Análise comparativa doutrinária das edições de A Gênese
Marco Milani
No artigo
intitulado “Uma Infâmia”, publicado em 1884 no jornal Le Spiritisme,
órgão de divulgação da União Espírita Francesa, Henri Sausse, o biógrafo de
Kardec, afirmou que as alterações sofridas pela 5ª edição da obra “A Gênese”
eram significativas e lançou suspeitas não somente sobre a autoria – pois foi
publicada após a desencarnação de Kardec –, mas também sobre a qualidade
doutrinária das mesmas. Após um período de acusações e desmentidos envolvendo
dirigentes e adeptos franceses, o caso adormeceu.
No final
de 2017, com a valorosa pesquisa da diplomata brasileira Simoni Privato
Goidanich, apresentada no livro “O Legado de Allan Kardec”, foram apontadas
inconsistências documentais que reacenderam essa polêmica e, novamente, a
autoria da 5ª edição passou a ser questionada, bem como suscitou a natural
indagação sobre a qualidade doutrinária das alterações.
Pesquisadores
de diferentes países iniciaram, assim, a busca por fatos históricos que
pudessem auxiliar no esclarecimento da questão autoral e, simultaneamente, procederam
a análises comparativas sobre as alterações.
Em “Nota”
publicada em maio/2018, a USE-SP, movida pela prudência e voltada ao
aprofundamento das pesquisas doutrinárias, destacou a pertinência de se
considerar a 4ª edição, até então, como aquela em que não havia dúvidas sobre a
autoria da obra e recomendou, aos estudiosos espíritas e não espíritas
interessados no assunto, que realizassem análises comparativas entre a edição
original e a modificada. A revista “Dirigente Espírita”, veículo de comunicação
da USE-SP vem, desde então, publicando comentários sobre os capítulos
analisados.
Mantendo
a proposta comparativa, recentemente o Departamento de Doutrina da USE-SP
organizou o Grupo Virtual de Estudos (GVE), o qual contou com 16 estudiosos
espíritas, residentes em diferentes regiões do país que fomentaram uma ampla
análise doutrinária sobre as alterações das respectivas edições. O relatório final do GVE,pode ser acessado na
página eletrônica da USE-SP, na pasta "Documentos" (https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Relatorio-Final-GVE-2020.pdf).
A seguir,
são antecipados alguns resultados do GVE.
Resumidamente,
sete capítulos (ns. 8, 9, 10, 14, 15, 16 e 18) da 5ª edição apresentaram itens
com ambiguidade ou divergências sobre a existência de impactos doutrinários
(aqui entendidos como mudanças na compreensão sobre princípios e conceitos já
firmados no corpo teórico do Espiritismo, apresentados em obras anteriores ou
na mesma obra) e os demais onze capítulos não apresentaram prejuízos ou benefícios
doutrinários.
Para
representar algumas dessas ambiguidades, neste artigo, foram selecionados itens
específicos dos capítulos 8, 14, 15 e 18 como claros exemplos de divergências
interpretativas.
O
acréscimo do item 7 no capítulo 8, intitulado Alma da Terra, gerou, para alguns
integrantes do GVE, a impressão de que houve um ganho doutrinário sobre este
assunto, pois fora abordada a questão sob um novo ponto de vista, tal como
apresentado na Revista Espírita de set/1868. Para outros, entretanto, tal item
nada agregou doutrinariamente, uma vez que o assunto já teria sido devidamente
abordado em obras anteriores, como na questão n. 144, de “O Livro dos
Espíritos”.
Com
relação ao capítulo 14, dois itens atraíram a atenção dos pesquisadores. O item
1, da edição original, contém o seguinte trecho:
"[...] os fenômenos em que
prepondera o elemento espiritual, não podendo ser explicados unicamente por
meio das leis da matéria, escapam às investigações da Ciência."
Na
edição modificada, a palavra “matéria” foi substituída por “natureza”. Assim, a
frase se transformou em:
“[...] os fenômenos em que prepondera o
elemento espiritual, não podendo ser explicados unicamente por meio das leis
da natureza, escapam às investigações da Ciência."
Alguns
consideraram que a substituição não gerou impacto doutrinário pois, ainda que
"natureza" pudesse levar a uma interpretação equivocada, em uma
leitura isolada, a palavra poderia assumir diferentes significados,
estabelecendo-se relações com outras passagens, nesta e em outras obras de
Kardec. Logo, não haveria incoerência, se fosse considerada uma perspectiva
mais abrangente. O item 1, do capítulo 12, foi citado como exemplo e para
analogia, de como os cientistas materialistas definiam milagres: um ato do
poder divino contrário às leis conhecidas da natureza. Outros, contudo,
apontaram que houve, sim, prejuízo doutrinário por considerarem evidente a
distorção semântica entre as palavras e discordaram de que “natureza” e
“matéria” poderiam ser consideradas sinônimos. Se assim fosse, se exigiria uma
postura relativista, tomando a parte pelo todo, uma vez que os elementos
materiais e espirituais são, na obra kardeciana, distintos e a natureza engloba
ambos. Os itens 1, 8, 9, 10, 13, 16 e 17, do capítulo 13 – Caracteres dos milagres,
da própria obra “A Gênese”, tanto na edição original quanto na edição
modificada, expressam o mesmo sentido lógico quando se usa leis da natureza ou
fatos naturais, englobando o elemento espiritual. Portanto, não é compatível
com a substituição ocorrida na 5ª edição, caracterizando, assim, evidente
prejuízo doutrinário.
