terça-feira, 2 de setembro de 2025

Sêneca e o Espiritismo

 Sêneca e o Espiritismo


 Marco Milani

 

Texto publicado na revista Candeia Espírita, nº 48, set/2025, p. 8-9


O diálogo entre a filosofia grega e o pensamento espírita revela interessantes afinidades e, ao mesmo tempo, diferenças. Enfatizando as semelhanças, Allan Kardec apontou treze preceitos propostos por Sócrates e Platão como ideias precursoras da doutrina espírita[1].

 Outro relevante filósofo da antiguidade que se destacou pela clareza de seus ensinamentos ético-morais e pelo estilo exortativo foi Sêneca (4 a.C. a 65 d.C.), expoente do estoicismo romano. Certamente, nem todos os seus ensinamentos se harmonizam com a visão espírita, mas muitos deles evidenciam a pertinência dessa interlocução filosófica

Sêneca concebia a vida humana como um percurso breve, em que o tempo deveria ser usado de modo sábio e consciente. Em seu tratado Da brevidade da vida, afirma que “não é que tenhamos pouco tempo, mas que desperdiçamos muito”[2], destacando que a verdadeira riqueza não está na posse de bens, mas no bom uso da existência em busca da sabedoria. Para ele, o bem supremo é a virtude, alcançada pelo domínio de si e pela conformidade com a razão universal, entendida como expressão da ordem cósmica.

Sêneca também defendia a fraternidade humana. Em Cartas a Lucílio, afirma que “o homem é coisa sagrada para o homem”[3], colocando a solidariedade como princípio de vida. Além disso, via a morte não como mal, mas como parte da ordem natural, que deveria ser aceita sem temor. A felicidade, nesse quadro, não se encontrava no poder ou na riqueza, mas na serenidade interior do sábio que vive conforme a natureza e aceita o destino.

Muitos desses pontos encontram paralelo na doutrina espírita. O Espiritismo ensina que a verdadeira vida é a espiritual, e que a encarnação é uma etapa educativa destinada ao progresso moral e intelectual. Da mesma forma que Sêneca valorizava o uso consciente do tempo, o Espiritismo convida a aproveitar a existência para o desenvolvimento das virtudes, lembrando que cada ato tem consequências ao indivíduo.

A crítica de Sêneca à busca desenfreada de riquezas e prazeres apresenta afinidades com os princípios espíritas. Conforme o ensino dos Espíritos[4], afirma-se que o apego aos bens materiais é um dos grandes entraves à elevação moral, e que a verdadeira liberdade consiste em não ser escravo das paixões. Ainda em Cartas a Lucílio, a máxima “não é pobre quem tem pouco, mas quem deseja muito” encontra eco na advertência espírita contra a cobiça e o egoísmo.

Um importante ponto de aproximação é a fraternidade universal. De acordo com a orientação moral de Sêneca, o homem deveria tratar o próximo com respeito e assumir a fraternidade como caminho de libertação interior.

Dentre os eventuais limites, a concepção inflexível do destino em Sêneca contrasta com a noção de autonomia relativa às escolhas individuais defendida pela doutrina espírita. Para o estoico, a vida está submetida à ordem cósmica imutável e a sabedoria consiste em aceitá-la com serenidade. O Espiritismo, embora adote a existência de leis divinas imutáveis, não abraça o determinismo, mas introduz a noção de livre-arbítrio. Assim, enquanto Sêneca enfatiza a resignação ao destino, o Espiritismo equilibra resignação e responsabilidade ativa.

Outra fronteira está na abordagem da morte. Para Sêneca, ela é dissolução natural e libertação da alma racional, mas não chega a desenvolver uma proposta estruturada da vida futura. O Espiritismo, por sua vez, apresenta detalhadamente a sobrevivência do Espírito, sua imortalidade e o progresso contínuo através das reencarnações. Se em Sêneca a morte é aceitação filosófica, no Espiritismo é passagem consciente para a continuidade do Espírito objetivando a sua realização na perfeição de que é suscetível.

Também há distinções no fundamento teológico. Sêneca fala em deuses e em razão universal, mas sua filosofia possui caráter imanentista, entendendo o divino como presente e ativo na ordem cósmica. O Espiritismo, por sua vez, aproxima-se do deísmo providencialista[5]. Essa diferença de horizonte metafísico coloca em contraste a ética estoica e a moral espírita, explicitamente ligada a Deus.

