segunda-feira, 7 de julho de 2025

Livro espírita: discernir sem sincretizar

Livro espírita: discernir sem sincretizar

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.207, jul/ago 2025, p. 27-28

 

É comum que muitos adeptos cheguem ao Espiritismo com um repertório de referências formado por livros espiritualistas de diversos matizes. Seja por meio de romances mediúnicos, textos de autoajuda, doutrinas esotéricas ou filosofias orientais, a porta de entrada para o interesse pelos temas espirituais não é, necessariamente, caracterizada pelo ensino dos Espíritos devidamente validado e apresentado nas obras de Allan Kardec. Essa trajetória, por mais legítima que seja como experiência pessoal, traz consigo um desafio inevitável: distinguir o conteúdo realmente espírita do que são interpretações, crenças ou práticas alheias aos princípios doutrinários.

O próprio Allan Kardec, ao elaborar o Catálogo Racional para se Fundar uma Biblioteca Espírita, incluiu obras de outras correntes filosóficas, científicas e até de contraditores. Sua intenção era clara: estimular o estudo comparado, a análise crítica e a formação de um espírito investigativo. Kardec não temia o contato com outras ideias, mas alertava para a necessidade de não confundir os fundamentos doutrinários espíritas com conceitos externos, evitando o sincretismo que compromete a coerência e a identidade do Espiritismo.

Nesse contexto, iniciativas como a campanha "Comece pelo Começo", promovida pela União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, ganham um significado ainda mais relevante. Destaca-se que essa campanha não propõe uma simples orientação sequencial de leitura, como se as obras de Kardec fossem uma etapa inicial a ser superada, complementada ou substituídas por outras obras mais “modernas e reveladoras”. O que ela propõe é muito mais profundo: trata-se da formação de uma estruturação sólida e segura dos princípios fundamentais da Doutrina Espírita, que servirão de referência permanente e indispensável para a análise crítica de qualquer outro conteúdo ou informação, seja de fonte mediúnica ou não, que se pretenda associar ao Espiritismo.

“Comece pelo Começo” não é apenas um convite à leitura, mas um chamado à formação de um olhar doutrinário maduro, analítico e bem fundamentado, capaz de filtrar com segurança as inúmeras informações supostamente espirituais disponíveis atualmente, muitas das quais, embora bem-intencionadas, podem colidir frontalmente com os ensinos dos Espíritos superiores sistematizados por Kardec.

O desafio, dessa maneira, não está em ler ou conhecer outras referências, mas em não absorver de forma acrítica conteúdos que colidam com os princípios espíritas fundamentais. Por exemplo, há no mercado editorial romances que descrevem o mundo espiritual de maneira incoerente com o ensino dos Espíritos validado pelo critério da universalidade. Alguns desses reproduzem na esfera extrafísica, indevidamente, a vida material e as relações sociais dos encarnados.[1]

É nesse cenário que os dirigentes e os estudantes espíritas precisam cultivar uma postura de fé raciocinada, um dos pilares do Espiritismo. Isso implica ler com discernimento, avaliar com base na lógica e na razão, e sempre confrontar novas informações com os critérios doutrinários. O Espiritismo, por sua natureza científica e filosófica, convida ao questionamento, mas também exige responsabilidade na formação de convicções.

Misturar conceitos sem o filtro adequado pode levar à deturpação da doutrina, à formação de um movimento espírita sincrético e desfigurado, ou à adoção de crenças místicas incompatíveis com os fundamentos teóricos. Por outro lado, um estudo aberto, mas criterioso, permite ao adepto compreender melhor a diversidade de pensamentos espirituais sem perder a base sólida que a codificação oferece.

O caminho não é o isolamento intelectual, mas a análise lúcida e rigorosa. Ler sem misturar, estudar sem sincretizar, conhecer sem abandonar os princípios.

Alguns podem alegar que sem a incorporação de novidades o Espiritismo estará engessado ou, ainda, estimulará um “fundamentalismo religioso”. Ao contrário, para se entender o natural dinamismo doutrinário, previsto pela ortodoxia espírita com o progresso das ideias, deve-se aplicar um método racional calcado em fatos e na fundamentação objetiva para o respectivo avanço e não na aceitação cega baseada em argumentos de autoridade, sofismas e falácias presentes em opiniões de encarnados ou desencarnados.  

“Começar pelo começo” implica conhecer e aplicar a prudência e solidez metodológica que Kardec valorizou partindo dos princípios doutrinários validados para se separar o joio do trigo e contribuir para um movimento espírita mais coerente e pujante.



[1] Para uma descrição doutrinária sobre a realidade espiritual, pode-se consultar, dentre outros textos, “Quadro da vida espírita” - Revista Espírita de abril/1869, “A fome entre os Espíritos” - Revista Espírita de junho de 1868 ou as dezenas de relatos no livro O céu e o inferno -2ª parte, por Allan Kardec.

