segunda-feira, 11 de novembro de 2024

A prudência doutrinária perante romances mediúnicos

 

A prudência doutrinária perante romances mediúnicos


 Marco Milani


 Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, Ed. 202, set/out 2024, p. 33-34


Não é raro, principalmente entre neófitos, encontrar quem considera a vasta literatura romanceada e ficcional voltada ao mercado editorial espírita como sendo parte integrante da Doutrina Espírita. Ao equiparar romances mediúnicos às obras doutrinárias, comete-se um equívoco metodológico significativo. Allan Kardec adotou um critério de validação das informações obtidas por diferentes médiuns e em diferentes locais, denominado Controle Universal do Ensino dos Espíritos, o qual consistia em identificar o conteúdo convergente nas comunicações mediúnicas obtidas em diferentes grupos, por médiuns que não se conheciam entre si. Somente as informações que fossem corroboradas por múltiplas fontes, de maneira coerente e universal, eram aceitas como ensino dos Espíritos, integrantes do Espiritismo. Esse método não limitava a validade de princípios e valores a um único médium ou Espírito desencarnado.

Por outro lado, textos escritos por uma única fonte espiritual ou mediúnica podem expressar, isoladamente, apenas a opinião do Espírito comunicante.

Os romances mediúnicos merecem ser apreciados e estudados. O próprio Kardec incluiu vários deles no Catálogo Racional para se fundar uma biblioteca espírita, sugerindo ao estudioso espírita que tomasse contato com eles. Embora possam trazer informações e reflexões valiosas sobre a vida espiritual, não passam pelo mesmo rigor metodológico. Eles são frequentemente o produto da interpretação e das vivências de um determinado Espírito. Por isso, esses livros apresentam visões parciais, mais focados em impressões particularizadas do que em conhecimentos universais.

Certamente, os romances ditos “mediúnicos” são muito populares, ocupando lugar de destaque no gênero dos livros mais comercializados. Utilizando uma linguagem próxima do cotidiano e contando com histórias emocionantes que facilitam a identificação do leitor com as experiências narradas, romances ficcionais sensibilizam. Além disso, como são obras mais recentes, alguns chegam a acreditar que elas ofereceriam uma visão mais atualizada do mundo espiritual. Essa percepção, no entanto, tende a ser enganosa, pois a validade das informações não depende da data em que foram transmitidas, mas sim do método pelo qual foram verificadas. A história envolvente e convincente desses romances, atrelada à simpatia e à idoneidade dos médiuns, também pode levar muitos leitores a aceitarem essas obras como relatos fidedignos do mundo espiritual, sem o devido ceticismo ou análise crítica.

Especular que os romances mediúnicos sejam realistas e doutrinariamente mais robustos do que as obras de Kardec, baseando-se em argumentos de autoridade (quem assina a comunicação, quem foi o médium etc.) sem a necessária validação metodológica, é uma imprudência grave, que fere a esperada fé raciocinada. Tudo deve ser questionado e não se deve aceitar cegamente as informações mediúnicas de fonte única.

Assim, é relevante aos adeptos do Espiritismo distinguir entre o valor literário e moral dos romances mediúnicos e a Doutrina Espírita propriamente dita. Os romances podem ser motivacionais e úteis para reflexões pessoais, inclusive para a formulação de hipóteses descritivas da realidade espiritual, mas não devem ser confundidos com a doutrina estabelecida através do CUEE. Essa falta de distinção e a aceitação irrefletida de informações supostamente mediúnicas como verdades objetivas podem levar a distorções na compreensão do Espiritismo e à perpetuação de crenças não fundamentadas.

              Leiamos o que quisermos, mas com as lentes da razão.


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Kardec apontado como um representante deísta

 



Kardec apontado como um representante deísta

 

Marco Milani


Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 38, novembro de 2024, p. 8-9


Maurice Lachâtre, um intelectual francês e amigo de longa data do Professor Rivail, foi um ativo personagem envolvido na defesa da liberdade de expressão e em críticas contundentes à intransigência religiosa. Sua destacada atuação na imprensa fez com que atraísse a ira de políticos e sacerdotes variados, culminando em multas e processos judiciais. Ao estabelecer-se na Espanha para fugir de uma ordem de prisão, Lachâtre participou de um emblemático episódio na história do Espiritismo. Foi ele quem encomendou as obras espíritas de Allan Kardec, que acabaram sendo confiscadas e queimadas em praça pública por ordem do Bispo de Barcelona, em 1861. Tal ato com resquícios inquisitoriais ficou conhecido como Auto de Fé de Barcelona, e acabou por ajudar a divulgar o Espiritismo em terras espanholas.

