Revista Espírita, dezembro de
1864
A PROPÓSITO DA COMEMORAÇÃO DOS MORTOS
ALLAN KARDEC
A Sociedade Espírita de Paris reuniu-se especialmente, pela primeira
vez, a 2 de novembro de 1864, visando a oferecer uma piedosa lembrança a seus
falecidos colegas e irmãos espíritas. Naquela ocasião o Sr. Allan Kardec
desenvolveu o princípio da comunhão do pensamento, no discurso seguinte:
Caros irmãos e irmãs espíritas,
Estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos
mortos, para dar aqueles dos nossos irmãos que deixaram a terra, um testemunho
particular de simpatia, para continuar as relações de afeição e de
fraternidade, que existiam entre eles e nós, enquanto vivos, e para chamar para
eles as bondades do Todo-Poderoso. Mas, porque nos reunirmos? Por que nos desviarmos
de nossas ocupações? Não pode cada um fazer em particular aquilo que nos
propomos fazer em comum? Não o faz cada um pelos seus? Não o pode fazer
diariamente todos os dias e à cada hora? Qual, então, a utilidade de assim se
reunir num dia determinado? É sobre este ponto, senhores, que me proponho
apresentar-vos algumas considerações.
O favor com que a ideia desta reunião foi acolhida é a primeira
resposta a essas diversas questões. Ela é o índice da necessidade que
experimentamos ao nos acharmos juntos numa comunhão de pensamentos.
Comunhão de pensamentos! Compreendemos bem todo o alcance desta
expressão? É permitido duvidá-lo, pelo menos do maior número. O Espiritismo,
que nos explica tantas coisas pelas leis que revela, ainda vem explicar a causa,
os efeitos e a força dessa situação de espírito.
Comunhão de pensamento quer dizer pensamento comum, unidade de
intenção, de vontade, de desejo, de aspiração. Ninguém pode desconhecer que o
pensamento é uma força. É, porém, uma força puramente moral e abstrata? Não: do
contrário não se explicariam certos efeitos do pensamento e, ainda menos, da
comunhão de pensamento. Para compreendê-lo é preciso conhecer as propriedades e
a ação dos elemento que constituem nessa essência espiritual, e é o Espiritismo
que no-las ensina.
O pensamento é o atributo característico do ser espiritual; é ele que
distingue o espírito da matéria; sem o pensamento o espírito não seria
espírito. A vontade não é um atributo especial do espírito; é o pensamento
chegado a um certo grau de energia; é o pensamento transformado em força
motriz. É pela vontade que o espírito imprime aos membros e ao corpo movimentos
num determinado sentido. Mas se tem a força de agir sobre os órgãos materiais,
quanto maior não deve ser sobre os elementos fluídicos que nos rodeiam! O
pensamento age sobre os fluídos ambientes, como o som sobre o ar; esses fluidos
nos trazem o pensamento, como o ar nos traz o som. Pode, pois, dizer-se com
toda a verdade que há nesses fluidos ondas e raios de pensamento que se cruzam
sem se confundir, como há no ar ondas e raios sonoros.
Uma assembleia é um foco onde irradiam pensamentos diversos; é como
uma orquestra, um coro de pensamentos onde cada um produz a sua nota. Disto
resulta uma porção de correntes e de eflúvios fluídicos dos quais cada um
recebe a impressão dos sons pelo sentido da audição.
Mas, assim como há raios sonoros harmônicos ou discordantes. Se o
conjunto for harmônico a impressão é agradável; se for discordante, a impressão
será penosa. Ora, por isto, é necessário que o pensamento seja formulado em
palavras; a radiação fluídica não deixa de existir, quer seja, ou não expressa.
Se todas forem benevolentes, todos os assistentes experimentarão um verdadeiro
bem-estar, sentir-se-ão à vontade; mas se se misturarem pensamentos maus,
produzirão o efeito de uma corrente de ar gelado num meio tépido.
