Comentários
adicionais sobre o Capítulo XVIII da 5ª edição de A Gênese:
Seria
Kardec o autor dessas alterações?
Marco
Milani
Algumas
pessoas ainda estão em dúvida se as alterações no texto da 5ª
edição francesa da obra A Gênese: os milagres e as predições
segundo o espiritismo, são
doutrinariamente relevantes. É uma dúvida saudável, pois incentiva o estudo comparativo da
edição original com essa
edição publicada posteriormente à morte de Allan Kardec.
Em
todos os seus 18 capítulos, na 5ª edição de
A Gênese registram-se
supressões, acréscimos e/ou reordenamentos de trechos e até de itens
inteiros. Em alguns capítulos, não houve comprometimento
doutrinário significativo,
porém,
em outros, houve. Um desses é o Capítulo XVIII,
intitulado “Os tempos são
chegados”.
Comentários
sintéticos sobre
as inconsistências doutrinárias
das alterações encontradas
nesse capítulo da 5ª edição já foram anteriormente publicados no
jornal Dirigente Espírita, nov/dez 2018, p.5, e está disponível
para consulta no seguinte link:
Adicionalmente,
os comentários abaixo, também
referenciados em outras obras,
objetivam apenas detalhar algumas relações conceituais que
favorecem o exame desse
capítulo de A Gênese.
O
ensino dos Espíritos, analisado,
organizado e publicado por
Allan Kardec, é bastante claro ao
se contrapor a
crendices supersticiosas e
místicas que vinculam
o destino das pessoas à influência dos astros. Cada
ser humano possui livre-arbítrio e é responsável por seus atos e
consequências, sendo
irrelevante a posição astronômica em que os orbes celestes se
encontravam quando o indivíduo nasceu.
Sobre
esse tema, podemos citar,
por exemplo,
a questão nº 867, de O Livro dos Espíritos, reproduzida a seguir:
867.
Donde vem a expressão: Nascer sob uma boa estrela?
“Antiga
superstição, que prendia às estrelas os destinos dos homens.
Alegoria que algumas pessoas fazem a tolice de tomar ao pé da
letra.”
Igualmente,
Kardec critica a ilusória influência que
as constelações teriam
sobre os homens no Capítulo
5, item 12, na própria obra A Gênese, tanto em sua 1ª edição
quanto na 5ª edição. Após consistentes esclarecimentos sobre os
motivos de já não se poder levar a sério tal
crendice diante do avanço do
conhecimento, assim
ele conclui o item:
“A
crença na influência das constelações, sobretudo das que
constituem os doze signos do zodíaco, proveio da ideia ligada aos
nomes que elas trazem. Se à que se chama leão fosse dada o nome de
asno ou de ovelha, certamente lhe teriam atribuído outra
influência.”
Como
movimento natural do desenvolvimento das ideias, certamente a
humanidade progride desvendando a realidade baseada em fatos,
conjecturando e analisando as
causas dos diferentes fenômenos observados. Nesse sentido, Kardec
situa a astrologia e outras tentativas de explicar a realidade e
prever acontecimentos como a
expressão do conhecimento de determinada época, mas que foi
superada pelo avanço da ciência. No Capítulo 1, da obra O que é o
Espiritismo, durante o diálogo com o cético, Kardec assim escreve:
Antes
dos progressos sérios da Astronomia, acreditava-se na Astrologia.
Será razoável dizer-se que a Astronomia para nada serve, porque já
não se pode encontrar na influência dos astros o prognóstico do
destino?
Assim
como a Astronomia destronou os astrólogos, o Espiritismo veio
destronar os adivinhos, os feiticeiros e os que liam a buena-dicha.
Ele é, para a magia, o que é a Astronomia para a Astrologia, a
Química para a Alquimia.
Ao
questionar se os acontecimentos já estavam fatalmente determinados,
Kardec obteve a seguinte resposta na questão nº 851, de O Livro dos
Espíritos, em que se destaca a clara separação entre provas
físicas e decisões morais dos indivíduos:
851
– Há uma fatalidade nos acontecimentos da vida, segundo o sentido
ligado a essa palavra, quer dizer, todos os acontecimentos são
predeterminados? Nesse caso, em que se torna o livre-arbítrio?
“A
fatalidade não existe senão pela escolha que fez o Espírito, em se
encarnando, de suportar tal ou tal prova. Escolhendo, ele se faz uma
espécie de destino que é a consequência mesma da posição em que
se encontra. Falo das provas físicas, porque para o que é prova
moral e tentações, o Espírito, conservando seu livre-arbítrio
sobre o bem e sobre o mal, é sempre senhor de ceder ou resistir. Um
bom Espírito, vendo-o fraquejar, pode vir em sua ajuda, mas não
pode influir sobre ele de maneira a dominar sua vontade. Um Espírito
mau, quer dizer, inferior, mostrando-lhe, exagerando-lhe um perigo
físico, pode abalá-lo e assustá-lo; mas a vontade do Espírito
encarnado não fica menos livre de todos os entraves.”