Em 1865, Lachâtre publicou na França o Novo Dicionário Universal, o qual fazia algumas menções ao Espiritismo e a Allan Kardec. Em uma delas, no verbete “Deísmo”, Kardec foi apontado como o líder da Doutrina Espírita e representante do Deísmo na França. Em tradução livre, o texto integral do referido verbete é o seguinte:

 

“DEÍSMO, substantivo masculino (do latim Deus, Deus). Doutrina que admite a existência de Deus, mas rejeita a revelação e todas as suas consequências. Os adeptos do deísmo associam essa crença à religião natural. O culto dos teofilantropos era um deísmo. Distingue-se o deísmo do teísmo, sendo o primeiro oposto à religião revelada e o segundo oposto ao ateísmo. O embrião do deísmo mais puro foi encontrado na França desde o século XVII, especialmente em Bayle, mas é principalmente na Inglaterra, nos escritos de Bolingbroke, Coilins, Tindall, Toland, Shaftesbury, Woolston e Priestley, que ele se manifestou abertamente, sendo professado por todos aqueles que se autodenominavam livres pensadores. Voltaire, J. J. Rousseau e seus numerosos discípulos difundiram o deísmo na França no último século, e nos dias atuais, Allan Kardec, o líder da doutrina espírita, continua a obra desses grandes filósofos.” [1]

 

Como simpatizante do Espiritismo, Lachâtre conhecia as obras doutrinárias e, como amigo pessoal, a postura íntegra e intelectualmente aguçada de Allan Kardec. Ao citá-lo como representante do pensamento deísta na França, posteriormente à Voltaire e Rousseau, Lachâtre enfatiza o contraste que as ideias espíritas adotavam frente ao Teísmo das igrejas tradicionais.

Por sua vez, Kardec dedica um elogioso artigo na edição de janeiro/1866 da Revista Espírita sobre o Novo Dicionário Universal. No texto, Kardec afirma que havia sido publicada importante obra de interesse à Doutrina Espírita no mais alto grau e que:

 

 “Todos os termos especiais do vocabulário espírita se acham nesse vasto repertório, não com uma simples definição, mas com todos os desenvolvimentos que comportam, de sorte que seu conjunto formará um verdadeiro tratado do Espiritismo”. [2]

 

Especificamente sobre o conceito de Deísmo, Allan Kardec o contrastava com o Teísmo e o Panteísmo, porém o subdividiu em duas correntes: O Deísmo Independente e o Providencialista.[3]

Os adeptos da primeira corrente, os deístas independentes, são aqueles que creem em Deus, criador das leis gerais que regem perfeitamente o Universo, porém supõem que Deus não mais se ocuparia de suas criaturas.

Os deístas providencialistas, formando a segunda corrente, compartilham as mesmas noções dos deístas independentes sobre a perfeição e imutabilidade das leis naturais, porém diferenciando-se desses quanto a existência da providência divina, ou seja, Deus não estaria indiferente às suas criaturas e seria, ao mesmo tempo, transcendente e imanente no universo. A providência divina deísta, sob essa perspectiva, seria uma ação direta de Deus, em plena conformidade e sem derrogação (milagres) das leis da Natureza.

A Doutrina Espírita propõe uma concepção de Deus que não se subordina a nenhuma escola de pensamento anterior, distinguindo-se do Teísmo ao rejeitar a intervenção sobrenatural e a revelação fechada, e se distancia do Panteísmo ao afirmar a separação entre o criador e a criação. Ao mesmo tempo, aproxima-se do Deísmo providencialista ao entender que Deus, após criar o universo, continua a governá-lo de maneira justa e amorosa, sem violar suas próprias leis. Essa concepção coloca o Espiritismo em um campo único.

Em síntese, a Doutrina Espírita é uma filosofia que distingue-se de outras linhas espiritualistas no seu conjunto, com aspectos muito próximos ao Deísmo providencialista, abraçando a ideia de que o universo foi criado e não se confunde com Deus, o qual o rege por leis naturais, perfeitas e imutáveis.



[2] Ver Revista Espírita, jan/1866. O Espiritismo toma posição na filosofia e nos conhecimentos usuais.