Tal é a causa do sentimento de satisfação que se experimenta numa
reunião simpática; aí como que reina uma atmosfera salubre, onde se respira à
vontade; dai se sai reconfortado, porque aí nos impregnamos de eflúvios
salutares. Assim também se explicam a ansiedade, o mal-estar indefinível dos
meios antipáticos, onde pensamentos malévolos provocam, por assim dizer,
correntes fluídicas malsãs.
A comunhão de pensamentos produz, pois, uma espécie de efeito físico
que age sobre o moral. Só o Espiritismo poderia faze-lo compreender. O homem o
sente instintivamente, desde que procura as reuniões onde sabe encontrar essa
comunhão; nessas reuniões homogêneas e simpáticas, colhe novas forças morais;
poderia dizer-se que aí recupera pelos alimentos as perdas do corpo material.
Essas considerações, senhores e caros irmãos, parecem nos afastar do
objetivo principal de nossa reunião e, contudo, elas para aqui nos conduzem
diretamente. As reuniões que têm por objeto a comemoração dos mortos repousam
na comunhão de pensamentos. Para compreender a sua utilidade, era necessário
bem definir a natureza e os efeitos desta comunhão.
Para a explicação das coisas espirituais, por vezes me sirvo de
comparações muito materiais e, talvez mesmo, um tanto forçadas, que nem sempre
devem ser tomadas ao pé da letra. Mas é procedendo por analogia, do conhecido
para o desconhecido, que chegamos a nos dar conta, ao menos aproximadamente, do
que escapa aos nossos sentidos; é tais comparações que a doutrina espírita
deve, em grande parte, ter sido facilmente compreendida, mestiço pelas mais
vulgares inteligências, ao passo que se eu tivesse ficado nas abstrações da
filosofia metafísica, ainda hoje ela não teria sido partilhada senão de algumas
inteligências de escol. Ora, desde o princípio, importava que ela fosse aceita
pelas massas, porque a opinião das massas exerce uma pressão que acaba fazendo lei
e triunfando das oposições mais tenazes. Eis por que me esforcei em
simplificá-la e torná-la clara, a fim de a pôr ao alcance de todos, com o risco
de a fazer contestada por certa gente quanto ao título de filosofia, por que
não é bastante abstrata e saiu do nevoeiro da metafísica clássica.
Aos efeitos que acabo de descrever, tocante a comunhão de pensamentos
junta-se um outro, que é sua conseqüência natural, e que importa não perder de
vista: é a força que adquire o pensamento, ou a vontade, pelo conjunto dos
pensamentos ou vontades reunidas. Sendo a vontade uma força ativa, essa força é
multiplicada pelo número de vontades idênticas, como a força muscular é
multiplicada pelo número de braços.
Estabelecido este ponto, concebe-se que nas relações que se estabelecem
entre os homens e os Espíritos haja, numa reunião onde reine perfeita comunhão
de pensamentos, uma força atrativa ou repulsiva, que nem sempre possui a
criatura isolada. Se, até o presente, as reuniões muito numerosas são menos
favoráveis, é pela dificuldade de obter uma perfeita homogeneidade de
pensamentos, e que se deve à imperfeição da natureza humana na terra. Quanto
mais numerosas as reuniões, mais aí se mesclam elementos heterogêneos, que
paralisam a ação dos bons elementos, e que são como os grãos de areia numa
engrenagem. Assim não é nos mundos mais avançados e tal estado de coisas mudará
na terra, à medida que os homens se tornarem melhores.
Para os Espíritas, a comunhão dos pensamentos tem um resultado ainda
mais especial. Temos visto o efeito desta comunhão de homem a homem. O
Espiritismo nos prova que ele não é menor dos homens aos Espíritos, e
reciprocamente. Com efeito, se o pensamento coletivo adquire força pelo número,
um conjunto de pensamentos idênticos, tendo o bem por objetivo, terá mais força
para neutralizar a ação dos maus Espíritos. Também vemos que a tática destes
últimos é levar à divisão e ao isolamento. Sozinho, um homem pode sucumbir, ao
passo que se sua vontade for corroborada por outras vontades, ele poderá resistir,
conforme o axioma: A união faz a força, axioma verdadeiro, tanto no moral
quanto no físico.