 

sábado, 5 de julho de 2025

O “Eco d’Além Túmulo” e sua relevância histórica

O “Eco d’Além Túmulo” e sua relevância histórica

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.207, jul/ago 2025, p. 9-10

 

A história do Espiritismo no Brasil se entrelaça com o desenvolvimento de seus meios de divulgação e organização. Entre esses marcos, destaca-se a criação do periódico Eco d’Além Túmulo, publicado pela primeira vez na cidade baiana de Salvador, em julho de 1869. Trata-se do primeiro jornal espírita brasileiro de que se tem registro, surgido poucos meses depois da desencarnação de Allan Kardec. Sua existência representa não apenas um marco editorial, mas também um testemunho da recepção e difusão da Doutrina Espírita em solo brasileiro, em um contexto social e cultural ainda profundamente marcado pelo catolicismo.

Luiz Olímpio Teles de Menezes, seu fundador, traduziu diversos trechos das obras de Allan Kardec e já dirigia o primeiro grupo familiar de estudos espíritas do Brasil, criado em 1865, também em Salvador. O jornal surgiu como extensão natural desse esforço de divulgação, assumindo um papel central na difusão dos princípios do Espiritismo segundo a codificação kardequiana.

Sua relevância pode ser observada sob diversos aspectos. Em primeiro lugar, o Eco d’Além Túmulo funcionava como veículo de instrução doutrinária. Trazia artigos que explicavam os fundamentos do Espiritismo, publicava comunicações mediúnicas, respostas a críticos e reflexões sobre moral cristã e espiritualidade. Em um período em que os livros eram escassos e caros, um jornal de circulação regular oferecia uma forma mais acessível de contato com a nova doutrina, cumprindo um papel educativo entre os leitores e simpatizantes.

Em segundo lugar, o periódico exercia função de articulação do nascente movimento espírita brasileiro. Através dele, formaram-se redes de correspondência, divulgaram-se reuniões e experiências mediúnicas, e criaram-se os primeiros vínculos entre os diversos núcleos espíritas que começavam a surgir no país. Assim, o Eco d’Além Túmulo pode ser considerado uma espécie de catalisador inicial do movimento, ajudando a construir uma identidade doutrinária nacional ainda em seus primeiros passos.

A iniciativa era ousada e desafiadora. O Brasil do século XIX era ainda um Império, com forte influência da Igreja Católica, e qualquer ideia que contrariasse os dogmas religiosos estabelecidos encontrava resistência. Além disso, o próprio conceito de liberdade de imprensa era limitado. Ainda assim, o periódico manteve-se firme em sua proposta de divulgar a filosofia espírita com seriedade, coragem e compromisso com a razão. Por essa razão, ele representa também um exemplo de resistência intelectual e liberdade de pensamento.

Outro ponto notável é que, ao contrário de outros movimentos religiosos que surgiram no país, o Espiritismo não chegou ao Brasil por via missionária estrangeira, mas sim através de figuras como Teles de Menezes, que conheceram a doutrina por leitura direta das obras kardecistas. Isso confere ao Eco d’Além Túmulo uma importância ainda maior, pois simboliza a autonomia e o protagonismo dos primeiros espíritas brasileiros na assimilação e tradução do pensamento espírita à realidade local.

Embora sua circulação tenha sido restrita e seu tempo de publicação limitado a pouco menos de um ano, sua influência foi duradoura. Serviu de modelo para outras iniciativas similares em diferentes estados, inspirando a fundação de novos periódicos, centros e sociedades espíritas. Nas décadas seguintes, a imprensa espírita se tornaria uma das principais ferramentas de expansão e consolidação do Espiritismo no Brasil, com publicações como Reformador, O Clarim e outras tantas que marcaram épocas distintas.

Portanto, falar da relevância do Eco d’Além Túmulo é reconhecer não apenas seu pioneirismo, mas também seu papel estruturante. Ele representa o momento em que o Espiritismo deixou de ser um estudo privado, reservado a círculos intelectuais, e passou a se apresentar ao público como proposta filosófica, ética e espiritual de alcance social. É, em certo sentido, o símbolo do início da presença espírita na vida pública brasileira.

Com base nos ideais de racionalidade, moralidade e imortalidade da alma, o jornal fundado por Teles de Menezes pavimentou um caminho que mais tarde transformaria o Brasil no país com maior número de espíritas do mundo. Sua memória, portanto, não deve ser tratada como mera curiosidade histórica, mas como parte fundamental da trajetória do pensamento espírita no Brasil. Em tempos em que a informação circula em velocidade e volume nunca vistos, recordar o papel formativo de um periódico do século XIX é também lembrar que a qualidade do debate e o compromisso com o esclarecimento continuam sendo valores essenciais para o Espiritismo.

Hoje, resgatar a história do Eco d’Além Túmulo é um exercício de gratidão à ousadia daqueles que, antes de nós, abriram as primeiras veredas para a luz do Espiritismo em terras brasileiras.