[3] Ver Obras póstumas – 1ª parte - As cinco alternativas da humanidade.


terça-feira, 1 de outubro de 2024

A distinção entre a opinião de Kardec e a Doutrina Espírita: a questão da Teoria da Geração Espontânea


A distinção entre a opinião de Kardec e a Doutrina Espírita: a questão da Teoria da Geração Espontânea

 Marco Milani

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 37, outubro de 2024, p. 8-9

  

Até o início do século XIX, a geração espontânea era uma teoria amplamente aceita para explicar o surgimento de formas de vida simples, especialmente microrganismos, como fungos e vermes que frequentemente apareciam em alimentos ou matéria orgânica em decomposição. Desde o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), acreditava-se que certos organismos poderiam se formar diretamente da matéria inerte, e essa ideia persistiu por muitos séculos.

Mesmo após os experimentos de Louis Pasteur, em 1861, que refutou a geração espontânea e afirmou que a vida só surge de formas de vida preexistentes (teoria da biogênese), suas descobertas não esclareceram a questão de como a “primeira vida” teria surgido no passado remoto, quando as condições da Terra eram diferentes (DEBRÉ, 2000). O Professor Rivail e outros pesquisadores contemporâneos de Pasteur não estavam completamente satisfeitos com as explicações oferecidas e mantinham a ideia de que, em algum momento, sob circunstâncias específicas, a vida poderia ter surgido espontaneamente da matéria inanimada. Supunham que moléculas inorgânicas teriam se combinado de maneiras complexas, eventualmente formando as primeiras formas de vida.

A incerteza sobre a origem da vida fez com que Kardec tratasse o tema na obra A gênese[1] com a prudência necessária a todo investigador sensato. Ele sugere que, embora a ciência tenha demonstrado que seres complexos não podem surgir espontaneamente, permanecia uma lacuna no entendimento sobre como os primeiros seres vivos teriam surgido e, ainda, deixa claro que essa questão não deveria ser tratada como um princípio doutrinário, mas apenas como uma hipótese que, futuramente, poderia ou não ser confirmada pela ciência.

Como a Doutrina Espírita não foi estruturada sob as ideias de apenas um homem, mas ao contrário, decorreu de uma convergência de informações provenientes de diferentes fontes mediúnicas, Kardec sempre diferenciou suas opiniões do ensino generalizado dos Espíritos. Nesse sentido, sendo A gênese (KARDEC, 2021) uma obra doutrinária fundamental, Kardec inseriu a hipótese da geração espontânea como elemento necessário para a discussão do tema sobre a origem da vida, mas reforçou que não se tratava de ensino convergente dos Espíritos, apenas uma suposição.

 Na Revista Espírita de julho/1868, ainda sobre a questão da geração espontânea, Kardec assim se posiciona:

 

"Pessoalmente é para nós uma convicção, e se tivéssemos que tratá-la numa obra comum, tê-la-íamos resolvido pela afirmativa; mas numa obra constitutiva da Doutrina Espírita, as opiniões individuais não podem fazer lei" (KARDEC, 1868).

 Considerando-se a evolução da ciência desde o século XIX, é evidente que sua prudência foi justificada. Atualmente, a teoria da abiogênese, proposta no início do século XX por Oparin (1976) e posteriormente desenvolvida por Miller e Urey (1959), oferece uma explicação mais robusta e cientificamente mais embasada para a origem da vida na Terra. Essa teoria sugere que as primeiras moléculas autorreplicantes surgiram em condições químicas especiais na Terra primitiva, cerca de 3,5 a 4 bilhões de anos atrás (SMITH; SZOSTAK, 2014), diferentemente da geração espontânea, que sinalizava que a vida poderia surgir em qualquer momento sob certas circunstâncias. Assim, embora Kardec tenha defendido a geração espontânea como uma hipótese válida para sua época, a ciência moderna demonstrou que essa hipótese, na forma como era apresentada no século XIX, não é mais considerada uma explicação plausível.

A prudência de Kardec ao lidar com a questão da origem da vida sob a perspectiva científica demonstra sua habilidade em separar suas crenças pessoais dos princípios doutrinários. Ele compreendia que a ciência e o Espiritismo deveriam caminhar juntos, mas que a doutrina não deveria ser comprometida por teorias ainda em desenvolvimento. Essa abordagem cuidadosa assegurou que o Espiritismo permanecesse relevante e coerente ao longo do tempo, sem cair em contradição com os avanços da ciência.