Por outro lado, se a ação dos Espíritos malévolos pode ser paralisada
por um pensamento comum, é evidente que a dos bons Espíritos será ajudada; sua
influência salutar não encontrará obstáculos; seus eflúvios fluídicos, não
sendo detidos por correntes contrárias, espalhar-se-ão sobre todos os
assistentes, precisamente porque todos os terão atraído pelo pensamento, não
cada um em proveito pessoal, mas em proveito de todos, conforme a lei da
caridade. Descerão sobre eles como em línguas de fogo, para nos servirmos de
uma admirável imagem do Evangelho.
Assim, pela comunhão de pensamentos, os homens se assistem entre si e,
ao mesmo tempo, assistem os Espíritos e são por estes assistidos. As relações
do mundo visível e do mundo invisível não são mais individuais, são coletivas
e, por isto mesmo, mais poderosas em proveito das massas, como no do
indivíduos. Numa palavra, estabelece a solidariedade, que é a base da fraternidade.
Ninguém trabalha para si só, mas para todos; e trabalhando para todos, cada um
aí encontra a sua parte. É o que o egoísmo não compreende.
Todas as reuniões religiosas, seja qual for o culto a que pertençam,
são fundadas na comunhão de pensamentos; é aí, com efeito, que podem e devem
exercer toda a sua força, porque o objetivo deve ser o desligamento do
pensamento do domínio da matéria. Infelizmente a maioria se afasta deste
princípio, à medida que tornam a religião uma questão de forma. Disto resulta
que cada um, fazendo seu dever consistir na realização da forma, se julga
quites com Deus e com os homens, desde que praticou uma formula. Resulta ainda
que cada um vai aos lugares de reuniões religiosas com um pensamento pessoal,
por conta própria e, na maioria das vezes, sem nenhum sentimento de
confraternidade, em relação aos outros assistentes: isola-se em meio à multidão
e só pensa no céu para si próprio.
Certamente não era assim que o entendia Jesus, quando disse: Quando
estiverdes diversos, reunidos em meu nome, eu estarei em vosso meio. Reunidos
em meu nome, isto é, com um pensamento comum. Mas não se pode estar reunido em
nome de Jesus sem assimilar os seus princípios, a sua doutrina. Ora, qual é o
princípio fundamental da doutrina de Jesus? A caridade em pensamentos, palavras
e ação. Os egoístas e os orgulhosos mentem quando se dizem reunidos em nome de
Jesus, porque Jesus não os conhece por seus discípulos.
Tocados por esses abusos e desvios, algumas pessoas negam a utilidade
das assembleias religiosas e, conseqüentemente, dos edifício a elas
consagrados. Em seu radicalismo, pensam que seria melhor construir hospícios do
que templos, visto como o templo de Deus está em toda a parte e em toda a parte
pode ser adorado, que cada um pode orar em sua casa e a qualquer hora, ao passo
que os pobres, os doentes e os enfermos necessitam de lugar de refúgio.
