sábado, 1 de março de 2025

“Kardec não disse tudo” e a falácia do apelo à ignorância


“Kardec não disse tudo” e a falácia do apelo à ignorância

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 42, mar/2025, p. 9-10

 

O Espiritismo, como doutrina filosófica, possui princípios que fundamentam seu corpo teórico. Não se trata de sistema fechado, permitindo a análise de novos fatos com base na razão, na lógica e no conhecimento já legitimado pela universalidade do ensino dos Espíritos, critérios que serviram para estabelecer suas diretrizes doutrinárias.

No entanto, ao longo do tempo, surgiram inúmeras tentativas de incorporar ao Espiritismo práticas, conceitos e teorias contraditórias aos seus princípios, acompanhados da frase “Kardec não disse tudo”. Essa afirmação, embora verdadeira em si mesma, tem sido utilizada de forma distorcida, especialmente pelo viés da falácia do apelo à ignorância (argumentum ad ignorantiam), para validar ideias que não possuem sustentação doutrinária.

O apelo à ignorância consiste em afirmar que algo deve ser verdadeiro simplesmente porque não há uma prova definitiva de que seja falso, ou vice-versa. No caso do Espiritismo, essa falácia ocorre quando se argumenta que, como Kardec não abordou ou esgotou determinado assunto em suas obras, ele pode ser aceito como parte do Espiritismo. Trata-se de um erro lógico, pois a ausência de menção ou aprofundamento em um tema não implica, necessariamente, sua validade doutrinária.

O método epistêmico adotado por Kardec possui critérios sólidos para a aceitação de novos conceitos, quando corroborados por fatos e validados pela razão, além do controle universal do ensino dos Espíritos. Qualquer inovação ou ampliação do conhecimento espírita deve ser submetida a esse crivo, e não simplesmente aceita porque Kardec “não disse tudo”.

O conhecimento espírita é progressivo, mas esse progresso não ocorre de maneira arbitrária ou por meio da inserção de ideias antagônicas aos seus fundamentos. Sob a alegação de “avanço”, antigos e novos conceitos e práticas esotéricas, místicas e supersticiosas são ingenuamente abraçadas por adeptos mais afoitos e menos familiarizados com os fundamentos espíritas. Apometria, cromoterapia, astrologia, supostas comunicações com animais desencarnados, escolas iniciáticas secretas, preces ritualísticas, elaboração e distribuição de pomadas e outros produtos “milagrosos”, dentre outras, são exemplos de práticas estranhas ao Espiritismo.

Outras deturpações conceituais decorrentes de preferências e convicções pessoais manifestam-se sob diferentes aspectos, mas escoradas na mesma justificativa de atualização. Uma das mais perniciosas diz respeito à militância política disfarçada de progresso científico na área das ciências sociais, caracterizando-se pela seleção de pensadores específicos de determinada linha ideológica como representantes da modernidade que o Espiritismo “deveria” defender. Tais militantes ignoram posicionamentos teóricos contrários e pretendem determinar como o adepto deveria pensar politicamente, desrespeitando a liberdade de consciência individual.

O progresso, portanto, não significa abandono dos fundamentos nem a aceitação acrítica de qualquer novidade apresentada como “espírita”.

Como exemplos positivos de aplicações diretas do progresso científico no conhecimento espírita pode-se mencionar os estudos realizados com experiências de quase-morte (EQM) e investigações de lembranças de vidas passadas. Tais estudos não alteram os princípios doutrinários, porém permitem ao pesquisador espírita aprofundar a compreensão dos fenômenos citados baseados em evidências e não em simples abstração teórica.

O dinamismo espírita exige responsabilidade e coerência metodológica. A ciência espírita não pode ser guiada por suposições arbitrárias ou por argumentos falaciosos que se apoiam na ausência de menção direta a certos temas para justificá-los. O compromisso com a lógica e com o método kardequiano deve prevalecer, evitando que a doutrina seja corrompida por práticas e conceitos que não fazem parte de sua essência. O fato de Kardec não ter dito tudo não significa que qualquer coisa possa ser dita hoje em nome do Espiritismo.