Acontecimentos
físicos, portanto,
não implicam fatalidades sob o aspecto moral, dado o livre-arbítrio
do homem. As transformações morais
dependem das escolhas e ações
dos Espíritos, independentemente de ocorrências físicas, sejam
essas coletivas ou individuais.
Naturalmente
a humanidade progride sob os aspectos morais e intelectuais e,
individualmente, o Espírito nunca retroage (LE-118).
Considerando que há épocas em que esses progressos se caracterizam
de maneira mais intensa, é possível registrar momentos marcantes
que atestam essa marcha evolutiva. No Capítulo
I do livro O Evangelho
Segundo o Espiritismo, temos,
por exemplo, as três revelações como movimentos evolutivos do
conhecimento sobre a realidade espiritual e
nossa relação com Deus, com
muitos séculos de espaçamento entre elas. Sob a perspectiva
espiritual, esses movimentos podem ser previstos porque os seres
evoluem e é por isso que os Espíritos afirmaram a Kardec que o
período de regeneração da humanidade já havia se iniciado. Isso
não se trata de previsão astrológica, mas natural desenvolimento moral.
Os
registros bíblicos que associam o final dos tempos (para início da
era de regeneração) estavam fartamente associados a imagens que
deveriam impressionar os sentidos e o senso comum.
No
item 50, do Capítulo XVII de A Gênese, ao tratar dos sinais
precursores, encontramos uma citação evangélica, novamente usando
a figura da queda de estrelas:
50.
Logo depois desses dias de aflição, o Sol se obscurecerá e a Lua
deixará de dar sua luz; as estrelas cairão do céu e as potestades
dos céus serão abaladas. Então, o sinal do Filho do homem
aparecerá no céu e todos os povos da Terra estarão em prantos e em
gemidos e verão o Filho do homem vindo sobre as nuvens do céu com
grande majestade. (Mt,
24:29-30)
Os
Espíritos explicaram, no
item 54 desse Capítulo XVII, que
esse quadro
do fim dos tempos “era
evidentemente alegórico”,
para
impressionar inteligências ainda rudes. No
item 55, destacam que “entre os antigos, os tremores de terra e o
obscurecimento do Sol eram acessórios forçados de todos os
acontecimentos e de todos os presságios sinistros”, e ainda
comentam que a figura de uma
queda de estrelas do céu “não passa de ficção”.
Assim,
imagens ficcionais relacionadas a
vaticínios povoaram
a imaginaçãos de gerações,
fazendo com que as crendices supersticiosas do passado ainda possam
estar presentes no comportamento atávico de muitas pessoas.
Uma
pessoa em particular, entretanto, não demonstrou nenhuma
tendência mística e supersticiosa durante a estruturação da
Doutrina Espírita: Allan Kardec.
Durante
toda a sua trajetória, o Codificador se pautou pelo rigor
metodológico e argumentação criteriosa baseada na razão.
Estranhamente,
há uma nota do autor (ou
seja, supostamente de Kardec) acrescentada
na 5ª edição de A Gênese, referente ao item 10 do Capítulo
XVIII, o qual trata de relações entre acontecimentos físicos e
morais, reproduzida a seguir:
Nota:
A terrível epidemia que, de 1866 a 1868, dizimou a população da
Ilha Mauricia foi precedida por uma chuva tão extraordinária e tão
abundante de estrelas cadentes, em novembro de 1866, que os
habitantes ficaram terrificados. A partir desse momento, a doença,
que grassava desde alguns meses de maneira muito benigna, tornou-se
um verdadeiro flagelo devastador. Sem
dúvida houve um sinal no céu, e talvez nesse sentido que era
preciso entender as estrelas caindo do céu de que fala o Evangelho,
como um dos sinais dos tempos.
(Detalhes sobre a epidemia da Ilha Mauricia, Revista Espírita, julho
de 1867, p. 208; novembro de 1868, p. 321.)
Allan
Kardec faria a afirmação supersticiosa de que “sem dúvida” a
chuva de estrelas cadentes era um “sinal dos céus” para
algum flagelo?
Para
explorar o
assunto, faz-se necessário ler sobre a epidemia ocorrida
na Ilha Maurícia, na Revista
Espírita de nov/1868. Duas cartas escritas
por espíritas moradores
nessa ilha foram lidas na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas
e, depois,
verificaram-se comunicações mediúnicas sobre o caso.
Especificamente,
em trecho da segunda carta lida na ocasião, o missivista afirma:
“… Em
nosso ponto de vista espiritualista, poderíamos ver aí uma
aplicação do prefácio do Evangelho Segundo o Espiritismo, porque
o período nefasto que
atravessamos foi marcado, no começo, por uma extraordinária chuva
de estrelas cadentes,
caída em Maurícia na noite de 13 de para 14 de novembro de 1866.
Posto que o fenômeno fosse conhecido, por ter sido muito frequente
de setembro a novembro em certa épocas periódicas, não é menos
admirável que, desta vez, as estrelas cadentes foram tão numerosas
que fizeram tremer e impressionaram os que as observaram. Esse
imponente espetáculo ficará gravado em nossa memória, porque foi
precisamente depois desse acontecimento que a moléstia tomou um
caráter aflitivo. Desde
esse momento tornou-se geral e mortal, o que hoje nos pode autorizar
a pensar, como diz o Dr. Demeure, que chegamos
ao período de transformação dos habitantes da terra, por seu
adiantamento moral.”
