“Kardec não disse tudo” e a falácia do apelo à
ignorância
Marco Milani
Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 42, mar/2025,
p. 9-10
O Espiritismo, como doutrina filosófica, possui
princípios que fundamentam seu corpo teórico. Não se trata de sistema fechado,
permitindo a análise de novos fatos com base na razão, na lógica e no
conhecimento já legitimado pela universalidade do ensino dos Espíritos,
critérios que serviram para estabelecer suas diretrizes doutrinárias.
No entanto, ao longo do tempo, surgiram inúmeras
tentativas de incorporar ao Espiritismo práticas, conceitos e teorias contraditórias
aos seus princípios, acompanhados da frase “Kardec não disse tudo”. Essa
afirmação, embora verdadeira em si mesma, tem sido utilizada de forma distorcida,
especialmente pelo viés da falácia do apelo à ignorância (argumentum ad
ignorantiam), para validar ideias que não possuem sustentação doutrinária.
O apelo à ignorância consiste em afirmar que algo
deve ser verdadeiro simplesmente porque não há uma prova definitiva de que seja
falso, ou vice-versa. No caso do Espiritismo, essa falácia ocorre quando se
argumenta que, como Kardec não abordou ou esgotou determinado assunto em suas
obras, ele pode ser aceito como parte do Espiritismo. Trata-se de um erro
lógico, pois a ausência de menção ou aprofundamento em um tema não implica,
necessariamente, sua validade doutrinária.
O método epistêmico adotado por Kardec possui
critérios sólidos para a aceitação de novos conceitos, quando corroborados por
fatos e validados pela razão, além do controle universal do ensino dos
Espíritos. Qualquer inovação ou ampliação do conhecimento espírita deve ser
submetida a esse crivo, e não simplesmente aceita porque Kardec “não disse
tudo”.
O conhecimento espírita é progressivo, mas esse
progresso não ocorre de maneira arbitrária ou por meio da inserção de ideias antagônicas
aos seus fundamentos. Sob a alegação de “avanço”, antigos e novos conceitos e
práticas esotéricas, místicas e supersticiosas são ingenuamente abraçadas por
adeptos mais afoitos e menos familiarizados com os fundamentos espíritas.
Apometria, cromoterapia, astrologia, supostas comunicações com animais
desencarnados, escolas iniciáticas secretas, preces ritualísticas, elaboração e
distribuição de pomadas e outros produtos “milagrosos”, dentre outras, são
exemplos de práticas estranhas ao Espiritismo.
Outras deturpações conceituais decorrentes de
preferências e convicções pessoais manifestam-se sob diferentes aspectos, mas
escoradas na mesma justificativa de atualização. Uma das mais perniciosas diz
respeito à militância política disfarçada de progresso científico na área das
ciências sociais, caracterizando-se pela seleção de pensadores específicos de
determinada linha ideológica como representantes da modernidade que o
Espiritismo “deveria” defender. Tais militantes ignoram posicionamentos
teóricos contrários e pretendem determinar como o adepto deveria pensar
politicamente, desrespeitando a liberdade de consciência individual.
O progresso, portanto, não significa abandono dos
fundamentos nem a aceitação acrítica de qualquer novidade apresentada como
“espírita”.
Como exemplos positivos de aplicações diretas do
progresso científico no conhecimento espírita pode-se mencionar os estudos
realizados com experiências de quase-morte (EQM) e investigações de lembranças
de vidas passadas. Tais estudos não alteram os princípios doutrinários, porém
permitem ao pesquisador espírita aprofundar a compreensão dos fenômenos citados
baseados em evidências e não em simples abstração teórica.
O dinamismo espírita exige responsabilidade e coerência
metodológica. A ciência espírita não pode ser guiada por suposições arbitrárias
ou por argumentos falaciosos que se apoiam na ausência de menção direta a
certos temas para justificá-los. O compromisso com a lógica e com o método
kardequiano deve prevalecer, evitando que a doutrina seja corrompida por
práticas e conceitos que não fazem parte de sua essência. O fato de Kardec não
ter dito tudo não significa que qualquer coisa possa ser dita hoje em nome do
Espiritismo.