 

sábado, 1 de fevereiro de 2025

A Inteligência artificial não é um oráculo moderno


 A Inteligência artificial não é um oráculo moderno

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 41, fev/2025, p. 9-10

 

O crescimento do uso de ferramentas de inteligência artificial (IA), como o ChatGPT, trouxe à tona uma série de debates éticos e filosóficos sobre o papel dessas tecnologias na sociedade. Entre essas discussões, destaca-se uma preocupação relevante no campo do Espiritismo: a possibilidade de se tentar transformar tais ferramentas em "oráculos modernos", capazes de substituir os ensinos dos Espíritos sistematizados por Allan Kardec. Essa intenção, embora compreensível frente à rapidez e eficiência dessas tecnologias, apresenta graves implicações e desafios que merecem análise crítica.

A Doutrina Espírita é fruto de uma investigação criteriosa conduzida por Kardec, com base em comunicações mediúnicas cujas informações foram validadas pelo método do Controle Universal. Esse conhecimento não é fruto de opiniões pessoais, mas sim de um ensino coletivo que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal. O caráter experimental e a lógica que permeiam os princípios espíritas refletem o cuidado de Kardec em evitar que influências subjetivas ou interpretações enviesadas desvirtuassem o conteúdo recebido.

As ferramentas de inteligência artificial, por outro lado, baseiam-se em dados coletados de fontes do mundo material, acumulando e processando informações disponíveis na internet e em outros repositórios de conhecimento. Embora impressionantes em sua capacidade de resposta e emulando, por vezes, um tom "neutro" ou "onisciente", esses sistemas são incapazes de alcançar o discernimento moral que caracteriza as mensagens dos Espíritos. A IA não possui consciência, intuição ou capacidade de acessar dimensões transcendentais; seu alcance está restrito ao plano físico e técnico, refletindo os preconceitos, limitações e lacunas das informações com as quais foi treinada.

A tentativa de usar a IA para rever e aperfeiçoar o ensino espírita, portanto, esbarra na limitação natural da fonte e do método. A linguagem precisa e objetiva de ferramentas como o ChatGPT pode dar uma falsa impressão de autoridade, fazendo com que indivíduos não familiarizados com as próprias limitações tecnológicas e, principalmente, imaturos quanto aos princípios e conceitos doutrinários, aceitem prontamente as respostas geradas por IA como novas verdades. Isso contraria a fé raciocinada, a qual convida à análise e ao estudo aprofundado com a prudência necessária. Kardec sempre incentivou o questionamento e a busca pela verdade, alertando contra a inconveniência da aceitação cega, mesmo diante de mensagens mediúnicas assinadas por Espíritos conhecidos.

Outra situação associada a essa prática é o enfraquecimento do papel da mediunidade como meio pelo qual a humanidade pode estabelecer comunicação direta com o mundo invisível, possibilitando a continuidade do aprendizado e da interação com os Espíritos. Quando se tenta substituir essa conexão viva e dinâmica por uma tecnologia artificial, há um afastamento do aspecto experimental mediúnico. A IA, certamente, pode auxiliar no estudo e na organização de informações, mas não pode replicar a profundidade da experiência espiritual que a mediunidade proporciona.

Além disso, a transformação do uso da IA em oráculo moderno contraria a proposta de autonomia racional promovida pelo Espiritismo. Kardec não buscou criar seguidores passivos, mas indivíduos conscientes de sua responsabilidade moral e de seu papel no progresso coletivo. Delegar o discernimento sobre a realidade espiritual a uma máquina programada por homens encarnados desvirtua a própria fonte e incentiva uma subordinação tecnológica.

É essencial reconhecer que a tecnologia desempenha um papel relevante e positivo no apoio ao estudo do Espiritismo, desde que utilizada com discernimento. Ferramentas de IA facilitam o acesso a obras espíritas, organizam estudos e podem responder dúvidas comuns, mas são apenas instrumentos e não substitutos do conhecimento doutrinário. Cabe aos espíritas acompanharem e usarem com o bom senso que Kardec tanto prezava as potencialidades dessas ferramentas.

Assim, o desafio não está em incentivar a tecnologia, mas em saber utilizá-la de maneira responsável como poderosa aliada, sem deslumbramento.

 

sábado, 25 de janeiro de 2025

Respostas às questões selecionadas - Tema: Fraternidade - Marco Milani


Respostas às questões selecionadas - Tema: Fraternidade – Marco Milani

Link para a apresentação: https://youtu.be/YRaaBltYnUg?si=ptT7T8S9IASOz7fx

 

1) Qual a sua visão sobre as afirmações que se faz de estarmos entrando no Mundo de Regeneração tendo em vista a distância que estamos de alcançar a fraternidade no mundo?