No item
14, do capítulo 14, da edição modificada, foi acrescentada a afirmação de que o
Espírito é um ser “fluídico”. Para alguns, essa afirmação pode estar
relacionada com a observação do livro “O que é o Espiritismo”, Cap. 2, item 14,
em que se aponta que alma é um ser simples; o Espírito um ser duplo; e o homem
um ser triplo. Assim, o homem teria um componente material inseparável e,
então, a alteração não geraria qualquer impacto doutrinário, em face desta
relação. Para outros, o trecho em análise, na edição original de “A Gênese” é
bem mais claro e coerente doutrinariamente, favorecendo a leitura, pois o
elemento espiritual se serve do elemento material e eles não se confundem,
mantendo a distinção contida na edição originária. Logo, o Espírito não pode
ser fluídico, como o seu perispírito o é. No próprio capítulo 2 de “O Livro dos
Espíritos”, está clara e inequívoca a diferenciação entre matéria e espírito;
portanto, o texto da edição original mantém a coerência e não produz qualquer
ambiguidade.
No
item 59 do capítulo 15, da edição original, consta-se:
“Os outros discípulos vieram com a
barca, e, como não estavam distantes da terra mais de duzentos côvados,
eles daí puxaram a rede cheia de peixes. (João, 21:1 a 8)”.
Na 5ª
edição, foi substituída a palavra “terra” por “mar”, apresentando a seguinte
frase “[...] e, como não estavam distantes do mar". Todos os
integrantes do GVE concordaram se tratar de erro na edição modificada, cuja
frase está divergente da versão bíblica. Logo, na 4ª edição o trecho está mais
coerente.
No mesmo
capítulo 15, da 5ª edição, o item 67, presente na edição original, foi
eliminado integralmente na 5ª edição. O item suprimido propõe as hipóteses
plausíveis para explicar o desaparecimento do corpo físico de Jesus após a sua
morte. Para alguns, inexiste impacto doutrinário porque hipóteses não fariam
parte da Doutrina Espírita, bem como não ficaria comprometida a discussão do
tema (o fato de que Jesus teve um corpo carnal), como já destacado em outros
trechos neste capítulo. Para outros, a supressão do item 67 acarretou grave
prejuízo doutrinário, não somente para o desenvolvimento do conteúdo, mas
porque o item suprimido fora considerado relevante por Kardec, tanto que este o
citou expressamente nas referências do livro “Catálogo Racional para se formar
uma biblioteca espírita”, exatamente para alertar os leitores e se contrapor ao
conteúdo do livro “Os Quatro Evangelhos”. Como a questão do desaparecimento do
corpo de Jesus é o cerne do trecho compreendido entre os itens 64 a 68, na
edição original, a alteração procedida na quinta edição ocasiona incompletude e
gera prejuízo para a discussão doutrinária.
O
capítulo 18 foi um daqueles que mais sofreu alterações, com a inserção de
longos textos e mensagens que, mesmo presentes na “Revista Espírita”, não
implicam a concordância universal. Dentre outros, destacam-se os itens 8, 9 e
10, comentados a seguir.
Sobre os
itens 8 e 9, as longas inserções realizadas envolvendo a relação entre
acontecimentos físicos e a transformação moral dos indivíduos geraram
interpretações variadas. Para alguns, não houve impacto doutrinário, porque
esta relação teria sido abordada em capítulos anteriores, mencionando-se, por
exemplo, os flagelos destruidores e os cataclismos como ocasiões de chegadas e
partidas coletivas, bem como as influências destes para a evolução moral dos
Espíritos. Para outros, entretanto, as alterações quebraram a sequência lógica
do conteúdo original, com a inclusão dos textos de Arago e Dr. Barry, pois
Kardec estava discorrendo sobre as transformações morais, valorizando, assim, o
livre-arbítrio do indivíduo. E, com as inserções, retomou-se a questão dos
acontecimentos físicos atrelados à evolução moral, sinalizando, indevidamente,
que a evolução do indivíduo teria uma relação dependente de acontecimentos
físicos, caracterizando-se como uma incoerência doutrinária.