Embora tenha vivido na época do cristianismo nascente, Sêneca não faz qualquer referência aos seus princípios, mantendo sua filosofia dentro dos marcos do estoicismo romano. Já no Espiritismo, Jesus como modelo e guia da humanidade, é a maior referência moral.

Claramente há um terreno comum entre Sêneca e o Espiritismo na valorização da virtude, do desapego, da fraternidade e da serenidade diante da vida e da morte. Ambos se dirigem ao homem comum com um discurso prático, preocupado com o aprimoramento moral sem especulações abstratas. O Espiritismo vai além ao oferecer uma explicação mais ampla sobre a imortalidade, a reencarnação, o livre-arbítrio e a pedagogia divina.

Pode-se, assim, considerar Sêneca perante a revelação espírita como um precursor ético, cuja filosofia disciplina o homem para promover a fraternidade em sua essência, mesmo que limitada ao horizonte estoico da razão e do destino.

Sêneca ensina a viver com dignidade no tempo presente, enquanto o Espiritismo amplia esse horizonte ao ensinar a viver com dignidade no presente à luz da imortalidade do Espírito.

 



[1] Ver O evangelho segundo o espiritismo, Introdução, item IV.

[2] SÊNECA, L. A. Da brevidade da vida. São Paulo: Cia das Letras, 2014.

[3] Idem. Cartas a Lucílio. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

[4] Ver as questões 922 a 943 em O livro dos Espíritos e o capítulo XVI de o evangelho segundo o espiritismo.

Encontro anual de pesquisadores espíritas

 

Encontro anual de pesquisadores espíritas

A. J. Orlando

Texto publicado na revista Candeia Espírita, nº 48, set/2025, p. 25

Nos dias 30 e 31/08/25, o Centro Espírita Allan Kardec, em Campinas, recebeu pesquisadores espíritas de todo o Brasil, para o 20o Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo. Na oportunidade foram apresentados cinco trabalhos, submetidos à análise de pares, para o evento anual que teve como tema central Justiça divina segundo o espiritismo, em comemoração aos 160 anos da primeira edição da quarta obra fundamental de Allan Kardec, O céu e o inferno.

Além do apoio do centro campineiro, o evento sempre conta também com as participações da USE-SP União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo e do CCDPE-ECM Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo Eduardo Carvalho Monteiro.

LIHPE

A Liga de Pesquisadores do Espiritismo (LIHPE) é uma comunidade virtual que reúne pesquisadores, sejam espíritas ou não, sejam acadêmicos ou não, que se interessam em pesquisar o espiritismo ou o Movimento Espírita. Seu objetivo é a ajuda mútua para o desenvolvimento das pesquisas, oferecendo aos integrantes, uma gama de informações, através da troca de informações entre os integrantes. Atende, dentro do possível, solicitações de pesquisadores que não fazem parte do grupo.

A sigla LIHPE

Fundada sob a denominação de Liga dos Historiadores e Pesquisadores do Espiritismo, com o tempo reduziu-se o seu nome para somente Liga de Pesquisadores do Espiritismo. Apenas por tradição, manteve-se o “H” na sigla, a qual vem sendo usada normalmente.

Registros históricos

A data simbólica da criação da LIHPE é 17 de março de 2002, por iniciativa de Eduardo Carvalho Monteiro, o qual reuniu um grupo de confrades para criar uma rede que congregasse historiadores e pesquisadores em 14 estados brasileiros e membros na Áustria, Suécia, Inglaterra, Estados Unidos e Portugal.

Espiritismo e ciência

Conforme afirmou Allan Kardec, “O espiritismo e a ciência se completam reciprocamente; a ciência, sem o espiritismo, se acha na impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; ao espiritismo, sem a ciência, faltariam apoio e comprovação”. (A gênese, Cap. 1, i. 16).



quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Espiritismo, Juventude e Educação


Espiritismo, Juventude e Educação

 

Marco Milani

 

O movimento espírita brasileiro enfrenta um desafio que merece reflexão aprofundada: enquanto proclama a universalidade de seus princípios e a importância da educação moral para todas as idades, observa-se, na prática, um predomínio da população adulta, especialmente adultos maduros e idosos, nas atividades doutrinárias e estudos sistematizados. A presença infantojuvenil tem sido numericamente inferior e, em muitos casos, periférica às dinâmicas dos centros espíritas. Tal realidade se entrelaça com aspectos socioculturais e educacionais que afetam diretamente a capacidade de compreensão e interesse dos jovens pela Doutrina Espírita.

