domingo, 1 de novembro de 2020

 


Análise comparativa doutrinária das edições de A Gênese

Marco Milani

 (Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 180, nov/dez 2020, p. 6)

 

No artigo intitulado “Uma Infâmia”, publicado em 1884 no jornal Le Spiritisme, órgão de divulgação da União Espírita Francesa, Henri Sausse, o biógrafo de Kardec, afirmou que as alterações sofridas pela 5ª edição da obra “A Gênese” eram significativas e lançou suspeitas não somente sobre a autoria – pois foi publicada após a desencarnação de Kardec –, mas também sobre a qualidade doutrinária das mesmas. Após um período de acusações e desmentidos envolvendo dirigentes e adeptos franceses, o caso adormeceu.

No final de 2017, com a valorosa pesquisa da diplomata brasileira Simoni Privato Goidanich, apresentada no livro “O Legado de Allan Kardec”, foram apontadas inconsistências documentais que reacenderam essa polêmica e, novamente, a autoria da 5ª edição passou a ser questionada, bem como suscitou a natural indagação sobre a qualidade doutrinária das alterações.

Pesquisadores de diferentes países iniciaram, assim, a busca por fatos históricos que pudessem auxiliar no esclarecimento da questão autoral e, simultaneamente, procederam a análises comparativas sobre as alterações.

Em “Nota” publicada em maio/2018, a USE-SP, movida pela prudência e voltada ao aprofundamento das pesquisas doutrinárias, destacou a pertinência de se considerar a 4ª edição, até então, como aquela em que não havia dúvidas sobre a autoria da obra e recomendou, aos estudiosos espíritas e não espíritas interessados no assunto, que realizassem análises comparativas entre a edição original e a modificada. A revista “Dirigente Espírita”, veículo de comunicação da USE-SP vem, desde então, publicando comentários sobre os capítulos analisados.

Mantendo a proposta comparativa, recentemente o Departamento de Doutrina da USE-SP organizou o Grupo Virtual de Estudos (GVE), o qual contou com 16 estudiosos espíritas, residentes em diferentes regiões do país que fomentaram uma ampla análise doutrinária sobre as alterações das respectivas edições. O relatório final do GVE,pode ser acessado na página eletrônica da USE-SP, na pasta "Documentos" (https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Relatorio-Final-GVE-2020.pdf).

A seguir, são antecipados alguns resultados do GVE.

Resumidamente, sete capítulos (ns. 8, 9, 10, 14, 15, 16 e 18) da 5ª edição apresentaram itens com ambiguidade ou divergências sobre a existência de impactos doutrinários (aqui entendidos como mudanças na compreensão sobre princípios e conceitos já firmados no corpo teórico do Espiritismo, apresentados em obras anteriores ou na mesma obra) e os demais onze capítulos não apresentaram prejuízos ou benefícios doutrinários.   

Para representar algumas dessas ambiguidades, neste artigo, foram selecionados itens específicos dos capítulos 8, 14, 15 e 18 como claros exemplos de divergências interpretativas.

O acréscimo do item 7 no capítulo 8, intitulado Alma da Terra, gerou, para alguns integrantes do GVE, a impressão de que houve um ganho doutrinário sobre este assunto, pois fora abordada a questão sob um novo ponto de vista, tal como apresentado na Revista Espírita de set/1868. Para outros, entretanto, tal item nada agregou doutrinariamente, uma vez que o assunto já teria sido devidamente abordado em obras anteriores, como na questão n. 144, de “O Livro dos Espíritos”.

Com relação ao capítulo 14, dois itens atraíram a atenção dos pesquisadores. O item 1, da edição original, contém o seguinte trecho:

 

"[...] os fenômenos em que prepondera o elemento espiritual, não podendo ser explicados unicamente por meio das leis da matéria, escapam às investigações da Ciência."

 

Na edição modificada, a palavra “matéria” foi substituída por “natureza”. Assim, a frase se transformou em:

 

“[...] os fenômenos em que prepondera o elemento espiritual, não podendo ser explicados unicamente por meio das leis da natureza, escapam às investigações da Ciência."