 

Nota: as edições do Eco d’Além Túmulo podem ser consultadas em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=706728&pagfis=1

 

 

quarta-feira, 2 de julho de 2025

A realidade espiritual e a ilusão das necessidades materiais

 

A realidade espiritual e a ilusão das necessidades materiais

 

Marco Milani

 

Texto publicado na revista Candeia Espírita, nº 46, jul/2025, p. 7-8

 

O relato mediúnico do Padre Bizet, publicado por Allan Kardec na Revista Espírita de junho de 1868, apresenta uma descrição impactante de um fenômeno que afeta muitos Espíritos após a morte física: a persistência ilusória de sensações materiais.

Bizet narra as cenas de sofrimento de desencarnados que, tomados pela perturbação, acreditavam estar submetidos a uma fome dilacerante, reagindo com desespero, violência e alucinação. Observando esses Espíritos, ele sinaliza com clareza que não há estômago para digerir, nem órgãos para assimilar, pois, no plano espiritual, a fisiologia orgânica não encontra correspondência.

Essa constatação remete a um princípio doutrinário: os Espíritos desencarnados não possuem órgãos físicos ou assemelhados. A manutenção de percepções típicas da vida corporal é fruto de condicionamentos psíquicos e apegos não superados, jamais da existência de uma estrutura orgânica espiritual. Em abril de 1859, Kardec já havia sistematizado esse ensinamento no artigo "Quadro da Vida Espírita", publicado também na Revista Espírita, onde resume as principais características da existência espiritual, entre elas a afirmação categórica: "não têm órgãos materiais". Isso implica que todas as percepções, deslocamentos e formas de comunicação dos Espíritos ocorrem por meios fluídicos, distintos das funções biológicas da matéria densa.

Compreender essa diferença é essencial para a construção de uma visão racional e desmaterializada da vida pós-morte, como propõe o Espiritismo. As sensações de fome, sede ou dor relatadas por Espíritos em sofrimento são, segundo Kardec, reflexos psíquicos gerados pela condição moral e emocional em que se encontram, resultantes de hábitos materiais, culpa, apego ou ignorância. À medida que o Espírito se esclarece e se liberta desses vínculos, tais ilusões desaparecem.

Esse entendimento contrasta com certas descrições encontradas em romances mediúnicos contemporâneos, que muitas vezes apresentam o mundo espiritual como uma extensão do mundo físico, com Espíritos sujeitos a necessidades orgânicas como alimentação, sono, digestão e até mesmo reprodução biológica. Um exemplo particularmente grave dessa distorção doutrinária é a afirmação, feita em determinada obra ficcional mediúnica, de que existiriam casos de gravidez no mundo espiritual. Tal ideia, além de absolutamente incompatível com a teoria espírita que torna biologicamente e espiritualmente impossível qualquer processo gestacional entre desencarnados.

Embora tais narrativas possam parecer razoáveis sob a perspectiva de encarnados, quando analisadas criticamente ferem os fundamentos estabelecidos pelo ensino convergente dos Espíritos e podem gerar confusão entre aqueles mais afeitos à literatura ficcional espiritualista.

A tentativa de justificar contradições sem qualquer lastro metodológico objetivo com a frase "Kardec não disse tudo" representa uma distorção do preceito da fé raciocinada. Como bem alertou o Espírito Erasto[1], uma única teoria falsa pode servir de base para a edificação de um sistema inteiro de erros, que ruirá diante da menor confrontação com a verdade. O Espiritismo admite progresso e novos conhecimentos, mas sempre mediante critérios de validação rigorosa, fundamentados em fatos, lógica e no método objetivo. Revelações isoladas, por mais eloquentes que sejam os médiuns ou Espíritos que as transmitam, não podem se sobrepor àquilo que foi universalmente ensinado, confirmado e consolidado.

O Espiritismo, como ciência de observação e filosofia moral, convida ao estudo sério e à reflexão crítica, livre de melindres por contrariar autores de estimação ou narrativas populares. É dever do espírita responsável distinguir entre o que é ensino doutrinário validado, fruto da fé raciocinada e do método, e o que são criações literárias ou expressões simbólicas sem valor doutrinário.

Exemplos como o relato de Bizet e o "Quadro da Vida Espírita", assim como toda a 2ª parte do livro O céu e o inferno, de Allan Kardec, contendo dezenas de depoimentos de desencarnados sobre como se encontravam na erraticidade permanecem como referências essenciais para aqueles que desejam compreender, com fidelidade e lucidez, a vida espiritual. Reconhecer que os Espíritos não possuem órgãos materiais não é uma mera questão teórica; é uma exigência lógica e doutrinária para manter a coerência da filosofia espírita e a credibilidade de seu projeto educativo e emancipador.

Somente com essa base segura poderemos construir um entendimento racional, ético e livre de ilusões sobre a vida após a morte, em sintonia com os princípios decorrentes das Leis Naturais.