Parte desse cenário pode ser compreendida à luz da formação educacional heterogênea no Brasil, especialmente no que se refere à alfabetização e ao desenvolvimento das habilidades de leitura, escrita e pensamento abstrato.

O país tem adotado, nas últimas décadas, métodos pedagógicos fortemente influenciados por correntes construtivistas e socioconstrutivistas. Tais abordagens, inspiradas em autores como Jean Piaget (1990), Lev Vygotsky (2007), Jerome Bruner (2001) e Paulo Freire (2004), supõem valorizar a autonomia do aluno, a aprendizagem pela experiência e o papel da interação social na construção do conhecimento. Embora esses aportes tenham contribuído ao debate educacional, estudos empíricos apontam falhas graves na aplicação dessas metodologias, sobretudo quando adotadas de forma exclusiva ou desprovida de apoio estrutural. Kirschner, Sweller e Clark (2006) demonstraram que métodos com baixa orientação, como a aprendizagem por descoberta, tendem a ser ineficazes para alunos com pouca bagagem cognitiva, sobrecarregando sua memória de trabalho. Mayer (2004) reforça que a aprendizagem significativa depende, em grande parte, de instrução clara e sistemática, especialmente na alfabetização. No Brasil, a obra de Benedetti (2019) explicita como a adesão acrítica ao socioconstrutivismo contribuiu para um quadro de fracasso na alfabetização e no domínio da linguagem escrita, o que gera consequências nos ciclos posteriores.

Segundo os dados do Instituto Paulo Montenegro (IPM, 2018), cerca de 38% dos alunos de cursos superiores não conseguem interpretar adequadamente textos mais complexas que exigem abstração e domínio pleno de leitura e escrita. A população em faixas educacionais menores apresenta mais dificuldade.

Não por acaso, o país figura entre aqueles com piores desempenhos em testes educacionais internacionais, como o PISA (Programme for International Student Assessment), TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Study) e PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study). Mesmo em testes nacionais, como o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), aponta-se níveis alarmantes de analfabetismo funcional em todas as etapas escolares, principalmente no ensino médio.

Esse contexto gravíssimo limita não apenas o acesso ao conhecimento educacional, mas também a capacidade de compreender adequadamente conteúdos mais filosóficos, como os presentes nas obras de Allan Kardec, cuja estrutura é logicamente encadeada e exige maturidade para assimilar conceitos como perispírito, justiça divina, reencarnação, livre-arbítrio, expiação e pluralidade dos mundos habitados.

Nesse contexto, o desafio dos centros espíritas é duplo: de um lado, manter a coerência doutrinária, que exige estudo, raciocínio e reflexão; de outro, acolher a juventude com suas limitações educacionais, oferecendo meios acessíveis de aproximação com os princípios espíritas.

As casas espíritas precisam, com urgência, adequar suas práticas à complexa realidade educacional brasileira. Ignorar esses limites, mantendo uma abordagem expositiva e textual rígida, pode afastar justamente os que mais precisam do acolhimento, conforto e compreensão da própria realidade espiritual (MILANI, 2023, p. 4).

Um dos equívocos mais recorrentes nesse cenário é a ideia ilusória de que basta apresentar os jovens aos preceitos cristãos, como a caridade, o perdão, a humildade, sem oferecer-lhes a fundamentação doutrinária espírita que os sustenta e racionaliza. Ainda que esses princípios morais sejam essenciais e estejam presentes em várias tradições religiosas, o Espiritismo lhes confere profundidade e coerência, ao explicá-los à luz da justiça divina, da reencarnação, das leis morais e da imortalidade da alma. Quando se suprime essa fundamentação, corre-se o risco de apresentar apenas uma moral genérica, emocional e desarticulada do pensamento espírita, o que dificulta tanto o entendimento da justiça divina e a necessidade do esforço individual frente às adversidades quanto a aplicação consciente desses valores na vida prática.

É importante reconhecer que a capacidade e compreensão desejada nem sempre é alcançada de forma espontânea por todos os jovens, sobretudo por aqueles vindos de contextos educacionais fragilizados. Por isso, a simples exposição da doutrina, em moldes tradicionais de estudo, pode não ser suficiente para despertar o interesse nem garantir a reflexão necessária.