 

Alguns consideraram que a substituição não gerou impacto doutrinário pois, ainda que "natureza" pudesse levar a uma interpretação equivocada, em uma leitura isolada, a palavra poderia assumir diferentes significados, estabelecendo-se relações com outras passagens, nesta e em outras obras de Kardec. Logo, não haveria incoerência, se fosse considerada uma perspectiva mais abrangente. O item 1, do capítulo 12, foi citado como exemplo e para analogia, de como os cientistas materialistas definiam milagres: um ato do poder divino contrário às leis conhecidas da natureza. Outros, contudo, apontaram que houve, sim, prejuízo doutrinário por considerarem evidente a distorção semântica entre as palavras e discordaram de que “natureza” e “matéria” poderiam ser consideradas sinônimos. Se assim fosse, se exigiria uma postura relativista, tomando a parte pelo todo, uma vez que os elementos materiais e espirituais são, na obra kardeciana, distintos e a natureza engloba ambos. Os itens 1, 8, 9, 10, 13, 16 e 17, do capítulo 13 – Caracteres dos milagres, da própria obra “A Gênese”, tanto na edição original quanto na edição modificada, expressam o mesmo sentido lógico quando se usa leis da natureza ou fatos naturais, englobando o elemento espiritual. Portanto, não é compatível com a substituição ocorrida na 5ª edição, caracterizando, assim, evidente prejuízo doutrinário.

No item 14, do capítulo 14, da edição modificada, foi acrescentada a afirmação de que o Espírito é um ser “fluídico”. Para alguns, essa afirmação pode estar relacionada com a observação do livro “O que é o Espiritismo”, Cap. 2, item 14, em que se aponta que alma é um ser simples; o Espírito um ser duplo; e o homem um ser triplo. Assim, o homem teria um componente material inseparável e, então, a alteração não geraria qualquer impacto doutrinário, em face desta relação. Para outros, o trecho em análise, na edição original de “A Gênese” é bem mais claro e coerente doutrinariamente, favorecendo a leitura, pois o elemento espiritual se serve do elemento material e eles não se confundem, mantendo a distinção contida na edição originária. Logo, o Espírito não pode ser fluídico, como o seu perispírito o é. No próprio capítulo 2 de “O Livro dos Espíritos”, está clara e inequívoca a diferenciação entre matéria e espírito; portanto, o texto da edição original mantém a coerência e não produz qualquer ambiguidade.

No item 59 do capítulo 15, da edição original, consta-se:

 

“Os outros discípulos vieram com a barca, e, como não estavam distantes da terra mais de duzentos côvados, eles daí puxaram a rede cheia de peixes. (João, 21:1 a 8)”.

 

Na 5ª edição, foi substituída a palavra “terra” por “mar”, apresentando a seguinte frase “[...] e, como não estavam distantes do mar". Todos os integrantes do GVE concordaram se tratar de erro na edição modificada, cuja frase está divergente da versão bíblica. Logo, na 4ª edição o trecho está mais coerente.

No mesmo capítulo 15, da 5ª edição, o item 67, presente na edição original, foi eliminado integralmente na 5ª edição. O item suprimido propõe as hipóteses plausíveis para explicar o desaparecimento do corpo físico de Jesus após a sua morte. Para alguns, inexiste impacto doutrinário porque hipóteses não fariam parte da Doutrina Espírita, bem como não ficaria comprometida a discussão do tema (o fato de que Jesus teve um corpo carnal), como já destacado em outros trechos neste capítulo. Para outros, a supressão do item 67 acarretou grave prejuízo doutrinário, não somente para o desenvolvimento do conteúdo, mas porque o item suprimido fora considerado relevante por Kardec, tanto que este o citou expressamente nas referências do livro “Catálogo Racional para se formar uma biblioteca espírita”, exatamente para alertar os leitores e se contrapor ao conteúdo do livro “Os Quatro Evangelhos”. Como a questão do desaparecimento do corpo de Jesus é o cerne do trecho compreendido entre os itens 64 a 68, na edição original, a alteração procedida na quinta edição ocasiona incompletude e gera prejuízo para a discussão doutrinária.

O capítulo 18 foi um daqueles que mais sofreu alterações, com a inserção de longos textos e mensagens que, mesmo presentes na “Revista Espírita”, não implicam a concordância universal. Dentre outros, destacam-se os itens 8, 9 e 10, comentados a seguir.

Sobre os itens 8 e 9, as longas inserções realizadas envolvendo a relação entre acontecimentos físicos e a transformação moral dos indivíduos geraram interpretações variadas. Para alguns, não houve impacto doutrinário, porque esta relação teria sido abordada em capítulos anteriores, mencionando-se, por exemplo, os flagelos destruidores e os cataclismos como ocasiões de chegadas e partidas coletivas, bem como as influências destes para a evolução moral dos Espíritos. Para outros, entretanto, as alterações quebraram a sequência lógica do conteúdo original, com a inclusão dos textos de Arago e Dr. Barry, pois Kardec estava discorrendo sobre as transformações morais, valorizando, assim, o livre-arbítrio do indivíduo. E, com as inserções, retomou-se a questão dos acontecimentos físicos atrelados à evolução moral, sinalizando, indevidamente, que a evolução do indivíduo teria uma relação dependente de acontecimentos físicos, caracterizando-se como uma incoerência doutrinária.