A transição para o Mundo de Regeneração é um processo gradativo e desafiador, marcado pelo lento progresso moral da humanidade. Embora ainda estejamos distantes da fraternidade universal, com evidente manifestação de ações egoístas e orgulhosas, essa fase de transição sinaliza mudanças imperceptíveis para alguns, mas percebidas ao longo dos séculos. Assim, a meta para a qual caminhamos é, necessariamente, a fraternidade e sua manifestação exige autoconhecimento, esforço contínuo para combater as más tendências e valorizar as boas ações, promovendo a educação moral. O Espiritismo nos inspira a confiar no progresso inevitável, sustentado pelo trabalho no bem e pela fé raciocinada, assegurando que cada esforço contribui para aproximar a humanidade desse ideal de regeneração.


2) O que está sendo feito na comunidade espírita para alcançar os menos beneficiados pela sociedade? Já que o estudo é necessário e muitas vezes estas pessoas têm uma instrução muito restrita.

A assistência social aos mais necessitados sempre foi promovida pelo movimento espírita alinhada aos princípios da caridade e da fraternidade. A maioria dos centros espíritas desenvolve projetos voltados ao atendimento das necessidades materiais e espirituais da população, além de iniciativas que buscam promover a educação e o desenvolvimento pessoal.

No âmbito doutrinário, os centros espíritas procuram oferecer, conforme as próprias limitações de recursos, o estudo das obras de Allan Kardec atentando-se à realidade e ao nível de compreensão do público frequentador, utilizando uma linguagem acessível e exemplos práticos. Em muitos casos, grupos de educação espírita infantojuvenil e palestras são realizados em comunidades carentes ou mesmo em instituições como presídios, hospitais e asilos, levando o consolo e o esclarecimento espiritual a quem necessita. Assim, a comunidade espírita busca não apenas atender às necessidades imediatas dessas pessoas, mas também oferecer ferramentas para seu crescimento moral, espiritual e social, promovendo a dignidade e a autossuficiência, sempre em consonância com o lema espírita de que "fora da caridade não há salvação".

 

3) Como superar o período de luta previsto por Kardec ao Espiritismo?

É essencial manter a coerência aos princípios doutrinários e a união entre os espíritas, evitando divisões e desentendimentos que enfraquecem o movimento. Kardec alertou que o Espiritismo enfrentaria resistências, tanto externas quanto internas, como preconceitos, incompreensões e até ataques diretos. No entanto, ele também enfatizou que o progresso do Espiritismo está garantido, pois sua base é a verdade e seu objetivo é o bem. Superar esse período de luta exige perseverança, trabalho contínuo e vivência prática dos valores espíritas, como a caridade, a tolerância e o amor ao próximo. 

É necessário investir no estudo contínuo e aprofundado das obras fundamentais e na divulgação responsável da Doutrina. Certamente, podemos encarar as dificuldades como oportunidades de fortalecimento e aprendizado, afastando o comportamento belicoso que procurar indispor irmãos com assuntos que Kardec denominou de irritantes (política partidária, por exemplo). O respeito à liberdade de consciência e às preferências pessoais é fator que deve prevalecer na fraternidade. Quando conseguirmos isso, entraremos no período seguinte marcado pelo laço de união entre os adeptos que Kardec denominou de período religioso.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Respostas às questões selecionadas - Tema: Igualdade – Humberto Schubert Coelho

 

Respostas às questões selecionadas - Tema: Igualdade – Humberto Schubert Coelho

Link para a apresentação: https://youtu.be/7fI44lfqnAA?si=wIdRki5hKlDXqe38

 

1) Martin Luther King tinha três referências: Jesus, Sócrates e qual seria o terceiro?

Sócrates e Jesus, como referências morais. Kant como referência filosófica. Ele também adorava o filósofo Hegel e, obviamente, Martinho Lutero.

 

2) Poderia nos dar sua visão sobre a perfeição (relativa) a que estamos destinados? Algumas pessoas parecem temer que todos ficariam "iguais" e "sem identidade", o que poderia, na opinião delas, ser altamente desmotivador para este processo evolutivo - muito embora não possamos deixar de progredir, pois é da Lei que o façamos.