Diante disso, torna-se imprescindível que os centros espíritas adotem estratégias didáticas e comunicacionais que respeitem a diversidade cognitiva da população infantojuvenil. Isso envolve, por exemplo, o uso de recursos visuais, rodas de conversa mediadas, projetos com linguagem acessível, experiências práticas baseadas na vivência ética e afetuosa, atividades interativas e leitura compartilhada. Ao mesmo tempo, é fundamental manter a estrutura lógica, motivando os jovens, progressivamente, ao domínio doutrinário.

Há, felizmente, valorosas iniciativas já em curso nesse sentido. Entidades federativas como a União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP) promovem constantes encontros, fóruns e seminários voltados à reflexão sobre o acolhimento e educação dos jovens nos centros espíritas. Essas ações revelam esforço institucional legítimo e comprometido com a formação das novas gerações. No entanto, o tema exige maior envolvimento de todos, dirigentes, educadores, famílias e frequentadores, para que as boas práticas se ampliem, sejam compartilhadas e se convertam em transformação efetiva das realidades locais.

Essa postura exige sensibilidade dos dirigentes espíritas, além de investimento na formação pedagógica das equipes de educação infantojuvenil. A simples replicação de modelos expositivos usados com adultos não atende às necessidades de um público jovem, muitas vezes emocionalmente vulnerável e cognitivamente desigual. A proposta não é diluir o Espiritismo, mas mediá-lo com inteligência, generosidade e criatividade, tornando-o acessível sem comprometer sua profundidade.

Para que o Espiritismo cumpra sua missão de regeneração da humanidade, é preciso olhar com atenção para a juventude, não como “futuro do movimento”, mas como integrante do presente que demanda respostas às suas inquietações. A compreensão doutrinária passa por um esforço constante de traduzir seus princípios para diferentes aptidões intelectuais, em todos os tempos e realidades.

 

Referências

BENEDETTI, Kátia S. A falácia socioconstrutivista: por que os alunos brasileiros deixaram de aprender a ler e escrever. Itatiba: Kírion, 2019.

BRUNER, Jerome. A cultura da educação. Porto Alegre: Artmed, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

INSTITUTO PAULO MONTENEGRO (IPM). Ação Educativa - Indicador de Analfabetismo Funcional - INAF 2018. São Paulo: Instituto Paulo Montenegro, 2018.

KIRSCHNER, Paul A.; SWELLER, John; CLARK, Richard E. Why minimal guidance during instruction does not work: An analysis of the failure of constructivist, discovery, problem-based, experiential, and inquiry-based teaching. Educational Psychologist, v. 41, n. 2, p. 75–86, 2006.

MAYER, Richard E. Should There Be a Three-Strikes Rule Against Pure Discovery Learning? American Psychologist, v. 59, n. 1, p. 14–19, 2004.

MILANI, Marco. Analfabetismo doutrinário. Correio News, 4 maio 2020. Disponível em: https://correio.news/especial/analfabetismo-doutrinario. Acesso em: 19 jul. 2025.

PIAGET, Jean. A epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Indignação seletiva: o viés político-ideológico de grupos pseudoespíritas

Indignação seletiva: o viés político-ideológico de grupos pseudoespíritas

 

Marco Milani

 

Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum observar manifestações de determinados grupos que se intitulam espíritas, mas que, na prática, desviam-se dos fundamentos originais do Espiritismo. Entre os diversos sinais dessa distorção, um dos mais evidentes é a adoção de posicionamentos políticos e ideológicos enviesados, muitas vezes sob o disfarce de uma pretensa busca pela paz, pela justiça social ou pelos direitos humanos. Um exemplo notório dessa postura é a recente publicação de manifestos por parte desses grupos em apoio à Palestina, com duras críticas ao Estado de Israel, ignorando, deliberadamente, o contexto mais amplo dos conflitos armados que assolam o planeta.

Esses manifestos, travestidos de clamor humanitário, denunciam com veemência os ataques de Israel e proclamam solidariedade ao povo palestino, evocando princípios de compaixão e fraternidade que, em tese, estariam alinhados com o ideal espírita. No entanto, o que se revela por trás dessa retórica é uma clara indignação seletiva, movida não por princípios universais, mas por afinidades político-ideológicas marcadamente alinhadas à esquerda identitária e à retórica anticapitalista e contrária aos valores de liberdade que vem permeando parte da militância pseudoespírita.

