sábado, 13 de setembro de 2025

As características do verdadeiro espírita

 

As características do verdadeiro espírita

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, n.208, set/out 2025, p. 35-36

 

No capítulo XVII, item 4 de O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec oferece uma das mais conhecidas definições do que é ser um verdadeiro espírita: “Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más.” Essa afirmação tem servido de referência para reflexões, estudos e práticas no movimento espírita. No entanto, é comum que se destaque apenas a parte final da frase, ignorando os elementos que a antecedem e que dão sentido pleno à caracterização feita por Kardec.

Uma leitura atenta do trecho mostra que essa identificação não se dá de forma puramente comportamental, mas parte da compreensão dos princípios doutrinários, os quais produzem no indivíduo efeitos transformadores duradouros. O esforço pela melhoria moral, embora essencial, não basta para definir o verdadeiro espírita se estiver dissociado do conhecimento e da adesão consciente aos fundamentos do Espiritismo.

Kardec inicia o trecho afirmando que o verdadeiro espírita “se acha em grau superior de adiantamento moral” e que “o Espírito, que nele domina de modo mais completo a matéria, dá-lhe uma percepção mais clara do futuro”. Ou seja, trata-se de alguém em que os valores do Espírito predominam sobre os impulsos materiais, e cuja sensibilidade espiritual é mais desenvolvida. Mas não se trata de uma superioridade estática ou inata: ela se revela pelo que o indivíduo compreende, acolhe e pratica. A chave dessa sensibilidade ampliada está na frase: “os princípios da doutrina lhe fazem vibrar fibras que nos outros se conservam inertes”. Isso significa que há uma afinidade íntima entre o Espírito que desperta e os ensinamentos espíritas, que não apenas o comovem intelectualmente, mas o tocam no sentimento, levando à fé inabalável.

Kardec reforça essa ideia com a metáfora do músico: “Um é qual músico que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro apenas ouve sons.” Essa imagem esclarece que não se trata apenas de escutar ou ler os ensinamentos doutrinários, mas de compreendê-los com profundidade e sentir suas implicações morais. Tal sensibilidade decorre de um progresso já alcançado e se manifesta no esforço consciente de transformação. Não basta, portanto, desejar ser melhor ou agir com boas intenções.

O verdadeiro espírita, portanto, é aquele que compreende os princípios do Espiritismo e se compromete com eles em sua vivência diária, mesmo diante das próprias imperfeições.

Desconsiderar essa dimensão doutrinária leva a um engano conceitual: considerar como espírita qualquer pessoa de boa vontade, independentemente das ideias que adote. Isso significaria, paradoxalmente, que fossem considerados espíritas sinceros indivíduos que defendem crenças, práticas e valores contrários ao Espiritismo, desde que aleguem boa intenção. Tal distorção é incompatível com a proposta kardequiana, pois o que caracteriza o verdadeiro espírita não é apenas a busca pelo bem, mesmo essa sendo fundamental, mas a busca orientada pelos princípios da doutrina.

O Espiritismo, sendo uma doutrina de consequências morais, não propõe uma conduta descolada de seu corpo filosófico e científico. Ele oferece uma concepção racional da vida e do destino da alma, que orienta e dá sentido às escolhas morais. Kardec deixa claro que a transformação moral é fruto da assimilação consciente e profunda dessas verdades, e não de um moralismo voluntarista ou emocional. Por isso, o verdadeiro espírita é “tocado no coração” pelos princípios da doutrina, o que significa que sua fé é iluminada pela razão, mas sustentada pelo sentimento.

Adotar o Espiritismo apenas como uma filosofia moral desprovida de fundamentos doutrinários é reduzi-lo a um humanismo espiritual genérico, dissolvendo sua identidade e confundindo seus objetivos. A consequência disso é que qualquer movimento ou corrente que proponha uma ética altruísta poderia ser considerado espírita, ainda que negue a reencarnação, a comunicabilidade dos Espíritos ou a existência de Deus, o que seria, evidentemente, um contrassenso.

O critério proposto por Kardec é claro: o verdadeiro espírita é aquele que, tocado pelos princípios doutrinários, esforça-se conscientemente por domar suas más inclinações, iluminado por uma fé raciocinada que lhe amplia o horizonte espiritual. Essa identificação não é feita por rótulo, prática exterior ou aparência de bondade, mas por coerência entre pensamento, sentimento e ação, enraizados no conhecimento dos fundamentos espíritas.

A moral espírita é inseparável de sua filosofia e de sua ciência. A transformação moral não é um fenômeno espontâneo ou místico, mas o resultado de um processo consciente de educação e prática da caridade. É esse o caminho que o Espiritismo propõe, e é por ele que se reconhece, de fato, o espírita verdadeiro e sincero.

 



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