Sobre
a inserção do item 10, decorre uma situação de vínculo direto entre fenômenos
astronômicos e revoluções físicas do globo com o processo de renovação moral da
humanidade. Destaca-se o seguinte trecho:
“Anunciando a época de renovação que se
havia de abrir para a Humanidade e determinar o fim do velho mundo, a Jesus,
pois, foi lícito dizer que ela se assinalaria por fenômenos extraordinários,
tremores de terra, flagelos diversos, sinais no céu, que mais não são do que
meteoros, sem ab-rogação das leis naturais. O vulgo, porém, ignorante, viu
nessas palavras a predição de fatos miraculosos.”
Alguns,
no GVE, entenderam que a inserção desse item não causaria impacto doutrinário,
pois os acréscimos deveriam ser contextualizados com outras passagens e não
deveriam ser lidos isoladamente para a compreensão do conteúdo.
Os demais
integrantes do GVE, entretanto, considerando que tremores de terra e impactos
de meteoros na atmosfera ocorrem incessantemente no planeta, em diferentes
gradações e frequências, entenderam que os “sinais no céu” não seriam
presságios de mudanças morais da humanidade nem derrogações das leis naturais.
Então, é incoerente a afirmação de que seria “lícita” a associação do período
de renovação moral a fenômenos extraordinários, como se houvesse um calendário
astronômico e geológico. A Astrologia, por sinal, adota a perspectiva da
influência dos astros no comportamento e destino do ser humano e tal suposição
é plenamente rechaçada pelo ensino dos Espíritos, como observado, por exemplo,
nas questões 859 e 867 de “O Livro dos Espíritos”. Assim, o item oferece
elementos ambíguos e com prejuízo doutrinário.
Na
5ª edição, também, foi inserida uma “Nota” referente ao item 10, apresentada a
seguir.
“A terrível epidemia que, de 1866 a
1868, dizimou a população da Ilha Maurícia, teve a precedê-la tão
extraordinária e tão abundante chuva de estrelas cadentes, em novembro de 1866,
que aterrorizou os habitantes daquela ilha. A partir desse momento, a doença,
que reinava desde alguns meses de forma muito benigna, se transformou em
verdadeiro flagelo devastador. Sem dúvida houve um sinal no céu e talvez
nesse sentido é que se deva entender a frase — estrelas caindo do céu, de que
fala o Evangelho, como sendo um dos sinais dos tempos. (Pormenores sobre a
epidemia da ilha Maurícia: Revista Espírita, julho/1867 e novembro/1868)”
Para
alguns, não houve impacto doutrinário por não entenderem que a “Nota” faça uma
associação direta entre cataclismos como anunciadores da renovação moral, mas
que há alterações físicas e morais e elas poderão coincidir. Para outros,
entretanto, há evidente prejuízo doutrinário, pois associam-se fenômenos
físicos aos morais, de maneira interdependente. Para mais detalhes sobre a
incoerência dessa Nota, ver a revista “Dirigente Espírita”, n. 168, p. 5.
Diferentemente
do que os indivíduos mais afeitos à idolatria e ao comodismo intelectual
poderiam supor, a proposta analítica realizada pelo GVE não se baseou na
discussão sobre a autoria das modificações ocorridas na 5ª edição, para
atestar, a priori, se tais modificações gerariam impactos doutrinários
favoráveis ou desfavoráveis. Sob essa perspectiva, buscou-se afastar o relativismo
inconsequente que a tudo justifica, culminando com a identificação de trechos
questionáveis, ainda que sem qualquer pretensão de unanimidade.
Os
resultados comparativos do GVE, acima antecipados, indicam a existência de
passagens com ambiguidade ou divergências interpretativas sobre os impactos
doutrinários gerados pelas alterações ocorridas na 5ª edição de “A Gênese”.
Tal fato colide com a clareza,
simplicidade e objetividade da linguagem desejadas pelo educador Allan Kardec,
como exemplificado no trecho a seguir, ao tratar do Espiritismo:
Fala uma linguagem clara, sem
ambiguidades. Nada há nele de místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas
interpretações. Quer ser por todos compreendido, porque chegados são os tempos
de fazer-se que os homens conheçam a verdade. (O Livro dos Espíritos, Conclusão, VI)
Kardec e
os Espíritos escreveram para o público em geral, aliando profundidade teórica e
excelência metodológica, sem a exigência de um formalismo hermenêutico para se
compreender os princípios e valores espíritas.
Assim,
diante da valorosa oportunidade de estudos e considerando a 4ª edição de “A
Gênese” como mais adequada para parte significativa dos pesquisadores deste
Grupo, quando observados determinados itens (sem desconsiderar eventuais
aperfeiçoamentos e correções gramaticais realizados no texto da 5ª edição),
recomenda-se a qualquer adepto a análise comparativa entre as edições, sob a
perspectiva doutrinária, para verificarem, por si mesmos, os eventuais impactos
ocorridos.
Fonte: https://usesp.org.br/
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