Certamente, a perfeição espiritual (ou superioridade, pois não sabemos bem o que significa o termo perfeição para os espíritos, talvez eles se refiram a excelência e nobreza) tem de seguir as mesmas regras de toda a natureza. Na natureza não existe o marasmo, não existe a mesmice e não existe a pobreza de criatividade. Ao contrário, seres que aparentemente não precisam ser diferentes, como os insetos, são variadíssimos entre si, cada um com suas funções e características. A natureza é caprichosa e rica para muito além das necessidades de conservação e reprodução, ama a cor, as formas e as maneiras de ser e de viver. A sociedade humana reflete isso no grau mental e social, que já é infinitamente mais complexo que a existência dos animais. Se os animais são variados, o ser humano "se faz" mais variado com diferentes penteados, roupas, adereços, gestos, idiomas, sotaques e comportamentos. Há culturas tão exóticas que nos chocam, escandalizam ou encantam. Só podemos esperar que a vida superior do espírito seja tão profunda e complexa que faça a nossa parecer monótona e simplória, não o contrário.

 

3) RE 1865 - O que acha sobre a comuna de Königsfeld, mundo do futuro?

Conheci alguns lugares assim. Às vezes, esses idílios são uma fotografia de um, dois séculos atrás, e não refletem a cultura atual dos habitantes. É o caso, por exemplo, das maravilhas do Egito, que não têm ligação nenhuma com os atuais habitantes. Por outro lado, ambientes caóticos e "feios", como muitos que bem conhecemos no Brasil, revelam potenciais e histórias encantadoras de desafios e testes da vida humana. Então, todos os ambientes que Deus concebe e/ou permite se formem na Terra para vivência e aprendizado possuem imenso valor, que nos cabe louvar e estudar em profunda gratidão.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Respostas às questões selecionadas - Tema: Liberdade - Lucas Berlanza

 

Respostas às questões selecionadas - Tema: Liberdade - Lucas Berlanza

Link para a apresentação: https://youtu.be/oqlBBJKF-nw?si=vJvYzE6C9oKMkmj6


1) Gostaria de um esclarecimento: na pergunta 859 de OLE, diz-se que a fatalidade consiste em duas horas: a em que deveis aparecer e desaparecer - nascer e morrer; é isto? Porque, numa aula que preparei, coloquei isso e os dirigentes me disseram que eu estava errada e que só era fatalidade morrer.

A resposta dos Espíritos à questão 859 de nossa obra fundamental diz exatamente o que você referenciou: que há fatalidade quanto ao momento em que aparecemos no mundo material e o momento em que desaparecemos dele, ou seja, quanto ao nascimento e quanto à morte do corpo físico. O termo “fatalidade” expressa a ideia de que algo é inevitável. Se somos Espíritos em progresso, que dependem da reencarnação para consumá-lo, o fato em si de encarnarmos é inevitável, como consequência obrigatória das leis naturais. Ressalte-se, porém, que isso diz respeito ao instante em si do nascimento, ao fato de que ele não pode ser evitado, como ao instante em si da morte. A data exata em que nossa morte se dá, por exemplo, não está inevitavelmente estabelecida ao encarnarmos, em termos absolutos. Ela pode ser adiantada ou retardada no decorrer da encarnação. O que é fatal, enfatize-se, é o instante em que ela se dá, do qual não podemos escapar – de outro modo, seríamos materialmente imortais. Basta mencionarmos o exemplo do suicídio; não há fatalidade nos atos da vida moral, caso contrário seríamos simples máquinas. Portanto, a pessoa que morre mediante um suicídio não morreu porque estava fatalmente previsto que teria que ser assim, mas porque ela assim escolheu fazer durante a encarnação. A questão 851 acrescenta como sendo também fatalidades as linhas gerais das circunstâncias materiais que vivenciaremos no mundo, posto que são selecionadas durante a escolha das provas antes da encarnação, atendendo às necessidades particulares de nosso desenvolvimento espiritual, não podendo ser afastadas completamente apenas pelas decisões que tomamos quando encarnados.  

2) O que Jesus com o Cristianismo agregou ou modificou em relação a questão da "liberdade"?