 

Referências

DEBRÉ, Patrice. Pasteur e a revolução microbiana. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

KARDEC, Allan. Revista Espírita. Julho de 1868. Disponível em: https://www.febnet.org.br/.

KARDEC, Allan. A Gênese: Os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução da 4ª edição original francesa. São Paulo: USE, 2021

MILLER, Stanley L.; UREY, Harold C. Organic compound synthesis on the primitive Earth. Science, v. 130, n. 3370, p. 245-251, 1959. Dsponível em < https://www.science.org/doi/10.1126/science.130.3370.245>. Acessado em 22/09/24.

OPARIN, A. I. A origem da vida. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976

SMITH, E.; SZOSTAK, J. W. Abiogenesis and the origin of life. Nature Reviews Molecular Cell Biology, v. 15, n. 9, p. 667–672, 2014.

 


[1] Ver A gênese, Capítulo X, Itens 20 a 23 – Geração espontânea.


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Limites e desafios do diálogo inter-religioso no contexto espírita

 

Limites e desafios do diálogo inter-religioso no contexto espírita

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, Ed. 202, set/out 2024, p. 33-34

 

O diálogo inter-religioso, entendido como um esforço de comunicação e interação entre pessoas ou grupos de diferentes tradições e sistemas de crença, objetiva promover a compreensão mútua, o respeito, e a cooperação em questões de interesse comum. Em um mundo cada vez mais integrado, em que variadas culturas e cosmovisões sobrepõem-se, o diálogo entre as religiões é visto como um meio de superar preconceitos, construir pontes de entendimento e promover a paz.

Em regiões historicamente marcadas por conflitos de origem religiosa, esse tipo de diálogo tem contribuído para amainar antagonismos. Destacam-se, por exemplo, os esforços que buscam aproximar indianos e paquistaneses. Desde a partição do subcontinente indiano em 1947, que resultou na criação da Índia e do Paquistão como estados independentes, as relações entre hindus e muçulmanos têm sido tensas e frequentemente violentas. Iniciativas de diálogo inter-religioso, promovidas tanto por governos quanto por organizações da sociedade civil, procuram estimular a reconciliação entre essas comunidades.

Contudo, embora ofereça inegáveis benefícios, o diálogo inter-religioso também enseja cuidados, especialmente quando as diferenças que caracterizam as identidades de cada grupo não são adequadamente respeitadas.

Um dos desafios a serem enfrentados é o sincretismo, que pode ocorrer quando elementos de diferentes tradições filosóficas e religiosas são misturados, distorcendo as crenças originais. O sincretismo, inclusive, pode ser discutido como um fenômeno que surge em contextos de contato cultural intenso, onde há uma tentativa de harmonizar diferentes sistemas de crença. Embora essa harmonização possa, em alguns casos, enriquecer a espiritualidade individual, ela também pode levar à perda da integridade doutrinária.

A participação de representantes espíritas em eventos multiculturais que celebrem a paz entre diferentes crenças é esperada e bem-vinda, em nome da convivência fraterna e da tolerância religiosa.

Certamente, o Espiritismo é aberto ao diálogo e à análise de outras tradições e filosofias, porém isso não deve ser feito em detrimento da distorção dos próprios princípios e valores. Mesmo que haja uma intenção positiva, como promover a cooperação ou o entendimento entre diferentes partes, isso não deve acontecer às custas de sacrificar ou modificar os princípios e conceitos que formam a base doutrinária da identidade espírita.

Allan Kardec apontou que a unidade do Espiritismo depende da plena compreensão e prática de seus princípios e valores, destacando como condição indispensável que todas as partes do conjunto da doutrina estejam determinadas com precisão e clareza[1]. Superstições, crendices, misticismos e interpretações estanhas ao Espiritismo, quando não diferenciados dos próprios conceitos espíritas, prejudicam severamente essa unidade sob a perspectiva dos adeptos e simpatizantes.

Por um lado, portanto, o diálogo inter-religioso pode construir pontes de entendimento entre culturas com visões antagônicas, mas por outro, não se deve aplicar a mesma proposta para favorecer a quebra de identidade conceitual.

Imprudentemente, dirigentes de centros espíritas que não compreenderam a necessidade do respeito à doutrina que dizem abraçar, podem supor que as palestras e outros serviços oferecidos devam conter elementos sincréticos para melhor acolher aqueles que estão “chegando agora” e não conhecem o Espiritismo, para que se sintam confortáveis e atraídos por encontrar conceitos, práticas e símbolos com os quais estejam mais familiarizados. Supõem, erroneamente, que isso seja um ato fraterno de tolerância e “diálogo inter-religioso”, mas constitui-se em evidente deturpação doutrinária que ilude e confunde.

