Há duas coisas no Espiritismo: a parte
experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os
dias visitado por pessoas que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu,
pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das
manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência; eles a
vêem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto possa satisfazer
às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem
que, supondo não existissem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser
sempre a que melhor resolve uma multidão de problemas reputados insolúveis.
Quantos me disseram que essas idéias
estavam em germe no seu cérebro, conquanto em estado de confusão. O Espiritismo
veio coordená-las, dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de
luz. É o que explica o número de adeptos que a simples leitura de O
Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número seria o que é
hoje, se nunca tivéssemos passado das mesas girantes e falantes ?
A primeira sentença que destacamos
revela uma vez mais que Kardec localizava o caráter científico do Espiritismo
na "doutrina", na sua "parte filosófica", que, no contexto
de nossa análise, deve ser entendido como aquilo a que vimos denominando
"teoria". Os fatos em si não constituem a ciência.
Nosso segundo destaque mostra que
Kardec já entendia o papel da teoria como dando "corpo", ou seja,
coesão, inteligibilidade, aos fenômenos, que é a tarefa que Lakatos atribui aos
princípios teóricos do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo
rígido.
No decorrer das próximas seções a tese
da cientificidade do Espiritismo pela qual vimos argumentando receberá
indiretamente mais elementos de comprovação.
3. "O Espiritismo não é da alçada da Ciência"
A frase que serve de título a esta
seção foi extraída do Item VII da magnífica peça "Introdução ao Estudo da
Doutrina Espírita", que Kardec fez figurar como introdução de O
Livro dos Espíritos. Esse item trata especificamente da relações entre a
Doutrina Espírita e a Ciência, devendo esta ser entendida aqui como o conjunto
das ciências ordinárias, "oficiais", das academias, tal como a
Física, a Química e a Biologia. [nota
4]
Apesar da clareza e da robustez
argumentativa com que Allan Kardec abordou esse assunto, não somente nessa
seção de O Livro dos Espíritos, mas também em outras de suas obras,
especialmente em O que é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns e A
Gênese, Os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, curiosamente
observam-se ainda hoje muitos equívocos em sua apresentação, mesmo por parte de
espíritas. Destarte, mais uma vez repetimos que não acrescentando nada ao que
já disse o preclaro Codificador, mas apenas relembrando seus argumentos. [nota 5]
Começaremos notando que a afirmação de
Kardec em consideração vem, no texto, precedida pela palavra portanto,
o que mostra que, seguindo a regra que invariavelmente adotou, Kardec ofereceu
um argumento à assertiva, que, dada a sua importância, não
poderia ser postulada dogmaticamente.
Esse argumento encontra-se no próprio
parágrafo que contém a assertiva em discussão:
As ciências ordinárias assentam nas
propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente; os
fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade
própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos
caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas de mesma forma;
requerem condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-la aos
processos comuns de investigações é estabelecer analogias que não existem. A
Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para pronunciar
na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o
seu julgamento, favorável ou não, nenhum peso poderá ter.
É admirável a simplicidade do
argumento: o Espiritismo e a Ciência tratam de domínios diferentes de
fenômenos: o primeiro dos relativos ao elemento espiritual, a segunda
daqueles concernentes ao elemento material. Têm, portanto, métodos específicos
e objetivos distintos, não cabendo, pois, julgamentos recíprocos.
Notemos que não se pode confundir o
fato de o Espiritismo ser uma ciência - o que procuramos
mostrar na seção anterior - com a assunção falsa de que ele pertence ao domínio
da Ciência(ou seja, da Física, da Química e da Biologia).
Um pouco adiante, Kardec enfatiza:
Repetimos mais uma vez que, se os fatos
a que aludimos se houvessem reduzido ao movimento mecânico dos corpos, a
indagação da causa física desse fenômeno caberia no domínio da Ciência; porém,
desde que se trata de uma manifestação que se produz com exclusão das leis de
Humanidade, ela escapa à competência da ciência material, visto não poder
exprimir-se nem por algarismos, nem pela força mecânica.
Estudando domínios diferentes e
complementares, "O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente",
conforme destacadamente exarou Kardec no Parágrafo 16 do Capítulo I de A
Gênese.
Antes de prosseguirmos, vejamos como
Kardec reapresenta o argumento em estudo em O que é Espiritismo.
Ali, o assunto é tratado extensivamente. Na décima quinta resposta ao Crítico
(Cap. I, Primeiro Diálogo), Kardec lembra uma vez que
os fenômenos espíritas diferem
essencialmente dos das ciências exatas: não se produzem à vontade; é preciso
que os colhamos de passagem; é observando muito e por muito tempo que se
descobre uma porção de provas que escapam à primeira vista, sobretudo, quando
não se está familiarizado com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda
mais quando se vem com o espírito prevenido.