A concepção cristã sobre a dignidade da pessoa humana enquanto criatura de Deus e ser moral foi muito importante historicamente para a tradição individualista do Ocidente, que desaguou, na modernidade, em um reconhecimento mais explícito da liberdade de escolha e aceitação das ideias, bem como a liberdade de associação e organização e o respeito à esfera privada dos indivíduos. Jesus exortava seus discípulos a pregar, não a usar a força para impor suas ideias; afastava os abismos entre estratos sociais, castas ou estamentos, estabelecendo a figura do “próximo” a quem se deveria devotar o amor como sendo independente de todas essas restrições; sua máxima “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” deu ensejo a reflexões sobre a separação entre o poder temporal e o poder espiritual. As duas ideias de liberdade que abordamos em nossa exposição foram trabalhadas dentro da tradição filosófica católica, de raiz cristã, entre a Antiguidade e o medievo, como nas obras de Agostinho e Tomás de Aquino. Então, a contribuição de Jesus e dos efeitos filosóficos do Cristianismo para a ideia de liberdade individual é imensa.

3) No momento em que estamos, a liberdade é relativa?

O exercício da liberdade é relativo ao grau de adiantamento do Espírito, assim como as liberdades de que goza uma criança não são as mesmas de que goza um adulto em boas condições de exercício das faculdades mentais. Além disso, nossa liberdade de escolha sempre será circunscrita às decisões que a lei natural nos permite tomar, notadamente aplicando-se quanto à opção que temos de seguir pelo caminho do bem ou pelo do mal. Não podemos tomar decisões que a lei natural, do ponto de vista material, não admita, e, do ponto de vista moral, nossa escolha pelo mal, embora livre, não se dá sem que soframos as consequências igualmente más de a termos feito.

4) Como não sentirmos a indignação humana com as leis dos homens?

É preciso que saibamos identificar as injustiças e descaminhos da lei humana a fim de que possamos fazer a nossa parte para combater suas causas e seus efeitos. Isso também integra a tarefa dos Espíritos encarnados. Infelizmente, como Espíritos imperfeitos, nossas más paixões ainda nos influenciam ou governam em muitas de nossas ações, mesmo quando temos um propósito justo. Um Espírito elevado, ao combater a injustiça (o que deve fazer), seguramente não se deixa dominar pela raiva em momento nenhum. Para sermos como ele, precisamos, além da coragem para o bom combate, almejar as virtudes da paciência e da resignação, bem como o amor aos inimigos, todos temas tratados em O Evangelho Segundo o Espiritismo. Não existe receita mágica para isso. É uma busca que devemos nos esforçar para empreender ao longo de nossas encarnações. 

5) Como você analisa a dicotomia liberdade vs evolução? Não alcançamos a liberdade buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência. (Leon Tolstói)

Aquilo que filósofos como Sócrates e Agostinho abordavam como sendo a liberdade interior, conquistada ao escolher o bem e expurgar os próprios vícios, será uma consequência de nossa busca pela verdadeira felicidade, que alcançamos apenas ajustando nossas ações, pensamentos e atos aos ditames da lei de Deus. Só poderemos fazê-lo, porém, porque exercitamos, dentro do que cada estágio evolutivo possibilita, a liberdade individual de escolha entre o bem e o mal, como seres espirituais e morais que somos, ditando o ritmo com que o avanço para essa felicidade se dá.



domingo, 12 de janeiro de 2025

Utilidade da lembrança do passado na erraticidade

 

Utilidade da lembrança do passado na erraticidade

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 204, jan/fev 2025, p. 47-48

 

Enquanto encarnado, o Espírito não lembra, com lucidez, das existências anteriores e isso justifica-se. Segundo as questões 392 a 399 de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, o véu do esquecimento é uma condição relevante para que o ser encarnado possa continuar sua jornada de aprendizado e progresso moral no mundo físico. A lembrança do que fez e deixou de fazer, das pessoas com quem se relacionou de maneira harmônica ou antagônica, o contexto experimentado e as situações vivenciadas de maneira específica trariam embaraços, exaltariam o orgulho e a vaidade ou, na maior parte das vezes, gerariam remorso e constrangimento. Analisando as próprias tendências morais, pode-se ter uma noção das conquistas já realizadas e daquelas que ainda necessitam ser aperfeiçoadas.

Esse esquecimento, longe de ser um castigo, é uma situação amorosa que, de alguma forma, protege o ser humano do peso consciente de suas próprias falhas.

Sob a perspectiva científica, com ênfase nas áreas de psicologia e psiquiatria, há valorosas iniciativas que exploram a lembrança de vidas passadas com objetivos terapêuticos; nunca por curiosidade. Tais abordagens não contam, ainda, com plena aceitação da comunidade acadêmica, porém oferecem abrangente campo para a investigação da sobrevivência da alma e do processo reencarnatório, além de apontar que a cura de fobias e outros transtornos pode decorrer da identificação de fatos originados em existências anteriores [1]. Cabe ao estudioso espírita a adoção de método criterioso, baseado nos princípios doutrinários, a análise dessas abordagens.