Quem procura uma casa espírita, seja ou não pela primeira vez, obviamente espera conhecer o Espiritismo em sua essência e não encontrar um arremedo sincrético ali preparado sob a alegação de uma questionável flexibilidade holística ou ecumênica.

O diálogo inter-religioso é uma oportunidade para fortalecer o Espiritismo em ambientes específicos com esse claro propósito, sem comprometer a clareza do ensino dos Espíritos apresentados nas obras de Allan Kardec na própria casa espírita.



[1] Ver Revista espírita, dez/1868, Constituição transitória do Espiritismo - Dos cismas.


sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Kardec, o bom senso encarnado

 


Kardec, o bom senso encarnado

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, Ed. 202, set/out 2024, p. 21 e 22


Tradicionalmente, no dia 3 de outubro, os espíritas destacam a relevância e o legado do Professor Rivail, posteriormente conhecido como Allan Kardec, lembrando o seu nascimento nessa data, em Lyon, França. Educador, filósofo e cientista, Kardec deve ser homenageado pelo protagonismo na estruturação e divulgação do Espiritismo, com suas valiosíssimas contribuições à compreensão das questões que sempre intrigaram a humanidade: quem somos, de onde viemos e para onde iremos.

              A Doutrina Espírita, apesar de não ser o produto de um só homem, expressa a síntese do conhecimento obtido no intercâmbio mediúnico, criteriosamente analisado, organizado e validado por Kardec. Sua disciplina, sensatez, postura ética e capacidade administrativa diante das inúmeras atividades sob sua responsabilidade, e os desafios decorrentes do embate entre as novas abordagens trazidas pelo Espiritismo e as ideias cristalizadas, geraram a admiração e o respeito não somente daqueles que compartilharam de sua proximidade, mas da sociedade em geral.

Após sua desencarnação, algumas características marcantes de Kardec foram evidenciadas nos discursos proferidos durante seu funeral[1]. Jules Levent, vice-presidente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), comentou sobre a benevolência e austeridade do mestre lionês, enfatizando sua ponderação e lógica incomparável, que pareciam ser inspiradas.

O renomado astrônomo Camille Flammarion pontuou aspectos relevantes sobre a trajetória de pesquisa do Professor Rivail, até que ele se dedicou integralmente ao estudo e divulgação do Espiritismo a milhões de pessoas em diversos continentes. Flammarion enalteceu o poder consolador e a proposta científica do Espiritismo. Por conta da razão reta e judiciosa de Kardec, Flammarion o designou como o “bom senso encarnado”.

              Alexandre Delanne, amigo pessoal e membro da SPEE, expressou o sentimento de pesar que ele compartilhava com inúmeros adeptos que tiveram a oportunidade de conhecer a filosofia dos Espíritos, graças à habilidade e sabedoria do mestre, que conseguiu colocá-la à altura de todas as inteligências, desde as mais simples até as mais eruditas.

              Por fim, o senhor Muller, amigo de Kardec e de sua esposa Amélie, enalteceu a conduta do dedicado educador, detentor de brilhante inteligência, que sempre procurou auxiliar a todos, inclusive com aulas gratuitas sobre diversas disciplinas para aqueles que não tinham condições financeiras. Com relação ao Espiritismo, o senhor Muller apontou que Kardec vivenciava completamente a tríade: Razão, Trabalho e Solidariedade.

Todos os elogiosos discursos tinham como pontos comuns a benevolência, a ética e a acuidade intelectual, reconhecidos pela comunidade espírita e científica da época como características desse nobre Espírito que acabava de deixar a experiência carnal.

              A capacidade de Kardec para pensar de forma clara, precisa e crítica envolvia uma percepção aguçada e a habilidade de discernir detalhes complexos, de identificar nuances em argumentos e processar informações de maneira lógica e coerente, algo que ele simplificadamente chamava de bom senso, mas que Flammarion capturou adequadamente em seu discurso póstumo. Ao analisar situações, problemas ou conceitos com profundidade, reconhecendo padrões, implicações e possíveis soluções que outros podem não perceber, Kardec demonstrava a tolerância e paciência para comunicar-se e esclarecer fraternalmente como um verdadeiro educador e líder.