E, na resposta seguinte, enfatiza:
Não se pode fazer um curso de
Espiritismo experimental como se faz um de Física ou de Química, visto que
nunca se é senhor de produzir os fenômenos espíritas à vontade, e que as
inteligências que lhe são o agente fazem, muitas vezes, frustrarem-se todas as
nossas previsões.
No diálogo com o Céptico (Cap. I,
Segundo Diálogo, seção "Oposição da Ciência") Kardec enfoca outro
aspecto da questão, igualmente já tratado no referido Item VII da Introdução de O
Livro dos Espíritos. Estabelecida a independência da Ciência e do
Espiritismo, resta ver se estariam os cientistas mais
autorizados que as demais pessoas a se pronunciar sobre o Espiritismo. Tal
questão é ainda atual, já que vemos muitos espíritas na posição em que Kardec
situa o Céptico do diálogo: afligem-se por buscar o apoio dos cientistas.
"Admito perfeitamente", diz o Céptico, "que eles não são infalíveis;
mas não é menos verdade que, em virtude do seu saber, sua opinião vale alguma
coisa, e que, se ela estivesse do vosso lado, daria grande peso ao vosso
sistema".
A réplica de Kardec vem, como sempre,
vazada no bom senso e na lógica:
Concordai, também, que ninguém pode ser
bom juiz naquilo que está fora da sua competência.
Se quiserdes edificar uma casa,
confiaríeis esse trabalho a um músico?
Se estiverdes enfermo, far-vos-ei
tratar por um arquiteto?
Quando estais a braços com um processo,
ides consultar um dançarino?
Finalmente, quando se trata de uma
questão de teologia, alguém irá pedir solução a um químico ou a um astrônomo?
Não, cada um em sua especialidade.
As ciências vulgares repousam sobre as
propriedades da matéria, que se pode, à vontade, manipular.; os fenômenos que
ela produz têm por agentes forças materiais.
Os do Espiritismo têm, como agentes,
inteligências que possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas
aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório
e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência
propriamente dita.
A Ciência enganou-se quando quis
experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida,
como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois,
sem ir mais longe, concluiu pela negação, juízo temerário que o tempo se
encarrega de ir emendando diariamente, como já fez com tantos outros [...].
As corporações científicas não devem,
nem jamais deverão, pronunciar-se nesta questão; ela está tão fora dos limites
do seu domínio como a de decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro
tomá-las aqui por juiz.
Kardec mostrou que nem o estudo do
Espiritismo cabe à Ciência, nem estão os cientistas em posição privilegiada
para sobre ele opinar. Foi mesmo além: dada a freqüente distorção que o
envolvimento com sua especialidade impões à sua maneira de apreciar as coisas,
suas opiniões podem até mesmo estar mais sujeitas a equívocos. No referido item
de O Livro dos EspíritosKardec considera:
Aquele que se fez especialista prende
todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis sempre
desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da
fraqueza humana.
Nada obsta, evidentemente, a que os
cientistas se interessem, enquanto homens, pelo Espiritismo, e o
estudem e avaliem nessa condição. Um pouco abaixo do trecho que acabamos de
transcrever, Kardec pronuncia-se nesse sentido:
O Espiritismo é o resultado de uma
convicção pessoal, que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir,
abstração feita de sua qualidade de cientistas [...].
Quando as crenças espíritas se houverem
difundido, quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se
dará com o que tem acontecido com todas as idéias novas que hão encontrado
oposição: os cientistas se renderão à evidência. Lá chegarão, individualmente,
pela força das coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos
especiais, para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não lhes
está nem nas atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os
que, sem assunto prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e
escarnecem de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu
com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.
Ainda um último aspecto está envolvido
nas relações entre o Espiritismo e a Ciência: a necessidade que ele tem de não
entrar em descompasso com o progresso científico.
O local clássico onde Kardec tratou
desse ponto é o Parágrafo 55 do Capítulo I de A Gênese. Começa
considerando que "apoiando-se em fatos [a revelação espírita] tem que ser,
e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva". Esse caráter
essencial do Espiritismo resulta de sua natureza genuinamente científica:
embora o núcleo de seus princípios básicos permaneça inalterado,
complementações e ajustes nas assunções auxiliares do cinturão protetor o
colocam sempre em concordância com as novas descobertas. É isso que se tem
verificado ao longo da história do Espiritismo. O núcleo doutrinário fundamental
contido em O Livro dos Espíritos foi, nas mãos equilibradas do
próprio Kardec, desdobrado e ampliado nos estudos que resultaram nas demais
obras da Codificação. Hoje em dia, a vasta literatura mediúnica legitimamente
espírita ampliou, por exemplo, os informes sobre o mundo espiritual. E isso,
repetimos, sem confronto com os princípios básicos.