Sobre a inserção do item 10, decorre uma situação de vínculo direto entre fenômenos astronômicos e revoluções físicas do globo com o processo de renovação moral da humanidade. Destaca-se o seguinte trecho:

 

“Anunciando a época de renovação que se havia de abrir para a Humanidade e determinar o fim do velho mundo, a Jesus, pois, foi lícito dizer que ela se assinalaria por fenômenos extraordinários, tremores de terra, flagelos diversos, sinais no céu, que mais não são do que meteoros, sem ab-rogação das leis naturais. O vulgo, porém, ignorante, viu nessas palavras a predição de fatos miraculosos.”

 

Alguns, no GVE, entenderam que a inserção desse item não causaria impacto doutrinário, pois os acréscimos deveriam ser contextualizados com outras passagens e não deveriam ser lidos isoladamente para a compreensão do conteúdo.

Os demais integrantes do GVE, entretanto, considerando que tremores de terra e impactos de meteoros na atmosfera ocorrem incessantemente no planeta, em diferentes gradações e frequências, entenderam que os “sinais no céu” não seriam presságios de mudanças morais da humanidade nem derrogações das leis naturais. Então, é incoerente a afirmação de que seria “lícita” a associação do período de renovação moral a fenômenos extraordinários, como se houvesse um calendário astronômico e geológico. A Astrologia, por sinal, adota a perspectiva da influência dos astros no comportamento e destino do ser humano e tal suposição é plenamente rechaçada pelo ensino dos Espíritos, como observado, por exemplo, nas questões 859 e 867 de “O Livro dos Espíritos”. Assim, o item oferece elementos ambíguos e com prejuízo doutrinário.

Na 5ª edição, também, foi inserida uma “Nota” referente ao item 10, apresentada a seguir.

 

“A terrível epidemia que, de 1866 a 1868, dizimou a população da Ilha Maurícia, teve a precedê-la tão extraordinária e tão abundante chuva de estrelas cadentes, em novembro de 1866, que aterrorizou os habitantes daquela ilha. A partir desse momento, a doença, que reinava desde alguns meses de forma muito benigna, se transformou em verdadeiro flagelo devastador. Sem dúvida houve um sinal no céu e talvez nesse sentido é que se deva entender a frase — estrelas caindo do céu, de que fala o Evangelho, como sendo um dos sinais dos tempos. (Pormenores sobre a epidemia da ilha Maurícia: Revista Espírita, julho/1867 e novembro/1868)”

 

Para alguns, não houve impacto doutrinário por não entenderem que a “Nota” faça uma associação direta entre cataclismos como anunciadores da renovação moral, mas que há alterações físicas e morais e elas poderão coincidir. Para outros, entretanto, há evidente prejuízo doutrinário, pois associam-se fenômenos físicos aos morais, de maneira interdependente. Para mais detalhes sobre a incoerência dessa Nota, ver a revista “Dirigente Espírita”, n. 168, p. 5.

Diferentemente do que os indivíduos mais afeitos à idolatria e ao comodismo intelectual poderiam supor, a proposta analítica realizada pelo GVE não se baseou na discussão sobre a autoria das modificações ocorridas na 5ª edição, para atestar, a priori, se tais modificações gerariam impactos doutrinários favoráveis ou desfavoráveis. Sob essa perspectiva, buscou-se afastar o relativismo inconsequente que a tudo justifica, culminando com a identificação de trechos questionáveis, ainda que sem qualquer pretensão de unanimidade.

Os resultados comparativos do GVE, acima antecipados, indicam a existência de passagens com ambiguidade ou divergências interpretativas sobre os impactos doutrinários gerados pelas alterações ocorridas na 5ª edição de “A Gênese”.

          Tal fato colide com a clareza, simplicidade e objetividade da linguagem desejadas pelo educador Allan Kardec, como exemplificado no trecho a seguir, ao tratar do Espiritismo:

 

Fala uma linguagem clara, sem ambiguidades. Nada há nele de místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas interpretações. Quer ser por todos compreendido, porque chegados são os tempos de fazer-se que os homens conheçam a verdade. (O Livro dos Espíritos, Conclusão, VI)

 

Kardec e os Espíritos escreveram para o público em geral, aliando profundidade teórica e excelência metodológica, sem a exigência de um formalismo hermenêutico para se compreender os princípios e valores espíritas.

Assim, diante da valorosa oportunidade de estudos e considerando a 4ª edição de “A Gênese” como mais adequada para parte significativa dos pesquisadores deste Grupo, quando observados determinados itens (sem desconsiderar eventuais aperfeiçoamentos e correções gramaticais realizados no texto da 5ª edição), recomenda-se a qualquer adepto a análise comparativa entre as edições, sob a perspectiva doutrinária, para verificarem, por si mesmos, os eventuais impactos ocorridos.


Fonte: https://usesp.org.br/

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