              Nos trabalhos iniciais para a elaboração da doutrina espírita, fazia-se necessária a centralização do processo em um só homem encarnado, como relata Kardec em suas anotações particulares[2], a fim de manter a unidade e evitar o desvirtuamento conceitual diante de diferentes opiniões e motivações. Contudo, como elemento fundamental para a interpretação e aprimoramento do edifício doutrinário, alinhado com a própria realidade, Kardec insistiu no uso da razão e da lógica para unir a todos e superar divergências em nome do bom senso.

Não por acaso, os conceitos de fé inabalável e de fé raciocinada perpassam todas as obras fundamentais do Espiritismo, uma vez que a proposta doutrinária exige a interpretação crítica dos fatos para se contrapor à superstição e ao misticismo inerentes a diversas correntes religiosas estabelecidas com seus dogmas inquestionáveis. O Espiritismo representa uma ruptura com o pensamento acrítico e devocional religioso, e com as crendices populares, situação que exige maturidade moral e intelectual para ser compreendida por adeptos e não-adeptos.

A adoção do Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE), como método prevalente para validar as informações mediúnicas, representou um marco crucial ao corpo teórico espírita e exemplificou a prudência inerente à fé raciocinada. A autoridade do Espiritismo repousa essencialmente na aplicação desse método.[3]

Passados quase dois séculos após a publicação de sua obra inicial, o Espiritismo ainda é um grande desconhecido para aqueles que não meditaram adequadamente no ensino dos Espíritos, validados pelo CUEE, e o aplicaram em suas vidas.

Possivelmente, a maneira mais efetiva de se homenagear Kardec não é pela simples apresentação de seus dados biográficos ou contando curiosidades históricas de sua vida privada, mas estudando seriamente a doutrina espírita, autoconhecendo-se, praticando a caridade e analisando criticamente qualquer informação envolvendo a natureza e a realidade espiritual com o bom senso que ele tanto prezou e se esforçou para que todos utilizassem.



[1] Ver Revista Espírita, maio/1869 – Discursos pronunciados sobre o túmulo

[2] Ver Obras Póstumas, 2ª parte – Minha iniciação no Espiritismo – O meu sucessor

[3] Ver O Evangelho Segundo o Espiritismo – Introdução – item II - Autoridade da doutrina espírita


Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2024/09/reDE-202-Set-Out-2024.pdf

domingo, 1 de setembro de 2024

A boa nova trazida pelo Espiritismo

 


A boa nova trazida pelo Espiritismo

 

Marco Milani


 Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 36, setembro de 2024, p. 9-11


A palavra Evangelho (em grego, Euangelion), etimologicamente é composta por dois elementos: Eu, que significa bom ou boa, e Angelion, que significa mensagem ou notícia. Portanto, Evangelho significa boa notícia, boa mensagem ou boa nova.

Na cultura cristã, Evangelho passou a ser utilizado genericamente para designar a mensagem central trazida por Jesus, referente à salvação do homem e ao Reino de Deus. A expressão “boa nova”, portanto, está tradicionalmente associada ao Evangelho de Jesus, sendo entendida como uma mensagem de esperança e um roteiro de conduta à humanidade.

As principais fontes históricas dos ensinos cristãos sãos os Evangelhos cujas autorias são atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João, ainda que tais registros estejam sujeitos a questionamentos críticos como a incerteza sobre a real origem e datação dos textos, a confiabilidade das fontes utilizadas e algumas discrepâncias nos relatos. Além disso, a influência das intenções teológicas dos autores e o contexto sociocultural da época impactam a objetividade desses registros. A tradição oral antes da escrita e a comparação com outras fontes históricas contemporâneas também são analisados modernamente para avaliar a precisão e a autenticidade dos relatos evangélicos.

Na perspectiva espírita, essa boa nova ganha uma dimensão ampliada, pois o Espiritismo não só reafirma os ensinamentos morais de Cristo, como também os reinterpreta à luz da razão e da ciência.

Apresentado ao mundo por Allan Kardec no século XIX, o Espiritismo surgiu como um marco na evolução do pensamento filosófico, oferecendo uma nova perspectiva sobre a “natureza, origem e destino dos Espíritos, assim como suas relações com o mundo corporal”[1]. Sendo uma doutrina filosófica com consequências morais, Jesus foi apontado como a referência máxima de conduta e, ainda, seus ensinamentos foram esclarecidos e desenvolvidos sob novas luzes.