 



[1] Ver O livro dos médiuns – 2ª parte, Capítulo XX, item 230.


terça-feira, 17 de junho de 2025

Intersecções entre a Bíblia e a Economia - por Mark Hendrickson

 


Intersecções entre a Bíblia e a Economia

Mark Hendrickson

17 de junho de 2025

 

É compreensível que as pessoas tenham reservas quando alguém insere a Bíblia em uma discussão sobre questões econômicas. A Bíblia certamente não é um manual de economia. Seu tratamento de temas econômicos é esporádico e breve, faltando-lhe detalhamento e profundidade. Não surpreende, portanto, que as implicações econômicas da Bíblia sejam percebidas de muitas formas diferentes.

A Bíblia aborda temas econômicos de maneiras que às vezes são descritivas (neutras em relação a valores) e outras vezes prescritivas (carregadas de valores, normativas). Essas distinções são cruciais.

Por exemplo, a Bíblia é puramente descritiva ao relatar um episódio que ilustra a lei da oferta e da demanda em funcionamento durante o cerco sírio a Samaria (2 Reis 6:24-7:18). Quando a oferta diminui, os preços sobem; quando a oferta aumenta, os preços caem. A Bíblia não emite qualquer juízo de valor sobre o funcionamento da oferta e da demanda. Essa lei econômica não é nem certa nem errada; é simplesmente a forma como o mundo funciona, tão neutra quanto dizer que o fogo queima a madeira.

A Bíblia também é meramente descritiva em seu tratamento das trocas voluntárias, considerando as transações entre compradores e vendedores a preços mutuamente aceitáveis como uma característica comum da vida na Terra – por exemplo, a compra de um túmulo por Abraão para Sara (Gênesis 23:15) e a aquisição de suprimentos por Davi para uma oferta de holocausto (1 Crônicas 21:24-25). Até mesmo a usura (cobrança de juros) é tratada de forma não condenatória quando Jesus, na parábola dos talentos, diz ao servo improdutivo que ele ao menos deveria ter usado o dinheiro confiado a ele para render juros (Mateus 25:27).

É ao nos voltarmos para os aspectos prescritivos (normativos) dos fenômenos econômicos na Bíblia que surgem controvérsias sobre como interpretá-la. Centrais nos ensinamentos bíblicos estão os que Jesus chamou de os dois grandes mandamentos (Mateus 22:36-40), que orientam como os seres humanos devem se relacionar com Deus e uns com os outros. De fato, esses dois mandamentos são uma versão condensada (um resumo antecipado?) dos Dez Mandamentos (Êxodo 20:3-17), dos quais quatro dizem respeito ao que devemos a Deus e seis fornecem regras sobre como os seres humanos devem tratar uns aos outros.

Particularmente relevantes para a economia são o oitavo e o décimo mandamentos, "Não furtarás" e "Não cobiçarás". São declarações inequívocas que exigem a adesão ao princípio da propriedade privada. (Aliás, não é preciso acreditar em Deus ou na Bíblia para endossar o princípio da propriedade privada. Ludwig von Mises, por exemplo, por meio de sua análise econômica completamente livre de valores morais, concluiu que é logicamente demonstrável que, se as pessoas desejam prosperidade, então uma economia baseada na propriedade privada é o meio mais eficaz de alcançar esse fim. Curiosamente, Mises chegou à mesma conclusão por meio da análise que Moisés chegou por revelação – a saber, que os seres humanos prosperam mais ao respeitar a propriedade privada.)

Alguns indivíduos criaram o conceito de “socialismo cristão”, baseado em sofismas. Eles citam versículos da Bíblia, como a declaração de Jesus no Sermão da Montanha para dar a capa a quem roubou o manto, ou a passagem em Lucas onde o rico Lázaro sofre na vida após a morte por não ter compartilhado sua riqueza com os pobres. É verdade que Jesus advertiu repetidamente contra o apego excessivo aos confortos materiais e exortou à caridade para com os outros.

Note-se, porém, que os seres humanos deveriam ser sujeitos à sua própria consciência sobre quanto acumular de riqueza, e não aos ditames de outros humanos. Por exemplo, quando um homem perguntou a Jesus o que precisava fazer para herdar a vida eterna, Jesus lhe disse para dar toda a sua riqueza aos pobres. Quando o homem se recusou, Jesus o deixou partir em paz. Jesus essencialmente lhe ofereceu um contrato voluntário e respeitou o direito do homem de não aceitá-lo (ver Marcos 10:17-23).

Da mesma forma, quando outro homem pediu que Jesus dissesse a seu irmão para dividir a herança com ele, Jesus recusou, dizendo: "Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?" (Lucas 12:14). Se o Filho de Deus (ou, se preferir, o homem mais amoroso e moral que já viveu) não negaria a alguém seus direitos de propriedade, quem somos nós para fazê-lo?

Muitos cristãos autodeclarados erram ao abordar a questão da ajuda aos pobres. Eles afirmam que os cristãos devem apoiar programas governamentais, pelos quais os cidadãos contribuintes são compelidos por lei a sustentar os menos favorecidos. Novamente, Jesus certamente aprovaria ajudar os pobres, mas o fim não justifica os meios. Por mais que se busque, não há versículo na Bíblia que diga que o caminho para o céu seja fazer com que outras pessoas realizem boas obras. Os atos de caridade devem ser feitos voluntariamente, por um impulso interno de amor e generosidade, e não em resposta a compulsões externas, como a coerção estatal por meio de multas ou prisão para arrecadar impostos destinados a programas de assistência social.

