As
características do verdadeiro espírita
Marco
Milani
Texto
publicado na Revista Dirigente Espírita, n.208, set/out 2025, p. 35-36
No capítulo XVII, item 4 de O Evangelho segundo o Espiritismo,
Allan Kardec oferece uma das mais conhecidas definições do que é ser um
verdadeiro espírita: “Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação
moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más.” Essa
afirmação tem servido de referência para reflexões, estudos e práticas no
movimento espírita. No entanto, é comum que se destaque apenas a parte final da
frase, ignorando os elementos que a antecedem e que dão sentido pleno à
caracterização feita por Kardec.
Uma leitura atenta do trecho mostra que essa identificação não se dá
de forma puramente comportamental, mas parte da compreensão dos princípios
doutrinários, os quais produzem no indivíduo efeitos transformadores
duradouros. O esforço pela melhoria moral, embora essencial, não basta para
definir o verdadeiro espírita se estiver dissociado do conhecimento e da adesão
consciente aos fundamentos do Espiritismo.
Kardec inicia o trecho afirmando que o verdadeiro espírita “se acha em
grau superior de adiantamento moral” e que “o Espírito, que nele domina de modo
mais completo a matéria, dá-lhe uma percepção mais clara do futuro”. Ou seja,
trata-se de alguém em que os valores do Espírito predominam sobre os impulsos
materiais, e cuja sensibilidade espiritual é mais desenvolvida. Mas não se
trata de uma superioridade estática ou inata: ela se revela pelo que o
indivíduo compreende, acolhe e pratica. A chave dessa sensibilidade ampliada
está na frase: “os princípios da doutrina lhe fazem vibrar fibras que nos
outros se conservam inertes”. Isso significa que há uma afinidade íntima entre
o Espírito que desperta e os ensinamentos espíritas, que não apenas o comovem
intelectualmente, mas o tocam no sentimento, levando à fé inabalável.
Kardec reforça essa ideia com a metáfora do músico: “Um é qual músico
que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro apenas ouve sons.”
Essa imagem esclarece que não se trata apenas de escutar ou ler os ensinamentos
doutrinários, mas de compreendê-los com profundidade e sentir suas implicações
morais. Tal sensibilidade decorre de um progresso já alcançado e se manifesta
no esforço consciente de transformação. Não basta, portanto, desejar ser melhor
ou agir com boas intenções.
O verdadeiro espírita, portanto, é aquele que compreende os princípios
do Espiritismo e se compromete com eles em sua vivência diária, mesmo diante
das próprias imperfeições.
Desconsiderar essa dimensão doutrinária leva a um engano conceitual:
considerar como espírita qualquer pessoa de boa vontade, independentemente das
ideias que adote. Isso significaria, paradoxalmente, que fossem considerados
espíritas sinceros indivíduos que defendem crenças, práticas e valores
contrários ao Espiritismo, desde que aleguem boa intenção. Tal distorção é
incompatível com a proposta kardequiana, pois o que caracteriza o verdadeiro
espírita não é apenas a busca pelo bem, mesmo essa sendo fundamental, mas a
busca orientada pelos princípios da doutrina.
O Espiritismo, sendo uma doutrina de consequências morais, não propõe
uma conduta descolada de seu corpo filosófico e científico. Ele oferece uma
concepção racional da vida e do destino da alma, que orienta e dá sentido às
escolhas morais. Kardec deixa claro que a transformação moral é fruto da
assimilação consciente e profunda dessas verdades, e não de um moralismo
voluntarista ou emocional. Por isso, o verdadeiro espírita é “tocado no
coração” pelos princípios da doutrina, o que significa que sua fé é iluminada
pela razão, mas sustentada pelo sentimento.
Adotar o Espiritismo apenas como uma filosofia moral desprovida de
fundamentos doutrinários é reduzi-lo a um humanismo espiritual genérico,
dissolvendo sua identidade e confundindo seus objetivos. A consequência disso é
que qualquer movimento ou corrente que proponha uma ética altruísta poderia ser
considerado espírita, ainda que negue a reencarnação, a comunicabilidade dos
Espíritos ou a existência de Deus, o que seria, evidentemente, um contrassenso.
O critério proposto por Kardec é claro: o verdadeiro espírita é aquele
que, tocado pelos princípios doutrinários, esforça-se conscientemente por domar
suas más inclinações, iluminado por uma fé raciocinada que lhe amplia o
horizonte espiritual. Essa identificação não é feita por rótulo, prática
exterior ou aparência de bondade, mas por coerência entre pensamento,
sentimento e ação, enraizados no conhecimento dos fundamentos espíritas.
A moral espírita é inseparável de sua filosofia e de sua ciência. A
transformação moral não é um fenômeno espontâneo ou místico, mas o resultado de
um processo consciente de educação e prática da caridade. É esse o caminho que
o Espiritismo propõe, e é por ele que se reconhece, de fato, o espírita
verdadeiro e sincero.
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