Essa seletividade se escancara quando se observa o silêncio absoluto desses mesmos grupos diante de outros conflitos ainda mais sangrentos e prolongados. A guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, já ultrapassou centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados, com ataques sistemáticos à infraestrutura civil ucraniana, crimes de guerra documentados e uma ameaça constante à estabilidade europeia. No entanto, pouco ou nada se ouviu dos manifestantes “pela paz” quando a invasão russa foi deflagrada em 2022 ou mesmo quando seus efeitos devastadores se intensificaram nos anos seguintes.

Mais ainda, o planeta contabiliza atualmente mais de trinta conflitos armados ativos, em países como Etiópia, Sudão, Mianmar, Iêmen, Congo e Síria, muitos deles com níveis de violência extrema, limpeza étnica, perseguição religiosa e colapsos humanitários. São milhões de mortos, feridos e refugiados ignorados por esses mesmos que, seletivamente, voltam seus olhos apenas para causas que se ajustam à sua narrativa ideológica, especialmente quando envolvem a crítica ao Ocidente, a Israel, ou a valores considerados "imperialistas". O sofrimento humano parece só comover quando encaixa-se em determinado contexto político, o que revela não compaixão genuína, mas instrumentalização da dor alheia.

Do ponto de vista espírita, essa postura é duplamente condenável. Primeiro, porque contraria a ética da imparcialidade, do amor ao próximo sem distinções e da fraternidade universal defendida por Kardec. Reconhece-se o verdadeiro espírita pelo entendimento e prática dos princípios doutrinários, objetivando a própria transformação moral com esforços domar as suas más inclinações. Entre essas inclinações, encontra-se o sectarismo ideológico, que embaça a razão, incita o julgamento parcial e mina a serenidade do discernimento.

Segundo, porque ao se envolverem com bandeiras político-partidárias, esses grupos comprometem a neutralidade doutrinária que Kardec tanto prezava. O Espiritismo não é um instrumento de militância, mas um sistema filosófico, científico e moral que busca a elevação do ser humano acima das paixões políticas, e não sua sujeição a elas. Misturar Espiritismo com ideologias políticas, sejam elas de direita ou de esquerda, é trair sua essência, seu método e sua finalidade.

A indignação seletiva não é apenas um erro ético e filosófico: é um sintoma de uma grave enfermidade moral que mancha o movimento espírita. Ao optar pela militância política, esses grupos propõem que o sectarismo se sobreponha à razão e à universalidade dos princípios espíritas, buscando converter o Espiritismo em palanque ideológico.

A paz não se constrói com partidarismos, nem a justiça floresce sob o manto da hipocrisia seletiva. Que cada sofrimento humano nos comova igualmente, que cada vítima de guerra seja por nós acolhida em prece e solidariedade, independentemente da geopolítica que a cercou. Só assim estaremos sendo coerentes ao Espiritismo de Kardec: racional, livre, universalista e essencialmente cristão.

 

 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Cuidados cognitivos na divulgação espírita

Cuidados cognitivos na divulgação espírita

 

Marco Milani

 

Texto publicado na revista Candeia Espírita, nº 47, ago/2025, p. 9-10

 

A compreensão dos princípios espíritas está intimamente ligada ao nível de amadurecimento intelectual e moral de cada Espírito encarnado. O educador Allan Kardec já apontava que o ensino espírita deveria ser adaptado à capacidade de assimilação dos ouvintes, sem jamais vulgarizar ou trair os fundamentos da Doutrina[1]. Desse modo, a divulgação precisa verificar as diferenças de funcionamento cognitivo-neurológico, sem reduzir o conteúdo à simplificação grosseira, mas traduzindo-o de forma acessível, progressiva e fraterna.

No caso de crianças, por exemplo, a linguagem simbólica, os relatos morais e os exemplos práticos devem ser priorizados, tendo em vista sua fase de pensamento concreto. A assimilação dos princípios como reencarnação, justiça divina e lei de progresso deve ocorrer por meio de narrativas significativas, como pela contação de histórias com dramatização simples, reforçando o aprendizado com um estímulo lúdico.