Jesus ofereceu o modelo de caridade cristã na parábola do bom samaritano (Lucas 10:30-37). Ao encontrar um homem gravemente ferido por assaltantes, o samaritano cuidou pessoalmente de suas feridas e gastou seu próprio dinheiro para garantir comida e abrigo para a vítima. Quando precisou partir para cumprir outros compromissos, prometeu pagar ao estalajadeiro para continuar cuidando do homem.

Assim, Jesus ilustrou as duas formas de caridade cristã: primeiro, ajuda pessoal e direta; segundo, ajuda indireta, ao doar para aqueles que têm tempo e habilidades para assistir os necessitados quando não podemos fazê-lo diretamente.

Vamos a um experimento mental: imagine que o samaritano, ao avistar o homem ferido, tivesse arrecadado os fundos que gastou posteriormente impondo um pedágio aos transeuntes daquela estrada – um pedágio que eles teriam de pagar se não quisessem levar uma bastonada na cabeça. O homem necessitado ainda teria recebido a ajuda de que tanto precisava, mas ainda assim consideraríamos o samaritano um exemplo de virtude e caridade cristã? É genuína a caridade quando se é generoso com o dinheiro dos outros? É caridoso ajudar alguns sob ameaça de prejudicar outros?

Este é o terreno moral obscuro no qual muitos cristãos se perdem em nome da “justiça social” ou do evangelho social. O desejo de ajudar os necessitados é louvável, mas os meios empregados por defensores da “justiça social” não o são. Eles enfraquecem um princípio bíblico ao pedir que o governo redistribua a riqueza para os pobres, os doentes, as viúvas. O governo necessariamente introduz o fator adicional da coerção, pois governo é força organizada. Embora seja cristão ser caridoso, Jesus nunca misturou caridade com compulsão, nem ensinou seus seguidores a recorrer à força.

Para o cristão, a propriedade privada é um dos pilares centrais da moralidade social dirigida por Deus. Para o economista, a propriedade privada oferece a máxima utilidade na promoção da prosperidade social. Nesse sentido crucial, Bíblia e economia não entram em conflito, mas se harmonizam.


Mark Hendrickson leciona Economia e Empreendedorismo no Grove City College (EUA) e é pesquisador em Políticas Econômicas e Sociais no Center for Vision & Values.

 

*Este artigo foi publicado no The Daily Economy e está disponível em: https://thedailyeconomy.org/article/intersections-between-the-bible-and-economics/

 


segunda-feira, 2 de junho de 2025

O progresso do Espiritismo requer método


 O progresso do Espiritismo requer método

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 45, jun/2025, p. 8-9

 

A busca pelo conhecimento, em qualquer campo legítimo do saber, deve ser pautada por critérios racionais, éticos e metodológicos que possibilitem distinguir entre o que possui valor universal e o que expressa apenas opiniões particulares. No contexto do Espiritismo, codificado por Allan Kardec, esse princípio se manifesta de forma particularmente clara no chamado "controle universal do ensino dos Espíritos".

Longe de ser uma limitação dogmática ou uma recusa ao progresso das ideias, esse critério se apresenta como um filtro de segurança doutrinária frente ao caráter subjetivo e por vezes contraditório das comunicações mediúnicas presentes em mensagens e romances de fonte única. Kardec, lúcido quanto à natureza falível dos médiuns e à diversidade moral e intelectual dos Espíritos comunicantes, concebeu esse método como forma de garantir que apenas os ensinamentos oriundos de múltiplas fontes concordantes e independentes, obtidos em diferentes lugares e por médiuns diversos, fossem incorporados à estrutura doutrinária.

É, portanto, um erro epistemológico grave interpretar tal critério como uma negação da evolução ou uma espécie de conservadorismo religioso. Pelo contrário, trata-se de uma exigência de maturidade crítica, um exercício de vigilância racional frente à exaltação e ao entusiasmo acrítico com qualquer novidade que se diga “revelação espiritual” advinda de médiuns e Espíritos de estimação.

Kardec reconhecia plenamente o caráter progressivo do conhecimento, inclusive declarando que o Espiritismo caminharia ao lado da Ciência, ajustando seus postulados caso fossem contrariados por descobertas sólidas e bem comprovadas. No entanto, esse progresso não se dá por meio de afirmações isoladas ou visões pessoais, mas por meio da convergência de inteligências e da crítica livre e metódica, exatamente como ocorre no progresso científico legítimo.

Na história do movimento espírita, não é raro encontrar adeptos mais exaltados que, em nome de um suposto "Espiritismo ampliado" ou “pós-kardecismo”, promovem a aceitação cega e apaixonada de mensagens mediúnicas oriundas de fonte única, calcados no apelo à autoridade de quem assina ou de quem as intermediam. Trata-se de um desvio metodológico que ignora os fundamentos racionais, substituindo o rigor do controle universal por uma fé cega e personalista, que tende a instaurar novos dogmatismos sob a aparência de atualização doutrinária.