No entanto, é preciso cautela no
entendimento da progressividade do Espiritismo.
Primeiro, ela deve ocorrer de acordo
com a heurística positiva do próprio programa espírita, sem recurso
a elementos estranhos, venham de onde vierem, sob o risco de este perder sua
consistência.
Depois, a harmonia com as conquistas da
Ciência não deve ser buscada irrestritamente e a qualquer preço, visto estar
ela, em suas proposições abstratas, constantemente sujeita a enganos e
retificações. Kardec percebeu isso de maneira clara, mesmo tendo vivido antes
das grandes revoluções científicas do início de nosso século. No item de O
Livro dos Espíritos de que estamos tratando encontramos este trecho:
Desde que a Ciência sai da observação
material dos fatos, para os apreciar e explicar, o campo está aberto às
conjecturas [...]. Não vemos todos os dias as mais opostas opiniões serem
alternadamente preconizadas e rejeitadas, ora repelidas como erros absurdos,
para logo depois aparecerem proclamadas como verdades incontestáveis?
Aliás, é interessante notar que se
Kardec não tivesse imprimido ao programa espírita a independência e autonomia
que lhe imprimiu, ajustando-o, ao invés, de modo irrestrito agraves teorias
científicas da época, ele teria, como conseqüência das aludidas revoluções,
soçobrado irremediavelmente.
Aparentemente, os que em nossos dias
advogam a tese do "ajuste à Ciência" ainda não se deram conta desse
fato, nem perceberam que no referido parágrafo de A Gênese Kardec
deixou clara uma ressalva vital, ao falar desse ajuste:
Entendendo com todos os ramos da
economia social, aos quais dá apoio das suas próprias descobertas, [o
Espiritismo] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer
ordem que sejam, desde que hajam atingido o estado de verdades práticas e abandonado
o domínio da utopia, sem o que ele suicidaria.
Notemos que o "suicídio" do
Espiritismo adviria, segundo Kardec, não só de sua estagnação (aspecto esse
sempre lembrado), mas também de sua assimilação de doutrinas que não hajam
atingido o estado de "verdades práticas"(o que em geral passa
despercebido, por ter ficado implícito no texto).
Agora é certo que não há nenhum
princípio científico estável, nenhuma "verdade prática", que o
Espiritismo não tenha ou assimilado, ou mesmo antecipado, sendo, portanto,
improcedente os pruridos de reforma e atualização da Doutrina.
4. As deficiências das chamadas "ciências psi"
Todas as teorias que pretendem elucidar
os fenômenos mediúnicos, alheias à Doutrina Espiritista, pecam pela sua
insuficiência e falsidade.
Emmanuel
Essa assertiva de Emmanuel, que abre o
Capítulo XIV do primeiro livro que nos legou por via mediúnica (Emmanuel,
psicografado por Francisco Cândido Xavier.), há mais de cinqüenta anos, pode, a
alguns, parecer demasiadamente forte. No entanto, assim como tudo o que nos tem
dito o iluminado Espírito, decorre de uma análise isenta e racional dos fatos.
As conquistas recentes da Filosofia da Ciência, ainda não alcançadas àquela
época, evidenciam inequivocamente a correção desse juízo. É o que tentaremos
resumidamente mostrar nesta seção.
A primeira linha de pesquisa não
espírita dos fenômenos espíritas (anímicos e mediúnicos) que chegou a
constituir uma "escola" foi a Metapsíquica, que se desenvolveu nas
duas primeiras décadas desse século e culminou com a publicação em Paris em
1922 do clássico Traité de Métapsychique, de Charles Richet. Logo
após, essa escola foi cedendo lugar à Parapsicologia, cujo pioneiro foi o
norte-americano J. B. Rhine, que em 1937 publicou seu New Frontiers of
the Mind. De lá para cá, sob a inspiração dessa disciplina, surgiram e
continuam surgindo, em vertiginosa multiplicação, várias outras linhas de
investigação dos chamados "fenômenos paranormais". Talvez não seja
exagero afirmar que elas são quase tão numerosas quanto os pesquisadores, cada
um com seu "sistema" próprio. Denominaremos aqui, por simplicidade,
de ciências psi o conjunto de tais sistemas, muito embora,
como veremos, não sejam ciências genuínas.
Entre os traços comuns dessas
disciplinas, destacaríamos a pretensão à cientificidade, a suposição de que
aderem ao "método científico", o emprego de métodos quantitativos e
de aparelhos, uma certa aversão a "teorias" etc.
Ocorre que à época do nascimento da
Parapsicologia, ou seja, nas décadas de 20 e 30, a Filosofia da Ciência vivia o
apogeu do Positivismo Lógico. Essa doutrina filosófica representou, por assim
dizer, a tentativa suprema de articulação da visão clássica de ciência, que
mencionamos anteriormente. Em que pese o empenho dos maiores filósofos da
época, porém, tal programa malogrou de forma espetacular e definitiva, diante
dos argumentos contra ele levantados, principalmente pelos filósofos que
citamos na seção 2 (Reformador, novembro de 1988, págs. 328-331).