Mas porque se cometem abusos, porque se afastam do reto caminho,
segue-se que não existe o reto caminho e que é mau tudo de que se abusa? Não,
por certo. Falar assim é desconhecer a fonte e os benefícios da comunhão de
pensamentos, que deve ser a essência das assembleias religiosas; é ignorar as
causas que a provocam. Que os materialistas professam semelhantes idéias,
compreende-se; porque, para eles, em tudo fazem abstração da vida espiritual;
mas da parte dos espiritualistas e, melhor ainda, dos Espíritas, seria
insensatez. O isolamento religioso, como o isolamento social, conduz ao
egoísmo. Que alguns homens sejam bastante fortes por si mesmos, fartamente
dotados pelo coração, para que sua fé e caridade não necessitem ser aquecidas
num foco comum, é possível. Mas não é assim com as massas, a que falta um
estimulante, sem o qual poderiam deixar-se tomar pela indiferença. Além disso
qual o homem que poderá dizer-se bastante esclarecido para nada ter que
aprender no tocante aos interesses futuros? bastante perfeito para prescindir
dos conselhos para a vida presente? Será sempre capaz de instruir-se por si
mesmo? Não. A maioria necessita de ensinamentos diretos em matéria de religião
e moral, como em matéria de ciência. Sem contradita, tais ensinos podem ser
dados em toda a parte, sob a abóbada do céu, como sob a de um templo. Mas, por
que os homens não haveriam de ter lugares especiais para as coisas celestes,
como os têm para as terrenas? Porque não teriam assembleias religiosas, como
têm assembleias políticas, científicas e industriais? Isto impede as fundações
em beneficio dos infelizes. Dizemos, ainda mais, que quando os homens
compreenderem melhor seus interesses do céu, haverá menos gente nos hospícios.
Falando de maneira geral e sem alusão a nenhum culto, se as
assembleias religiosas muitas vezes se afastaram de seu objetivo principal, que
é a comunhão fraterna do pensamento; se o ensino que aí é dado nem sempre
seguiu o movimento progressivo da humanidade, é que os homens não cumprem todos
os progressos ao mesmo tempo; o que não fazem num período, fazem em outro; à
medida que se esclarecem, vêem as lacunas existentes em suas instituições, e as
preenchem; compreendem que o que era bom numa época, em relação ao grau de
civilização, torna-se insuficiente numa etapa mais adiantada, e restabelecem o
nível. Sabemos que o Espiritismo é a grande alavanca do progresso em todas as
coisas; ele marca uma era de renovação. Saibamos, pois, esperar, e não peçamos
a uma época mais do que ela pode dar. Como as plantas, é preciso que as idéias
amadureçam para colher os frutos. Saibamos, além disso, fazer as necessárias
concessões às épocas de transição, porque nada na natureza se opera de maneira
brusca e instantânea.
Em razão do motivo que hoje nos reúne, senhores e caros irmãos,
julguei oportuno aproveitar a circunstância para desenvolver o princípio da
comunhão de pensamentos, do ponto de vista do Espiritismo. Sendo o nosso
objetivo unirmo-nos em intenção para oferecer, em comum, um testemunho
particular de simpatia aos nossos irmãos falecidos, poderia ser útil chamar
nossa atenção para as vantagens da reunião. Graças ao Espiritismo,
compreendemos a força e os efeitos do pensamento coletivo; podemos melhor
explicar-nos o sentimento de bem-estar que se experimenta num meio homogêneo e
simpático; mas, igualmente, sabemos que o mesmo se dá com os Espíritos, porque
eles sabem receber os eflúvios de todos os pensamentos benevolentes, que para
eles se elevam, como uma nuvem de perfume. Os que são felizes experimentam a
maior alegria neste concerto harmonioso; os que sofrem sentem com isto o maior
alívio. Cada um de nós, em particular, ora de preferência por aqueles que o interessam
ou que mais estima. Façamos que aqui todos tenham sua parte nas preces
dirigidas a Deus.
Excelente texto. Permite ir além, muito além do que representa o dia de hoje. "Todas as reuniões são comunhão de pensamento." Começemos pois com essa comunhão no nosso lar, com nossas famílias.
ResponderExcluirDe fato, é um texto muito rico, Carmine. Há premissas relevantes que justificam a necessidade da comunhão harmoniosa de pensamentos. Tal é o efeito do Evangelho no Lar quando realizado nesse sentido.
ExcluirBelo e significativo texto.Quando ha comunhão de pensamentos positivos toda a assembleia se justifica.A intenção que move um reunião ou seja uma assembleia é essencial.
ResponderExcluir