Já com jovens, é necessário introduzir o raciocínio crítico e os dilemas morais, mostrando como os princípios espíritas dialogam com a vida cotidiana, os valores contemporâneos e os conflitos existenciais próprios da adolescência e juventude. Oficinas e debates temáticos favorecem essa proposta.

Com os adultos, a tarefa é mais desafiadora e diversificada, pois há aqueles com formação limitada ou distorcida, e outros já preparados para estudos mais aprofundados. Torna-se essencial, portanto, empregar metodologias dialógicas que considerem os referenciais prévios, incentivem o questionamento e promovam a autonomia de pensamento e comportamento confiante e corajoso, típico da fé racional inabalável[2]. A formação de grupos de estudo segmentados por nível de familiaridade com os princípios espíritas, conduzidos por facilitadores com sólidos conceitos doutrinários que incentivem a reflexão racional apresentando as fontes e referências utilizadas nas obras de Allan Kardec direciona para a construção consciente do conhecimento espírita.

Importa reconhecer, também, que os desafios educacionais persistentes no Brasil contribuem para uma heterogeneidade significativa no público que frequenta as instituições espíritas. Desigualdades no acesso à escolarização, dificuldades de leitura e escrita, déficit na formação científica e filosófica e lacunas no estímulo ao pensamento crítico refletem-se diretamente na forma como os conteúdos doutrinários são recebidos e compreendidos. Dessa maneira, centros espíritas convivem simultaneamente com frequentadores altamente escolarizados e outros com trajetória educacional fragilizada, exigindo dos dirigentes e colaboradores um olhar atento às múltiplas formas de aprender e processar ideias, sem elitismo, mas também sem empobrecimento da mensagem. Tal realidade reforça a necessidade de abordagens graduais, acessíveis e respeitosas, capazes de acolher diferentes capacidades de assimilação e realidades socioeconômicas sem comprometer a integridade doutrinária.

Adicionalmente, a cultura local e as experiências pessoais influenciam decisivamente na recepção da mensagem. Por isso, a divulgação doutrinária deve evitar modelos rígidos e engessados, acolhendo as dúvidas e promovendo a empatia e a escuta ativa. O expositor, o educador infantojuvenil ou o trabalhador espírita de forma geral deve evitar tanto a tecnocracia discursiva com a repetição estéril de fórmulas ou dogmas, quanto o sincretismo eclético que dissolve a identidade doutrinária. A solução está em seguir o método progressivo e lógico de Kardec: partir do conhecido para o desconhecido, do simples para o complexo, do sensível para o abstrato.

É necessário compreender que o Espiritismo não se impõe, mas se propõe. Portanto, o êxito na divulgação doutrinária não reside em convencer a todos, mas em semear com clareza, firmeza lógica e atitude amorosa, compreendendo o momento de cada Espírito. Assim, divulgar a Doutrina Espírita de forma eficaz exige alinhar coerência doutrinária, sensibilidade pedagógica e atenção à pluralidade de perfis intelectuais e sociais dos interlocutores.

Diante desses cuidados, cabe aos dirigentes, expositores e educadores espíritas ponderarem sobre suas práticas e renovarem, sempre que necessário, as estratégias de ensino e divulgação doutrinária utilizados em suas instituições. É preciso perguntar, com sinceridade e lucidez: estamos realmente favorecendo a interiorização dos valores e a vivência do Espiritismo segundo as características de nossos públicos, ou apenas reproduzindo modelos automáticos que desconsideram os processos cognitivos e culturais dos nossos interlocutores?

Compatível com a proposta kardequiana de fé raciocinada, a divulgação espírita deve unir clareza doutrinária e discernimento formativo, promovendo não apenas o entendimento conceitual, mas também o engajamento ético e a responsabilidade do ser perante o próprio desenvolvimento moral.



[1] Ver O livro dos médiuns, 1ª parte, Capítulo 3 – O método.

[2] Ver O evangelho segundo o espiritismo, Capítulo 19, item 7.



domingo, 27 de julho de 2025

A interpretação lúdica do Espiritismo

A interpretação lúdica do Espiritismo

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Harmonia, jul/2025

 

Um fenômeno preocupante vem se consolidando no Movimento Espírita Brasileiro nas últimas décadas: a transformação do Espiritismo em uma doutrina de consumo literário emocional, guiada por narrativas fantasiosas, sem rigor doutrinário e, em muitos casos, completamente descolada dos critérios de validação estabelecidos por Allan Kardec. Trata-se daquilo que podemos chamar de uma "interpretação lúdica do Espiritismo", em que o conteúdo doutrinário é tratado como um conjunto de histórias para entretenimento e não como um corpo de conhecimento filosófico, científico e moral.