Ao propor uma visão mais abrangente do Evangelho, o Espiritismo destaca a importância da evolução espiritual contínua, em diferentes encarnações, bem como da responsabilidade individual perante a leis divinas.

Uma das principais concepções da boa nova espírita é a abordagem da preexistência e imortalidade da alma em um ambiente regido por leis naturais perfeitas. Enquanto muitas filosofias e doutrinas apresentam a origem do ser e a vida após a morte como mistérios ou dogmas inquestionáveis, o Espiritismo as trata como uma realidade natural, passível de estudo e compreensão. Por meio da mediunidade, fenômeno amplamente documentado e estudado da doutrina espírita, é possível estabelecer valiosas comunicações com os seres desencarnados, demonstrando a continuidade da vida além do corpo físico e nutrir-se dos esclarecimentos proporcionados diretamente sob a ótica espiritual. Esse entendimento não só alivia o medo da morte, mas também oferece uma visão consoladora sobre o destino da alma, integralmente fundamentada na justiça e bondade divina.

A reencarnação, como elemento central na boa nova espírita, justifica o fato de que cada indivíduo vive múltiplas experiências objetivando o seu progresso moral e intelectual. Com uma explicação lógica para as desigualdades e sofrimentos humanos, o Espiritismo aponta a inúmeras oportunidades de aprimoramento espiritual. Sendo o principal mecanismo da justiça divina, em que cada ser depara-se com os resultados de suas escolhas, acertadas ou não, o fenômeno reencarnatório reforça a ideia de responsabilidade pessoal, como também promove uma visão otimista e evolutiva da existência, onde as dificuldades enfrentadas na vida alinham-se a um propósito educativo e transformador do ser.

Outro aspecto relevante da boa nova espírita é o axioma de que todo efeito possui uma causa, vinculando as ações realizadas ou intencionadas pelo indivíduo com as consequências, positivas ou negativas, refletidas em sua vida atual ou em futuras encarnações. A compreensão desse axioma estimula o desenvolvimento de uma consciência ética mais profunda, onde a prática do bem se torna não apenas uma virtude, mas uma necessidade para a construção de um futuro melhor.

A moral cristã, fundamentada na caridade, na humildade e no perdão, é outro ponto fundamental da boa nova sob a perspectiva espírita. No entanto, ultrapassa a simples adesão a esses princípios, propondo uma aplicação prática e cotidiana. O Espiritismo incentiva o autoconhecimento e o aperfeiçoamento constante do indivíduo pela prática do bem. Essa transformação é essencial para o progresso espiritual e para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. A caridade, em particular, é enfatizada no ensino dos Espíritos como a base de todas as virtudes, sendo considerada o verdadeiro caminho para a harmonia e a paz interior.

Ao promover valores como a liberdade e a solidariedade, o Espiritismo alinha-se com as propostas que valorizam os direitos individuais, as ações voluntárias humanistas e a liberdade de consciência.

Por fim, é importante destacar a relação do Espiritismo com a ciência, especificamente pelo pensamento crítico e racional que lhe permite ressaltar um de seus pilares: a fé raciocinada. Ao contrário de muitas linhas religiosas que veem a ciência como uma ameaça à fé, o Espiritismo a considera uma aliada na busca pela verdade. Por meio do estudo dos fenômenos mediúnicos e das investigações sobre a natureza da alma, o Espiritismo concilia fé e razão, oferecendo uma visão coerente e integrada do universo. Essa abordagem lógica permite que a doutrina espírita seja acessível a diferentes públicos, independentemente de crenças religiosas ou culturais, promovendo um diálogo aberto sobre as grandes questões da existência.

A boa nova trazida pelo Espiritismo representa, sinteticamente, um avanço no conhecimento revigorando os valores cristãos, condizentes com as necessidades e os desafios do mundo contemporâneo. Combinando ética, ciência e espiritualidade, o Espiritismo oferece uma mensagem de esperança e progresso para a humanidade, baseada na compreensão da pré-existência e da imortalidade da alma, na reencarnação, no axioma de causa e efeito e na prática do amor e da caridade. Essa nova visão do Evangelho, profundamente racional e fraterna, se coloca como um farol para aqueles que buscam um sentido maior na vida e um caminho para a evolução pessoal.