Apesar disso, tal foi a intensidade
desse movimento filosófico, que exerceu uma influência sem precedentes sobre os
cientistas, a qual sobreviveu ao seu fracasso, perdurando até nossos dias, com
conseqüências funestas para a Ciência.
Inevitavelmente, a Parapsicologia, que
nascia àquela época com pretensões à cientificidade, procurou seguir de forma
estrita os cânones preconizados pelo Positivismo Lógico para a caracterização
de uma ciência. (Esse fenômeno ocorreu também com a Sociologia e com a
Psicologia, que também andavam à procura de cientificidade. A propósito, é
significativo o fato de Rhine e outros pioneiros da Parapsicologia terem sido
psicólogos.)
A conseqüência não poderia ser outra:
essa nova disciplina carregou consigo, desde a sua concepção, as deficiências
graves da visão lógico-positivista de ciência, vindo a adotar métodos
incompatíveis com os fins a que se propõe, perseguindo um ideal de
cientificidade completamente ilusório. E atrás dela vieram as demais, a
despeito da louvável boa intenção da maioria de seus profitentes.
Para ilustrar essa situação,
consideremos agora alguns exemplos concretos dos equívocos em que incorrem
essas pretensas ciências.
a) Seguindo a velha
"receita", procuram acumular fatos sobre fatos, sem o auxílio de um
corpo teórico ordenador. Vimos acima quão inócuo e anti-científico é esse
procedimento, e quão bem Kardec compreendeu tal realidade.
b) Quando explicações são dadas,
são-no fragmentariamente, cada fato sendo "explicado" por uma
hipótese isolada. Desse modo, mesmo se artificialmente agruparmos essas
hipóteses, não formaremos senão um todo inconsistente, o que viola a própria
Lógica. A moderna Filosofia nem mesmo considera explicações genuínas
"explicações" isoladas de fatos.
c) As explicações são, via de regra,
ainda mais fantásticas do que os fatos a que se propõem explicar. Nas
admiráveis refutações aos contraditores do Espiritismo contidas em várias de
suas obras, notadamente em O que é o Espiritismo (Cap. I), O
Livro dos Médiuns (Primeira Parte, Cap. IV), ,O Céu e o Inferno (Primeira
Parte) e O Livro dos Espíritos (Introdução, Item XVI), Allan
Kardec, com a agudeza de espírito que o caracterizava, já apontava esse tipo de
problema. Na seção "Falsas explicações dos fenômenos", do primeiro
desses livros, Kardec pergunta:
Como podem pretender dar conta dos
fenômenos espíritas [através da hipótese da alucinação] sem serem antes capazes
de explicar sua explicação?
E mais adiante acrescenta:
É realmente curioso observar os
contraditores empenharem-se na busca de causas cem vezes mais extraordinárias e
difíceis de compreender do que aquelas que lhes apresenta o Espiritismo.
Outro tipo de pseudo-explicação
comumente encontrada são as explicações puramente nominais: carecem de qualquer
substância, consistindo unicamente do emprego de fraseologia excêntrica na
descrição dos fenômenos. Emmanuel profliga semelhante vício filosófico no
parágrafo que segue imediatamente ao que abre esta seção:
Em vão, procura-se complicar a questão
com termos rebuscados, apresentando-se as hipóteses mais descabidas e absurdas
[...].
d) Quando "teorias" são
fornecidas, não dão conta de todos os fatos. Aqui também Kardec já alertou (O
Livro dos Médiuns, parágrafo 42):
O que caracteriza uma teoria verdadeira
é poder dar razão de tudo. Se, porém, um só fato que seja a contradiz, é que
ela é falsa, incompleta, ou por demais absoluta.
e) Muitos fatos relevantes
simplesmente não são reconhecidos. Isso pode resultar: i de
idéias preconcebidas, como no caso daquelas que negam a priori a
possibilidade de sobrevivência do ser, e portanto não investigam uma vasta
quantidade de fenômenos relativos a ela. (Esse problema atinge as raias do
absurdo no horror que alguns investigadores têm pelos médiuns - exatamente o
manancial mais abundante de fenômenos de que se dispõe!); ou ii. da
falta de uma teoria que guie na busca e análise dos fatos. Vimos acima com
Kardec quão longe está o Espiritismo de incorrer em semelhantes enganos.
f) Emprego de técnicas de
investigação inadequadas. O caso típico e mais importante é o recurso ao
"método quantitativo". Como se sabe, tal método constitui uma das
maiores bandeiras da Parapsicologia e demais "ciências psi", que
julgam assim estar seguindo os afortunados caminhos da Física e da Química.