Essa tendência se reflete na aceitação quase cega de informações contidas em romances mediúnicos e obras de caráter claramente ficcional, cujos conteúdos, apesar de frequentemente bem-intencionados, carecem de análise crítica, de fundamentação lógica e, principalmente, do aval metodológico da universalidade do ensino dos Espíritos, princípio que Kardec definiu como pedra angular da segurança doutrinária. Ignora-se que o Espiritismo não é o que um ou outro Espírito, ou médium, afirma isoladamente, mas sim o resultado de um processo coletivo, controlado, racional e convergente de ensino espiritual.

Infelizmente, muitos adeptos aceitam como verdades doutrinárias conceitos que surgiram em obras psicografadas de grande apelo comercial, sem qualquer preocupação em confrontá-los com os fundamentos estabelecidos na Codificação. Cria-se, assim, um cenário em que argumentos de autoridade, baseados no prestígio do médium ou na popularidade do Espírito comunicante, substituem o critério da fé raciocinada e o estudo comparativo e crítico. Essa postura, além de perigosa, fragiliza o movimento espírita, tornando-o vulnerável a mistificações, sincretismos e desvios conceituais.

O próprio Kardec, em diversas passagens de suas obras e especialmente na introdução de O Evangelho segundo o Espiritismo, advertiu contra o perigo de se aceitar ensinamentos particulares como expressão da doutrina. Ele reforça que os Espíritos superiores, por serem coerentes e esclarecidos, não se contradizem nas questões fundamentais, e que o controle universal do ensino dos Espíritos é a garantia contra os erros individuais. O Espírito Erasto, por sua vez, também alertou sobre o risco de que uma única teoria falsa, aceita como verdade, poderia ser a base para a construção de um sistema inteiro de ideias equivocadas.

Ao transformar o Espiritismo em uma sucessão de histórias de efeito emocional, com descrições fantásticas de um mundo espiritual moldado à imagem dos desejos e expectativas humanas, o Movimento Espírita abre mão de sua missão educativa e libertadora de consciências. Temas como colônias espirituais estruturadas à semelhança de cidades terrenas, Espíritos que mantêm funções fisiológicas humanas, processos de gestação espiritual e tantos outros conceitos que jamais passaram pelo crivo da universalidade tornaram-se, para muitos, dogmas modernos de um Espiritismo romanceado e desconectado de suas raízes científicas e filosóficas.

O resultado desse processo é o crescimento de um público espírita cada vez mais apegado ao emocionalismo, ao apelo místico e ao consumo acrítico de narrativas, em detrimento do estudo sistemático das obras básicas e da formação de um pensamento doutrinário sólido. A fé raciocinada, princípio fundamental da Doutrina Espírita, vai sendo substituída por uma fé literária, baseada na emoção e na autoridade de médiuns populares.

A superação desse cenário só será possível com a valorização do estudo sério, da pesquisa comparada e da revalorização da metodologia kardequiana como bússola segura. É preciso resgatar o verdadeiro sentido do Espiritismo: uma doutrina de conhecimento racional, de investigação moral e científica, cujo objetivo maior é a emancipação intelectual e espiritual do ser humano, e não a criação de mitologias modernas para entretenimento lúdico.

Respeitar o legado de Kardec significa, antes de tudo, ter o compromisso com a verdade, com a razão e com a responsabilidade doutrinária. Apenas assim o Espiritismo continuará sendo o que sempre foi: um farol de esclarecimento, e não uma coleção de histórias agradáveis, mas perigosamente ilusórias.

 

 

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Livro espírita: discernir sem sincretizar

Livro espírita: discernir sem sincretizar

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.207, jul/ago 2025, p. 27-28

 

É comum que muitos adeptos cheguem ao Espiritismo com um repertório de referências formado por livros espiritualistas de diversos matizes. Seja por meio de romances mediúnicos, textos de autoajuda, doutrinas esotéricas ou filosofias orientais, a porta de entrada para o interesse pelos temas espirituais não é, necessariamente, caracterizada pelo ensino dos Espíritos devidamente validado e apresentado nas obras de Allan Kardec. Essa trajetória, por mais legítima que seja como experiência pessoal, traz consigo um desafio inevitável: distinguir o conteúdo realmente espírita do que são interpretações, crenças ou práticas alheias aos princípios doutrinários.