A crítica a esse tipo de prática não configura uma recusa ao novo, mas sim a exigência legítima de critérios confiáveis para que qualquer novo ensinamento se mostre compatível com os princípios do Espiritismo.

Aceitar indiscriminadamente qualquer mensagem apenas por seu conteúdo emotivo ou pela fama atribuída ao Espírito comunicante, sem que ela seja confrontada com a razão, com o bom senso e com a concordância universal, é retornar ao obscurantismo religioso que o Espiritismo veio justamente superar. Não se trata de um conflito entre tradição e inovação, mas entre responsabilidade epistemológica e credulidade.

A Doutrina Espírita, por sua própria natureza, convida ao exame, à reflexão e à constante depuração de seus conteúdos, desde que o método adotado respeite a postura analítica que está na base de sua construção.

Portanto, reconhecer o valor do controle universal do ensino dos Espíritos não é apegar-se a um passado imutável, mas preservar a coerência e a legitimidade do processo evolutivo do conhecimento espírita. Negar esse princípio é abrir as portas à desorganização doutrinária, ao personalismo místico e ao enfraquecimento da autoridade racional que diferencia o Espiritismo das crenças baseadas na fé cega.

Certamente é possível e esperado que novas informações venham enriquecer o patrimônio do Espiritismo, desde que se submetam a critérios metodológicos de validação objetiva. A razão e a comprovação pelos fatos, e não a autoridade isolada, devem ser sempre o maior critério para julgar o que merece ou não ser incorporado ao edifício doutrinário.

 

sábado, 31 de maio de 2025

A universalidade do Espiritismo frente às abordagens decoloniais

A universalidade do Espiritismo frente às abordagens decoloniais

 

Marco Milani

 

Texto publicado no Portal Espiritismo com Kardec - Revista Harmonia – maio/2025*

 

O crescimento da influência do pensamento decolonial em algumas áreas das ciências humanas tem levado a tentativas recentes de aplicar suas categorias críticas ao Espiritismo, buscando reinterpretar a doutrina codificada por Allan Kardec a partir de paradigmas associados à descolonização do saber. Essa aproximação, embora por vezes bem-intencionada, revela uma profunda incompreensão epistemológica sobre a natureza do Espiritismo, tanto em seus fundamentos quanto em sua proposta metodológica.

Enquanto o pensamento decolonial se estrutura como uma crítica à hegemonia do conhecimento ocidental e às relações de poder que se expressam nas formas de produção e validação do saber, o Espiritismo nasce, ao contrário, como um projeto de emancipação racional do pensamento religioso e místico, fundado em princípios universais e em método experimental.

A proposta central da teoria decolonial, como a própria denominação sugere, é questionar a colonialidade do poder, do saber e do ser, buscando valorizar epistemologias “do Sul”, saberes oriundos de tradições não ocidentais, e formas culturais historicamente marginalizadas (Mignolo & Walsh, 2018). No entanto, ao se tentar aplicar essa matriz crítica ao Espiritismo, incorre-se em um equívoco fundamental: confundir o universalismo da razão com etnocentrismo europeu.

O Espiritismo, conforme delineado por Kardec, não é um sistema ideológico de domínio cultural, mas uma filosofia de base científica que busca compreender as leis universais da vida espiritual a partir da observação dos fenômenos e do exame racional das comunicações dos espíritos. Não se trata, portanto, de um saber imposto pelo Ocidente sobre outras culturas, mas de um esforço para construir um conhecimento verificável, passível de ser reproduzido e criticado por qualquer pessoa, em qualquer lugar, independentemente de sua origem cultural. Como afirma Kardec (2008), "o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos e de suas relações com o mundo corporal", e sua validade independe do local de onde se manifeste.

Kardec, sendo francês e atuando no século XIX, estava obviamente imerso na cultura europeia e servia-se da linguagem, códigos e valores típicos de seu tempo e espaço para a expressão das ideias que organizava. No entanto, isso não compromete a proposta universal do ensino dos Espíritos, os quais, por sua própria natureza, não estão confinados nem geograficamente nem culturalmente.

A doutrina espírita parte do princípio de que a verdade espiritual é acessível a todos e não depende da tradição particular de um povo ou de um continente, mas sim da capacidade de análise racional e moral de qualquer ser humano. A cultura de Kardec serviu como veículo para a sistematização, mas o conteúdo, oriundo dos Espíritos, transcende os limites históricos e geográficos de sua codificação.