Ora, se indubitavelmente a análise das quantidades desempenha nessas ciências
um papel importante (embora não exclusivo!), não se segue daí que deva ser
igualmente frutífero no estudo de uma ordem de fenômenos completamente
diferente. De fato, são, neste caso, de todo dispensáveis (para dizermos
pouco). É até mesmo ridículo querer substituir a prova cabal fornecida por uma
manifestação inteligente (como por exemplo uma carta que contém informações
detalhadas de episódios e coisas desconhecidas) por medidas de desvios
estatísticos em experimentos de identificação de cartas de baralho, ou
similares. Não que estas últimas sejam irrelevantes; mas a evidência que podem
dar é imensamente mais fraca e duvidosa do que a que resulta das manifestações
inteligentes, e mesmo de efeitos físicos extraordinários produzidos através de
um médium possante. (Parece estarmos aqui na situação de guerreiro que,
dispondo de um moderno canhão, prefira servir-se de um tosco estilingue...)
Essa situação foi, como sempre,
percebida e combatida por Allan Kardec, que não só enfatizou repetidamente a
importância crucial e a superioridade dos fenômenos mediúnicos de efeitos
inteligentes, como também explicitamente referiu-se à inadequação dos métodos
quantitativos, conforme se observa nas citações que fizemos na seção 3, em
especial neste trecho de O que é o Espiritismo (destacamos):
[Os fenômenos espíritas] têm, como
agentes, inteligências que têm independência, livre-arbítrio e não estão
sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos
processos de laboratório e aos nossos cálculos [...]. A Ciência
enganou-se quando quis experimentar os Espíritos, como o faz com uma pilha
voltaica; foi mal sucedida como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia
que não existe.
Também no Item de O Livro dos Espíritos que vimos
analisando Kardec alerta (destacamos):
[As manifestações espíritas] escapam à
competência da ciência material, visto não poder expressar-se por
algarismos, nem pela força mecânica.
g) Recurso desnecessário e perigoso
a aparelhos sofisticados. Não obstante de inegável valor nas investigações da
matéria, como mostram os notáveis avanços da Física e da Química, a
prescindibilidade de aparelhos no estudo dos fenômenos espíritas ficou
evidenciada pelas considerações expendidas no item anterior. Além disso, há
mesmo riscos em sua utilização. Primeiro, tal utilização pode encobrir
deficiências metodológicas profundas, produzindo uma ilusória impressão de
rigor, de cientificidade. Depois, e mais importante, do ponto de vista
epistemológico (ou seja, da teoria do conhecimento), as observações por meio de
aparelhos ocupam um nível bem mais baixo na escala da confiabilidade do que
aquelas que podem ser alcançadas de modo imediato. (Assim, uma das mais
difundidas vertentes da Epistemologia chega mesmo a negar que entidades
teóricas não diretamente observáveis possuam "referentes", ou seja,
contrapartes reais.) A razão disso é simples: quando se utiliza um aparelho
para fazer certa observação, o resultado da mesma pressuporá a validade das
teorias envolvidas na construção e no funcionamento do aparelho,
introduzindo-se, desse modo, mais elementos de incerteza.
Essas considerações epistemológicas
explicam, por sinal, a grande estabilidade do núcleo de princípios fundamentais
do Espiritismo, quando comparado aos das teorias científicas, pois repousam em
fenômenos extremamente básicos do ponto de vista epistêmico, com o mesmo grau
de certeza, quanto, por exemplo, as proposições de que temos agora uma folha de
papel diante de nós, de que há nela algo escrito, de que nos achamos sentados
etc. Medeia vasta distância conceitual entre proposições desse tipo e, por
exemplo, aquelas sobre a estrutura dos átomos, dos buracos negros, sobre o
mecanismo das mutações genéticas etc.
h) Referência a conceitos e teorias
científicas obsoletos. A Física deste século introduziu, como já dissemos,
alterações radicais em suas teorias, e conseguintemente em nossa visão do
mundo. Conceitos que faziam parte da Física Clássica, como os de espaço e tempo
absolutos, partículas, campos etc., foram ou totalmente abandonados, ou
revistos profundamente, por não mais servirem às novas teorias, não dando conta
dos fenômenos observados. Assim, é inacreditável que haja pesquisadores das
"ciências psi" tentando elaborar "teorias" e
"modelos" para o Espírito baseados em noções de partículas e campos,
e ainda mais, com a pretensão de estarem seguindo a Ciência! Vemos aqui uma vez
mais a lucidez de Kardec e dos Espíritos que o auxiliavam, ao não vincularem os
princípios centrais do Espiritismo a nenhuma dessas noções. Assentaram-no,
antes, em proposições básicas, "fenomenológicas", como dizem os
filósofos, exatamente por serem estáveis.