No intervalo entre as encarnações, na chamada erraticidade[2], é facultado ao Espírito a recordação conforme o grau evolutivo em que se encontra; contudo, isso não implica que ele o fará. Certamente, enquanto aguarda, planeja ou prepara-se para nova encarnação, pode ser conveniente ao Espírito analisar sua trajetória pregressa, mas a lembrança não é um fim em si mesma, mas um recurso acessível apenas quando é útil e necessário ao seu desenvolvimento.

A memória espiritual atua de maneira seletiva, priorizando os elementos que contribuem para o progresso. Recordar fatos triviais ou irrelevantes de encarnações anteriores não tem qualquer utilidade prática, uma vez que a memória do ser não é um mero repositório de informações, mas um mecanismo que atende às exigências de seu progresso.

Os Espíritos que já alcançaram um certo grau evolutivo têm consciência de sua trajetória e do aprendizado acumulado, mas não se detêm nos detalhes de cada vida.

Uma metáfora que pode ser usada para ilustrar essa ideia é a comparação entre a evolução do Espírito e o crescimento de um ser encarnado. Um adulto, ao refletir sobre sua infância, tende a lembrar-se apenas dos fatos que o marcaram e têm relevância em seu presente. Não há, em geral, interesse em rememorar episódios pueris ou banais que não ofereçam aprendizado ou satisfação objetiva. Do mesmo modo, o Espírito errante, especialmente quando já atingiu certa maturidade espiritual, vê suas existências passadas como uma série de etapas que, embora importantes para sua formação, não precisam ser revisadas em detalhes.

Essa perspectiva é ainda mais evidente quando se considera que, no processo de evolução, o Espírito não retroage. Hoje, todos são melhores do que ontem. No passado, ele pode ter agido de forma instintiva, guiado por impulsos egoístas ou até mesmo violentos, comparáveis às ações de uma criança imatura. Contudo, à medida que progride, seu foco desloca-se do passado para o presente e o futuro. As recordações de vidas anteriores, portanto, são acionadas apenas quando servem como ferramentas para corrigir tendências negativas ou consolidar virtudes.

A verdadeira recompensa do progresso espiritual está na compreensão ampliada sobre a realidade, no autoconhecimento e na paz interior desenvolvida, e não na satisfação de curiosidades sobre encarnações pretéritas marcadas pela falta de discernimento e por erros comuns nesses estágios.

Aprimorado moral e intelectualmente, o Espírito errante olha para o passado sem apego e com uma serena aceitação de que cada etapa foi necessária para chegar aonde está, mirando sua plena realização na condição de Espírito Puro, quando atingirá o grau máximo da perfeição de que é suscetível.



[1] Destacam-se os trabalhos de Morris Netherton, Brian Weiss, Michael Newton e Roger Woolger.

[2] Ver questões 223 a 233 de O Livro dos Espíritos.


terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Movimento espírita: o lento, mas necessário passo adiante

Movimento espírita: o lento, mas necessário passo adiante

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 204, jan/fev 2025, p. 17-19

  

A Doutrina Espírita foi estruturada por um notável esforço coordenado entre encarnados e desencarnados. Allan Kardec seguiu um método de validação das informações decorrentes do intercâmbio mediúnico denominado Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE) e cuja marca foi a análise crítica e ponderada do conteúdo abordado, valorizando a convergência de múltiplas fontes que não se influenciavam reciprocamente. Não se subordinou, assim, a veracidade das informações ao nome de quem assinava a mensagem ou de quem atuava como médium. Dessa maneira, uma das principais inovações trazidas pelo Espiritismo foi de caráter metodológico, tratando como simples opinião qualquer manifestação individual sem implicação de agregação ao corpo teórico-doutrinário se a essência da informação não for ratificada por fontes independentes.

O caráter progressivo do conhecimento humano reflete no próprio amadurecimento da compreensão sobre a realidade em que vivemos, destacando-se a natureza, origem e destino dos Espíritos e suas relações com o mundo corporal. Os avanços científicos, certamente, contribuem nessa direção.