 



[1] Ver O que é o Espiritismo – Preâmbulo, de Allan Kardec.


sexta-feira, 12 de julho de 2024

A responsabilidade do dirigente espírita nas palestras públicas


 A responsabilidade do dirigente espírita nas palestras públicas

 

Marco Milani

 

 Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 201, jul/ago 2024, p. 34-35

 

Dentre as diversas atividades desenvolvidas em uma instituição espírita, o oferecimento de palestras públicas é uma das mais destacadas, não somente pela possibilidade de divulgação do Espiritismo à sociedade, mas também por representar uma prática relevante de caridade. O conhecimento sobre a existência e a natureza do mundo espiritual, assim como suas relações com o mundo corpóreo, amplia o horizonte intelectual e permite compreender a perfeita Justiça Divina que rege nossas vidas. O entendimento dessa realidade, aliado ao autoconhecimento, conforta, fortalece e motiva os indivíduos a buscarem uma situação mais feliz, com a certeza de que todo esforço voltado ao bem será recompensado.

Para apresentar essa riqueza de princípios e valores filosóficos com aplicações práticas, a tribuna espírita deve ser ocupada por trabalhadores comprometidos com a divulgação sincera, transparente e, principalmente, coerente do Espiritismo. A base doutrinária representada pelo ensino dos Espíritos, apresentada por Allan Kardec em suas obras após rigoroso critério de validação das informações obtidas por múltiplas fontes pelo método que ele mesmo denominou Controle Universal, é o caminho seguro que qualquer palestrante deve utilizar.

Um equívoco comum, cometido por aqueles que não percebem a significativa diferença entre as informações validadas metodologicamente por Allan Kardec e as informações obtidas por outras fontes que não passaram por nenhum processo rigoroso de análise crítica, lastreado em fatos objetivos, é supor que novidades descritas em romances ou mensagens mediúnicas sejam atualizações da base doutrinária.[1]

De forma simples, pode-se colocar o problema da seguinte maneira: o Espiritismo se estrutura sobre o ensino dos Espíritos, validado pelo Controle Universal, porém, para muita gente, as opiniões de médiuns e escritores teriam o mesmo peso ou até superariam as obras de Allan Kardec.

Certamente, o Espiritismo deve acompanhar o progresso da ciência, e isso é uma condição prevista por Kardec. Logo, o contínuo aprimoramento do conhecimento é uma característica intrínseca da ortodoxia espírita. A fé raciocinada decorre primordialmente da compreensão dos fatos e da argumentação filosófica robusta para ser exercida.

Com a mesma prudência da ciência, que avança considerando evidências e a aplicação de um método capaz de garantir a segurança dos resultados obtidos, o Espiritismo assim o faz. Até o momento, os princípios doutrinários não necessitaram ser reformulados diante de novas informações, pois nenhuma foi validada objetivamente.

Sendo assim, o palestrante espírita deve expor o conteúdo das obras de Allan Kardec e não confundir o público com informações contraditórias e sem validação, mesmo aquelas presentes nos milhares de títulos de romances e outras obras amplamente comercializadas no mercado editorial voltado aos leitores espiritualistas. A seleção de palestrantes, portanto, é de extrema relevância para a manutenção da integridade doutrinária e para o correto desenvolvimento das atividades dos centros espíritas. Cabe aos dirigentes a responsabilidade de convidar oradores que possuam um conhecimento baseado nos princípios estabelecidos por Allan Kardec, evitando aqueles que disseminam ideias místicas, fantasiosas ou opiniões pessoais polêmicas e conflitantes.

Além da solidez doutrinária, é essencial que os palestrantes se comuniquem de maneira clara e envolvente, com técnicas apropriadas de oratória, expressividade corporal, uso de recursos audiovisuais e capacidade de motivar o público. A promoção de cursos ou seminários de expositores nas casas espíritas gera um significativo aumento da qualidade dos colaboradores para essa tarefa. Adicionalmente, o compartilhamento fraterno de palestrantes entre instituições próximas ou a presença de convidados para determinados temas previamente selecionados favorece a sinergia do movimento espírita. O órgão local da USE (no Estado de São Paulo) ou das entidades federativas de cada região poderá, sem dúvida, contribuir nesse sentido.

Recomenda-se, por fim, a formação de um cadastro positivo de palestrantes locais que demonstrem o comprometimento e a coerência doutrinária esperados, assim como a disponibilidade para atuar nas casas da região.

 

 

 

 



[1] Ver O evangelho segundo o espiritismo, Introdução, item 2 – Autoridade da doutrina espírita.