i) Desprezo pelo passado: cada pesquisador
em geral reinicia as investigações a partir do "nada", como se outros
já não tivessem efetuado constatações dignas de confiança. Se a dúvida
equilibrada representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida,
aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza o conhecimento. Se na Ciência
se tivesse adotado semelhante atitude, não se teria saído de sua pré-história.
j) Ignorância da relevância dos
fatores "morais" na produção de certos fenômenos. Kardec não tardou
reconhecer, em seus estudos, a influências por vezes crucial de fatores ligados
à harmonia de pensamento dos médiuns, experimentadores e assistentes, aos
objetivos a que se propõem, à sua condição moral etc. O assunto é abordado,
entre outros lugares, no Capítulo XXI de O Livro dos Médiuns, onde
Kardec ressalta a "enorme influência do meio sobre a natureza das
manifestações inteligentes" (parágrafo 233). Essa influência vem sendo
também ilustrada e enfatizada na boa literatura mediúnica, que nos mostra em
detalhe a complexidade do trabalho dos Espíritos na produção dos fenômenos.
Assim, apenas para tomar um dos inúmeros exemplos, lembremos a descrição que
André Luiz dá em Missionários da Luz (Cap. X) da profunda
perturbação causada nos trabalhos de materialização a que presenciava pelo
simples ingresso no recinto de um homem interiormente desequilibrado, e,
depois, pelos pensamentos descontrolados dos participantes da reunião. Diante
da surpresa, o Instrutor Alexandre elucida (destacamos):
Nestes fenômenos, André, os
fatores morais constituem elementos decisivo de organização. Não
estamos diante de mecanismos de menor esforço e, sim, ante manifestações
sagradas da vida, em que não se pode prescindir dos elementos superiores e da
sintonia vibratória.
Também Emmanuel expende considerações
desse mesmo teor no Capítulo XIII de seu já citado livro Emmanuel (destacamos):
Não são poucos os estudiosos que
procuram investigar os domínios da ciência psíquica, na sede de encontrar o
lado verdadeiro da vida; porém, se muitas vezes acham apenas o malogro das suas
expectativas , o soçobro dos seus ideais, é que se entregam a estudos
arriscados sem preparação prévia para resolver tão altas questões, errando
voluntariamente com espírito de criticismo, muitas vezes injustificável, já que
não é filho do raciocínio acurado, profundo. O êxito no estudo de
problemas tão transcendentais demanda a utilização de fatores morais, raramente
encontrados; daí a improdutividade de entusiasmos e desejos que podem ser
ardentes e sinceros.
5. O Espiritismo é religioso.
[...] o Espiritismo
é, assim, uma religião ? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o
Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que
funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples
convenção, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.
Por que então
declaramos que o Espiritismo não era uma religião ? Pela razão de que há apenas
uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo a opinião
geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, e evoca unicamente uma
idéia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se se
tivesse proclamado uma religião, o público nele não veria senão uma nova
edição, ou uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria de
fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e
privilégios; não o distinguiria das idéias de misticismo e dos enganos contra
os quais se está freqüentemente bem instruído.
Não apresentando
nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da
palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre
cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz
simplesmente uma doutrina filosófica e moral.
Allan Kardec [nota
6]
Do mesmo modo como tem havido falta de
compreensão acerca do caráter científico do Espiritismo e de suas relações com
as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as religiões também têm
constituído ponto de freqüentes confusões.
Assim como se pode mostrar ser o
Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por
estudar um domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio
Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora não se confunda com as
religiões ordinárias.
Se no estabelecimento da primeira
dessas teses tivemos que identificar corretamente que características de uma
teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que estabelecer
critérios adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito religioso.
Essa tarefa deve começar pela análise
etimológica da palavra religião. Ela vem do Latim religione,
derivado de religare, que naturalmente significa
"religar", estando, neste caso, subentendido que
"religação" é da criatura ao Criador.
Surge aqui a primeira diferença entre o
Espiritismo e as religiões ordinárias.
Estas usualmente entendem por Deus um
ser supremo, criador de tudo o que existe, porém com características
notoriamente antropomórficas.
Já o Espiritismo define-o como "a
inteligência suprema, causa primária de todas as coisas"(O Livro dos
Espíritos, Questão n 1.), dando-lhe por atributos exclusivamente a
eternidade, a imutabilidade, a imaterialidade, a unicidade, a onipotência e a
soberana justiça e bondade (ibidem, Questão 13), o que
evidentemente exclui qualquer caráter antropomórfico.
A segunda diferença fundamental está na maneira pela
qual o Espiritismo entende que a religação entre a criatura e Deus pode e deve
ser promovida.