O próprio Allan Kardec, ao elaborar o Catálogo Racional para se Fundar uma Biblioteca Espírita, incluiu obras de outras correntes filosóficas, científicas e até de contraditores. Sua intenção era clara: estimular o estudo comparado, a análise crítica e a formação de um espírito investigativo. Kardec não temia o contato com outras ideias, mas alertava para a necessidade de não confundir os fundamentos doutrinários espíritas com conceitos externos, evitando o sincretismo que compromete a coerência e a identidade do Espiritismo.

Nesse contexto, iniciativas como a campanha "Comece pelo Começo", promovida pela União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, ganham um significado ainda mais relevante. Destaca-se que essa campanha não propõe uma simples orientação sequencial de leitura, como se as obras de Kardec fossem uma etapa inicial a ser superada, complementada ou substituídas por outras obras mais “modernas e reveladoras”. O que ela propõe é muito mais profundo: trata-se da formação de uma estruturação sólida e segura dos princípios fundamentais da Doutrina Espírita, que servirão de referência permanente e indispensável para a análise crítica de qualquer outro conteúdo ou informação, seja de fonte mediúnica ou não, que se pretenda associar ao Espiritismo.

“Comece pelo Começo” não é apenas um convite à leitura, mas um chamado à formação de um olhar doutrinário maduro, analítico e bem fundamentado, capaz de filtrar com segurança as inúmeras informações supostamente espirituais disponíveis atualmente, muitas das quais, embora bem-intencionadas, podem colidir frontalmente com os ensinos dos Espíritos superiores sistematizados por Kardec.

O desafio, dessa maneira, não está em ler ou conhecer outras referências, mas em não absorver de forma acrítica conteúdos que colidam com os princípios espíritas fundamentais. Por exemplo, há no mercado editorial romances que descrevem o mundo espiritual de maneira incoerente com o ensino dos Espíritos validado pelo critério da universalidade. Alguns desses reproduzem na esfera extrafísica, indevidamente, a vida material e as relações sociais dos encarnados.[1]

É nesse cenário que os dirigentes e os estudantes espíritas precisam cultivar uma postura de fé raciocinada, um dos pilares do Espiritismo. Isso implica ler com discernimento, avaliar com base na lógica e na razão, e sempre confrontar novas informações com os critérios doutrinários. O Espiritismo, por sua natureza científica e filosófica, convida ao questionamento, mas também exige responsabilidade na formação de convicções.

Misturar conceitos sem o filtro adequado pode levar à deturpação da doutrina, à formação de um movimento espírita sincrético e desfigurado, ou à adoção de crenças místicas incompatíveis com os fundamentos teóricos. Por outro lado, um estudo aberto, mas criterioso, permite ao adepto compreender melhor a diversidade de pensamentos espirituais sem perder a base sólida que a codificação oferece.

O caminho não é o isolamento intelectual, mas a análise lúcida e rigorosa. Ler sem misturar, estudar sem sincretizar, conhecer sem abandonar os princípios.

Alguns podem alegar que sem a incorporação de novidades o Espiritismo estará engessado ou, ainda, estimulará um “fundamentalismo religioso”. Ao contrário, para se entender o natural dinamismo doutrinário, previsto pela ortodoxia espírita com o progresso das ideias, deve-se aplicar um método racional calcado em fatos e na fundamentação objetiva para o respectivo avanço e não na aceitação cega baseada em argumentos de autoridade, sofismas e falácias presentes em opiniões de encarnados ou desencarnados.  

“Começar pelo começo” implica conhecer e aplicar a prudência e solidez metodológica que Kardec valorizou partindo dos princípios doutrinários validados para se separar o joio do trigo e contribuir para um movimento espírita mais coerente e pujante.



[1] Para uma descrição doutrinária sobre a realidade espiritual, pode-se consultar, dentre outros textos, “Quadro da vida espírita” - Revista Espírita de abril/1869, “A fome entre os Espíritos” - Revista Espírita de junho de 1868 ou as dezenas de relatos no livro O céu e o inferno -2ª parte, por Allan Kardec.