Allan Kardec enfatizou, repetidamente, que o Espiritismo não deveria ser aceito pela simples crença cega, mas sim compreendido e assimilado por meio da razão. A fé raciocinada é um dos pilares da Doutrina Espírita e caracteriza-se como uma grande contribuição ao pensamento humano. Diferentemente de sistemas religiosos que exigem a aceitação de dogmas indiscutíveis ou mistérios insondáveis, o Espiritismo propõe que todas as suas afirmativas sejam passíveis de análise lógica e de conformidade com os fatos.

Nessa linha, a adoção de explicações fantasiosas, práticas místicas ou interpretações literais de mensagens mediúnicas por parte de seus adeptos sem análise crítica contraria a essência do pensamento espírita.

O Espiritismo não é uma religião no sentido tradicional, mas uma doutrina filosófica, com aspectos científicos e implicações morais. Seu objetivo não é fomentar rituais ou invocar poderes sobrenaturais, mas esclarecer o homem sobre sua verdadeira natureza e ajudá-lo a evoluir moral e intelectualmente.

Por influência de crenças anteriores ou pela falta de estudo aprofundado, alguns que se consideram adeptos acabam por trazer ao movimento espírita práticas que destoam dessa proposta. Acreditar na infalibilidade de médiuns, idolatrar Espíritos como se fossem santos ou tratar as obras mediúnicas romanceadas e ficcionais como verdades absolutas são exemplos de comportamentos que enfraquecem a proposta racional do Espiritismo.

A fé raciocinada exige esforço intelectual, estudo e autocrítica, práticas essas que diferem da formação religiosa tradicional sustentada em argumentos de autoridade e pelo carisma pessoal de reveladores da verdade. O comportamento atávico impede, de pronto, que alguns adeptos se libertem de padrões religiosos obscurantistas vivenciados no passado, por isso é justificável que a mudança não ocorra de forma imediata e a assimilação do Espiritismo seja gradual conforme as disposições e capacidades de cada um.

Todavia, há sinais promissores de que o movimento espírita está, lentamente, caminhando para esse amadurecimento necessário, ainda que envolto em crendices, sincretismo e exemplos de fé cega.

A proliferação de cursos, seminários e estudos sistematizados do ensino dos Espíritos presentes no conjunto de obras kardequianas tem ajudado a promover uma compreensão mais profunda e crítica da Doutrina. Além disso, o incentivo ao diálogo entre Ciência e Espiritismo tem sido um poderoso motor para a consolidação de uma visão mais racional e menos mística.

Estudos sobre a sobrevivência do ser após a morte física, reencarnação, experiências de quase-morte, lembranças de vidas passadas, comunicação mediúnica, entre outros, têm sido realizados por crescente número de pesquisadores não-espíritas em diferentes países.

Como bem apontou Kardec, não se teme o conhecimento científico, porque se for demonstrado que o Espiritismo está errado em algum ponto, ele se modificará nesse ponto. Essa abertura ao progresso é uma de suas maiores forças.

Para o avanço na maturidade doutrinária, as instituições espíritas têm um papel crucial nesse processo, uma vez que deveriam oferecer não apenas conforto e orientação espiritual, mas também formação doutrinária sólida e coerente, capaz de diferenciar o conteúdo legitimamente validado em fatos e na razão para explicar a realidade daquele embasado em ficção, típico de muitos romances que são facilmente consumidos pelo público ávido por histórias mágicas e envolventes.

A farta literatura supostamente mediúnica voltada a leitores espiritualistas não substitui nem complementa o corpo doutrinário espírita. Isso não tira o mérito de romances incentivarem o contato do leitor com a temática espiritualista, desde que não se aceite cegamente suas descrições ficcionais.

Em vez de se aceitar prontamente informações obtidas em mensagens mediúnicas, deve-se analisar criticamente o conteúdo transmitido, verificando sua coerência com os princípios doutrinários e sua aplicabilidade prática.

Igualmente, diante de inúmeros canais que se afirmam com conteúdo espírita nas redes sociais, os quais chegam a contar com centenas de milhares de inscritos, o cuidado em separar o joio do trigo quanto à qualidade doutrinária é constante.

A transição para uma crença fundamentada na razão é um passo que tem se mostrado vagaroso, mas indispensável, para que o Espiritismo cumpra sua missão de esclarecer, consolar e transformar a humanidade. Superar o misticismo e adotar plenamente a fé raciocinada são desafios que exigem esforço conjunto, mas que podem ser considerados como reais exercícios de caridade.