Segundo as religiões ordinárias, ela se
dá através do ajuste da criatura a certas regras morais (éticas) e/ou da
satisfação de providências formais e externas de vária ordem, dependendo da
religião: batismo, crisma, comunhão, confissão; participação em cultos,
rituais, cerimônias; realização de determinados gestos; recitação de fórmulas e
rezas; adoração de imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns;
trazer em si as "marcas de Deus" etc.
Já o Espiritismo propõe que a religação
da criatura ao Criador se faz exclusivamente pela adaptação de
sua conduta a determinados preceitos morais, as medidas de ordem exterior sendo
tidas não somente como supérfluas, como também de todo desaconselhadas e
combatidas.
A terceira diferença reside em quais são
as regras morais em questão.
O Espiritismo toma-as como unicamente
aquelas propostas por Jesus, e que se resumem no preceito do amor ao próximo.
Já as religiões ordinárias podem,
dependendo do caso, incluir ou não as normativas evangélicas, ou incluí-las
parcialmente, ou acrescentar-lhes outras, ou alterar-lhes a interpretação
original etc.
Por fim, crucial diferença surge no
modo pelo qual essas regras éticas são justificadas.
As religiões ordinárias
"justificam" as normas morais que propõem recorrendo à autoridade
desse ou daquele indivíduo ou instituição; são dogmas, portanto artigos de fé a
serem aceitos sem exame.
Já o Espiritismo fundamenta o corpo de
seus preceitos éticos no conhecimento que cientificamente alcança das
conseqüências das ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres,
conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui
lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e
racional dos fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo
entendia a moral, pois em sua primeira carta aos Coríntios (10:23) asseverou:
"Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas,
porém nem todas edificam."
Em artigo anterior ("Os
fundamentos da ética espírita"; ver Referência Bibliográficas.) expusemos
com certa extensão esse processo de fundamentação da moral espírita. Dada a
relevância do tema, recorreremos aqui a algumas citações de Kardec, a fim de
ilustrar o ponto e deixar clara sua posição.
Nos comentários às Questões 147 e 148
de O Livro dos Espíritos, que tratam do materialismo, Kardec
refere-se à hipótese da aniquilação do ser com a morte corporal:
Triste conseqüência, se fora real,
porque então o bem e o mal não teriam objetivo, o homem estaria justificado em
só pensar em si e em colocar acima de tudo a satisfação de seus prazeres
materiais; os laços sociais se romperiam, e as mais santas afeições se
quebrariam irremediavelmente.
Passemos agora à Questão 222 do mesmo livro, onde encontramos:
Ora, pois: se credes num futuro
qualquer, certo não admitis que ele seja idêntico para todos, porquanto, de
outro modo, qual a utilidade do bem ? Por que haveria o homem de constranger-se
? Por que deixaria de satisfazer a todas as suas paixões, a todos os seus
desejos, ainda que à custa de outrem, uma vez que isso não lhe alteraria a
condição futura ?
No Item IV da Conclusão dessa obra Kardec é ainda mais explícito
(destacamos):
O progresso da Humanidade tem seu
princípio na aplicação da lei de justiça, de amor e de caridade. Tal
lei se funda na certeza do futuro; tirai-lhe essa certeza e lhe tirareis a
pedra fundamental. Dessa lei derivam todas as outras, porque ela encerra todas
as condições da felicidade do homem.
No Item VIII Kardec reitera:
Razão, portanto, tivemos para dizer que
o Espiritismo, com os fatos, matou o materialismo. Fosse este o único resultado
por ele produzido e já muita gratidão lhe deveria a ordem social. Ele, porém,
faz mais: mostra os inevitáveis efeitos do mal e, conseguintemente, a
necessidade do bem.
O Capítulo I de A Gênese está
repleto de considerações sobre essa fundamentação experimental-racional da
ética espírita. Recomendamos vivamente a leitura, pelo menos, dos Parágrafos
31, 32, 35, 37, 42, 56 e 62. Do Parágrafo 37 extraímos esta assertiva
(destacamos):
Tirai ao homem o espírito livre e
independente, sobrevivente à matéria, e fareis dele uma simples máquina
organizada, sem finalidade, nem responsabilidade [...].
No Parágrafo 42 encontramos:
Demais, se se
considerar o poder moralizador do Espiritismo, pela finalidade que assina a
todas as ações da vida, por tornar tangíveis as conseqüências do bem e do mal
[...].
No Parágrafo 56 Kardec volta ao
assunto, desta vez analisando as relações entre a moral evangélica e a
espírita, que, conforme observamos, coincidem quanto às normas morais
(destacamos):
O que o ensino dos
Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos princípios que
regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam as
noções vagas que forneceu da alma, de sue passado e de sue futuro, e
que dão por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza. Com o
auxílio das novas luzes que o Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem compreende
a solidariedade que une todos os seres; a caridade e a fraternidade se tornam
uma necessidade social; ele faz por convicção o que fazia unicamente por dever,
e o faz melhor.