A tentativa de reinterpretar o Espiritismo sob uma ótica decolonial frequentemente se apoia em três premissas equivocadas: a primeira é a suposição de que a doutrina representaria uma apropriação eurocêntrica de saberes espirituais ancestrais, apagando sua diversidade; a segunda, que haveria uma homogeneização da experiência espiritual em moldes racionais e cientificistas; e a terceira, que o Espiritismo teria se alinhado historicamente a projetos de poder colonial, direta ou indiretamente. Autores como Pereira (2023) têm sugerido que o Espiritismo, ao sistematizar saberes espirituais em linguagem científica ocidental, teria silenciado vozes não europeias e espiritualidades autóctones. Contudo, nenhuma dessas ideias se sustenta à luz de uma análise objetiva das fontes primárias da doutrina. Kardec deixou claro, em diversas ocasiões, que seu papel foi o de organizador e sistematizador de um conjunto de manifestações espirituais que ocorriam em diferentes países, sob variadas formas. Ele não reivindicou para si a autoria das ideias, mas o mérito de aplicar um critério racional e metódico para discernir, entre as mensagens mediúnicas, aquelas coerentes com os princípios universais de moral, lógica e progresso. A autoridade da doutrina está, justamente, no método utilizado para a sua elaboração (Kardec, 2003).

O Espiritismo, ademais, jamais se propôs como instrumento de homogeneização cultural. Pelo contrário, ele reconhece a pluralidade de pensamentos, a diversidade das experiências espirituais e a dinamicidade das sociedades. A moral espírita, embora baseada em princípios universais como justiça, amor e caridade, é aplicada de modo relativo ao contexto cultural, histórico e evolutivo de cada povo. Kardec não negou o valor dos saberes tradicionais, mas defendeu que o critério para validar qualquer conhecimento deve ser sua coerência com a razão, a experiência e a moral universal.

A intenção de opor a racionalidade à ancestralidade, como fazem alguns autores decoloniais, constitui uma falsa dicotomia, pois o Espiritismo não exclui, como mencionado, os saberes ancestrais, mas os examina sob um prisma crítico, livre de dogmas e imposições. Como observa Kardec (1996), “todo ensino metódico deve partir do conhecido para o desconhecido”, reforçando o respeito às ideias particulares.

A suposta associação do Espiritismo com o colonialismo carece de qualquer base histórica concreta. Ao contrário, muitos dos primeiros espiritistas foram ativistas da abolição da escravatura, defensores da educação popular, do direito das mulheres e da liberdade de expressão. O Espiritismo se propagou no Brasil, por exemplo, entre intelectuais e setores que viam na doutrina uma forma de resistência ao clericalismo e ao obscurantismo. A doutrina espírita não se fez cúmplice do projeto colonial, mas antes ofereceu uma via alternativa de emancipação moral e intelectual baseada na liberdade de pensamento, na responsabilidade individual e na perfectibilidade do ser.

Além disso, aplicar categorias contemporâneas como a de colonialidade do saber ao contexto de formulação do Espiritismo no século XIX incorre em anacronismo metodológico, desconsiderando a especificidade histórica e o projeto científico que movia Kardec, conforme salientado por Koselleck (2006) ao advertir contra a projeção de conceitos modernos sobre realidades passadas.

A intenção de aplicar categorias decoloniais ao Espiritismo fracassa em respeitar a singularidade epistemológica e histórica da doutrina. Ao imputar-lhe um suposto eurocentrismo, ignora-se que a universalidade proposta por Kardec não é imposição cultural, mas busca de leis gerais que possam ser compreendidas e verificadas por todos. Reduzir o Espiritismo a um produto da colonialidade é negar sua natureza científica, sua proposta moral universal e seu compromisso com a liberdade de consciência. Assim, em vez de reinterpretá-lo sob categorias exógenas, é mais coerente estudá-lo com base em suas próprias premissas, em diálogo crítico, mas respeitoso, com sua proposta original de conhecimento, moralidade e transformação espiritual.

 

Referências

 

Kardec, A. (2003). O evangelho segundo o Espiritismo. Editora LAKE.

Kardec, A. (1996). O livro dos médiuns. Editora EME.

Kardec, A. (2008). O que é o Espiritismo. Federação Espírita Brasileira.

Koselleck, R. (2006). Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Contraponto/EdUERJ.

Mignolo, W., & Walsh, C. (2018). On decoloniality: Concepts, analytics, praxis. Duke University Press.

Pereira A. S. (2023). Notas para um Espiritismo Decolonial. FAK. Desponível em < https://www.faknet.org.br/wp-content/uploads/2023/01/Notas-para-um-Espiritismo-Decolonial_Versao-Final.pdf>. Acessado em 04/05/25.

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Vídeo relacionado: https://youtu.be/BAk1OfY3Ym0?si=Rcz48ezKmkH0rWTO

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*Fonte:  https://www.comkardec.net.br/a-universalidade-do-espiritismo-frente-as-abordagens-decoloniais-por-marco-milani/

 

 

sábado, 17 de maio de 2025

Generalizações indevidas de fatos científicos


 Generalizações indevidas de fatos científicos


Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.206, mai/jun 2025, p.34-35

  

A ciência busca compreender os fenômenos por meio de investigações que respeitam critérios rigorosos de validade e confiabilidade. Contudo, o acesso facilitado à informação e a crescente demanda por respostas imediatas têm contribuído para interpretações simplificadas e, muitas vezes, equivocadas dos resultados de pesquisas. Quando os achados científicos são utilizados fora de seu contexto original, promovem-se generalizações que, desprovidas do necessário respaldo metodológico, acabam legitimando convicções pessoais e interesses particulares, comprometendo a integridade do discurso científico.