Encerrando essas notáveis citações de
Kardec, que aliás poderiam estender-se ainda muito, adentrando, por exemplo, O
Céu e o Inferno, obra inteiramente dedicada ao estudo teórico e
experimental das conseqüências das ações humanas, voltamos ao comentário às
Questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que fecha com chave de
ouro estas nossas reflexões:
[...] a missão do
Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em
fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e o penetremos com o
olhar, não mais pelo raciocínio somente, porém, pelos fatos. Graças às
comunicações espíritas, não se trata mais de uma simples suposição, de uma
probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade, que os poetas embelezem
com suas ficções, ou cumulem de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade
que nos aparece, pois que são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm
descrever a situação em que se acham, relatar o que fazem, facultando-nos
assistir, por assim dizer, a todas as peripécias da nova vida que lá vivem e
mostrando-nos, por esse meio, a sorte inevitável que nos está reservada, de
acordo com os nossos méritos e deméritos. Haverá nisso alguma coisa de
anti-religioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e
os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais
potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite e o
permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem e para que
sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro.
Notas [volta
ao índice]
1. Em nossas citações das obras de Allan
Kardec utilizamos os originais franceses, aproveitando amplamente as traduções
editadas pela Federação Espírita Brasileira; ver Referências Bibliográficas, no
final deste artigo. [volta]
2. "Espiritismo e Ciência. Esboço de
uma análise do Espiritismo à luz da moderna Filosofia da Ciência"; ver
Referências Bibliográficas. O leitor interessado em filosofia da ciência poderá
consultar o livro de Alan Chalmers What is this thing called science,
que é razoavelmente acessível e contém abundantes referências às fontes
primárias. [volta]
3. Ver, por exemplo, seu famoso artigo
"Falsification and the methodology of scientific reserch programmes",
citado nas Referências Bibliográficas. [volta]
4. A inclusão da Psicologia e da
Sociologia é problemática, já que não parecem, em sua atual fase de
desenvolvimento, cumprir os requisitos mínimos de uma verdadeira ciência. Nós
espíritas temos razões adicionais para essa dúvida, dado que tais disciplinas,
pretendendo estudar o ser humano, ignoram precisamente o que lhe é mais
essencial, ou seja, o Espírito. [volta]
5. Esse tema foi também lucidamente tratado
em artigo recente de Juvanir Borges de Souza, "Pesquisas e Métodos",
publicado no número de abril de 1986 de Reformador, cuja leitura
recomendamos vivamente. [volta]
6. "Le Spiritisme est-il une religion
?", Revue Spirite, 1868, p. 357. Transcrito em L'Obsession,
pp. 279-92 (ver Referências Bibliográficas). Uma tradução desse artigo, por
Ismael Gomes Braga, apareceu em Reformador, de março de 1976. Os
destaques na citação acima são nossos. [volta]
Referências Bibliográficas
ANDRÉ LUIZ. Missionários da
Luz. (Psicografia de Francisco Cândido Xavier.) 6a ed.,
Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas e
Métodos", Reformador, abril de 1986, pp. 99-101.
CHALMERS, A. F. What
is this thing called science? St. Lucia, University of Queensland
Press, 1976.
CHIBENI, S. S. "Espiritismo e
Ciência". Esboço de uma análise do Espiritismo à luz da moderna Filosofia
da Ciência". Reformador, maio de 1984, pp. 144-7 e 157-9.
-----. "Os fundamentos da ética
espírita". Reformador, junho de 1985, pp. 166-9.
EMMANUEL. Emmanuel.
Dissertações mediúnicas sobre importantes questões que preocupam a Humanidade.
(Psicografia de Francisco Cândido Xavier.) 5a ed., Rio de
Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
KARDEC, A. Le Livre des Esprits.
Paris, Dervy-Livres, s.d. (O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon
Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita
Brasileira, s.d.)
-----. Qu'est-ce que le
Spiritisme. Paris, Dervy-Livres, 1975. (O que é o Espiritismo. s.
trad. 25a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira,
s.d.)
-----. Le Livre des Médiums.
Paris, Dervy-Livres, 1972. (O Livro dos Médiuns. Trad. Guillon Ribeiro,
46a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
-----. La
Genèse, les Miracle et les Prédictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion
Scientifique, s.d. (A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad.
Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita
Brasileira, s. d.)
-----. L'Obssession. Extraits
textuels des Revues Spirites de 1858 a 1868. Farciennes,
Bélgica, Éditions de l'Union Spirite, 1950.
LAKATOS, I.
"Falsification and the methodology of scientific reserch programmes".
In: LAKATOS, I. & Musgrave, A. eds. Criticism and the Growth of
Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1970. pp. 91-195.
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