A tendência de resumir dados complexos em mensagens de fácil assimilação e com forte apelo pela atenção tem raízes na cultura contemporânea, onde a velocidade da informação frequentemente se sobrepõe à qualidade do conteúdo divulgado. A redução dos resultados de estudos a afirmações unidimensionais desvirtua o caráter investigativo da ciência e pode levar a interpretações equivocadas, especialmente quando conclusões de pesquisas observacionais são extraídas sem a devida consideração das variáveis intervenientes e limitações metodológicas. Essa prática, difundida em diversas áreas do conhecimento, desde a saúde até as ciências sociais, ratifica ideias preestabelecidas e fortalece a polarização no debate público, dificultando a construção de consensos baseados em evidências.

No meio espírita, esse fenômeno também ocorre, especialmente quando descobertas científicas são divulgadas de forma parcial para validar crenças ou fortalecer a identidade do movimento. Um exemplo clássico foi a repercussão da interessante dissertação de mestrado[1] de Ricardo Monezi Julião de Oliveira, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 2003, que investigou os efeitos da imposição de mãos em camundongos e concluiu que há uma alteração fisiológica decorrente desse ato e que há que se estudar porque ela ocorre. Embora o estudo tenha indicado possíveis benefícios terapêuticos nos sistemas hematológico e fisiológico dos animais, ele não analisou especificamente o passe espírita, nem tinha como objetivo comprovar a eficácia dessa prática no contexto doutrinário. No entanto, na ocasião, diversos grupos espíritas alardearam equivocadamente que a USP havia comprovado cientificamente os efeitos do passe espírita, uma extrapolação indevida que desconsiderava as limitações e o escopo real da pesquisa. Não é pelo fato de um trabalho de pesquisa ser aprovado numa banca de mestrado ou doutorado que a instituição promotora atesta a validade e veracidade do conteúdo do respectivo estudo. A única coisa que a Instituição de Ensino Superior se responsabiliza é o registro público das milhares de defesas que ocorrem regularmente em suas dependências. Certamente a pesquisa de Ricardo Oliveira desperta a atenção de pesquisadores espíritas e deve ser analisada, mas há uma grande distância entre o objeto estudado e as notícias sensacionalistas a respeito.

Recentemente, uma promissora pesquisa liderada pelo médico Alexander Moreira-Almeida analisou diferenças genéticas em supostos médiuns e não-médiuns e foi publicada na Revista Brasileira de Psiquiatria[2]. Trata-se de valioso trabalho sugerindo que podem existir aspectos biológicos associados àqueles que alegam participar de fenômenos mediúnicos. Contudo, a pesquisa não afirma que a mediunidade é determinada geneticamente, nem exclui a influência de outros fatores materiais nos resultados. Mesmo assim, diversos meios de comunicação espíritas divulgaram que "a ciência comprovou que a mediunidade depende de uma condição orgânica", em associação direta com o conhecimento doutrinário espírita, criando uma narrativa simplista com o próprio rigor metodológico adotado no estudo.

É indispensável que se mantenha a clareza na exposição dos limites das investigações, o reconhecimento das incertezas inerentes ao processo científico e a utilização de uma linguagem que preserve a complexidade dos dados.

Corroborando com a prudência necessária, o assessor de ciência e pesquisa da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, Alexandre Fontes da Fonseca, discorre sobre a mesma situação e destaca que “esse trabalho não confirma nenhuma especificidade ou especialidade da glândula pineal com relação à mediunidade”, que é outro assunto bastante discutido em parte do movimento espírita.[3]

A educação científica, tanto em ambientes acadêmicos quanto em espaços menos familiarizados com as questões metodológicas da produção do conhecimento, desempenha um papel crucial na formação de uma sociedade crítica e capaz de discernir entre uma ciência robusta e discursos apaixonados pseudocientíficos. Assim, o compromisso com a transparência, a ética e a rigorosidade dos métodos utilizados devem nortear não só a produção científica, mas também sua divulgação, a fim de preservar a credibilidade da ciência e promover um debate público esclarecido, contribuindo para a construção de um ambiente de conhecimento sólido e transformador.

 



[1] Oliveira, R.M.J. (2003). “Avaliação de efeitos da prática de impostação de mãos sobre os sistemas hematológico e imunológico de camundongos machos”. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5160/tde-23092014-145211/pt-br.php

[2] Gattaz, W. F.  et al. (2025). “Candidate Genes Related to Spiritual Mediumship: A Whole Exome Sequencing Analysis of Highly Gifted Mediums”. Disponível em: https://www.bjp.org.br/export-pdf/3591/bjp3958.pdf

 [3] Fonseca, A. F. (2025) “Genes da mediunidade: cautela na forma como divulgar”. Revista Digital Dirigente Espírita. USE. Ed. 205. mar/abr, p.24-25.