A
respectiva Nota atribuída a Kardec na 5ª edição captura parte do conteúdo
da carta acima do
habitante da Ilha Maurícia, cujo embasamento doutrinário é
altamente questionável, pendendo para a interpretação
supersticiosa dos “sinais dos céus” pressagiando acontecimentos
terríveis associados ao
período de regeneração da Terra. O
missivista se posicionar expressando crendices do passado é
compreensível, pois o amadurecimento doutrinário varia de pessoa
para pessoa, porém seria surpreendente se Kardec assim se
expressasse.
Logo
após a leitura das cartas, registrou-se a comunicação mediúnica
de Clélie Duplantier, em
16/10/1868. Tal comunicação,
é passível de análise quanto ao conteúdo. A seguir, apresentam-se
os parágrafos iniciais da
mensagem:
Em
todos os tempos fizeram preceder os grandes cataclismos fisiológicos
de sinais manifestos da cólera dos deuses.
Fenômenos particulares precediam a irrupção do mal, como uma
advertência para se prepararem para o perigo. Essas manifestações,
com efeito, ocorreram não como um presságio sobrenatural, mas como
sintomas da iminência da perturbação.
Como
tivemos oportunidade de dizer-vos, nas
crises em aparência as mais anormais que dizimam passo a passo as
diferentes regiões do globo, nada foi deixado ao acaso; elas são a
consequência das influências dos mundos e dos elementos uns sobre
os outros (outubro de 1868); elas são preparadas de longa data, e
sua causa é, por consequência, perfeitamente normal.
A
saúde é o resultado do equilíbrio das forças naturais; se uma
doença epidêmica devasta qualquer lugar, ela não pode ser senão a
consequência de uma ruptura desse equilíbrio; daí o estado
particular da atmosfera e os fenômenos singulares que aí podem ser
observados.
Os
meteoros conhecidos pelo nome de estrelas cadentes
são compostos de elementos materiais, como tudo o que cai sob os
nossos sentidos. Eles não aparecem senão graças à fosforescência
desses elementos em combustão, e cuja natureza especial por vezes
desenvolve no ar respirável, influências deletérias e mórbidas.
As estrelas cadentes eram, para a Ilha Maurícia,
não o presságio, mas a causa secundária do flagelo.
Por que sua ação se exerceu em particular sobre aquela região?
Primeiro, porque, como disse muito bem o vosso correspondente, ela é
um dos meios destinados a regenerar a Humanidade e a Terra
propriamente dita, provocando a partida de encarnados e a modificação
dos elementos materiais. Depois, porque as causas que determinam
essas espécies de epidemias em Madagascar, no Senegal e por toda
parte onde a febre palustre e a febre amarela exercem sua devastação
não existem na Ilha Maurícia,
a violência e a persistência do mal deveria determinar a pesquisa
séria de sua fonte e atrair a atenção sobre a parte que aí podiam
tomar as influências de ordem psicológica.
As
mensagens publicadas na Revista Espírita são registros históricos
relevantes e fontes de pesquisa, porém há diferentes tipos de
comunicações, conforme o grau de conhecimento e elevação moral do
Espírito comunicante. A mensagem acima inicia-se de maneira
evidentemente mística, fazendo referência à
cólera dos deuses e às supostas crises fatalistas “preparadas de
longa data”, além de reforçar uma suposta inter-relação de
acontecimentos físicos com a regeneração moral da humanidade,
caracterizando-se por desencarnações coletivas. Chega a associar
influências mórbidas e deletérias dos elementos químicos dos
meteoros no “ar respirável” da região em que se precipitam,
assim as estrelas cadentes agora não seriam mais um presságio (como
sinalizado no início da comunicação), mas em uma “causa
secundária do flagelo”!
Na
Revista Espírita, Allan Kardec não comentou, nem as cartas dos
moradores da Ilha Maurícia nem as respectivas
comunicações mediúnicas.
Estranhamente, foram
acrescentados no Capítulo XVIII da 5ª edição, itens sobre a
influência mútua dos astros relacionados a acontecimentos morais
(ver o item 10, por exemplo) e, gerando perplexidade, também foi
acrescentada uma Nota “do autor” com teor supersticioso.
Diante
desses fatos,
cada leitor pode ponderar se o conteúdo supersticioso deve
ser atribuído a Kardec. A
mesma pergunta é possível de ser feita diante de fragilizações e
outras inconsistências presentes nos demais capítulos dessa 5a.
Edição de A Gênese, que
anuncia em sua capa “revista, corrigida e aumentada”. Na dúvida
ou reconhecendo que as alterações distorcem os conceitos espíritas,
fiquemos com a edição original.
Parabéns,por todo o conteúdo dessa matéria, muito importante e esclarecedor, enfatizando o trabalho e a dedicação de Kardec, sobre sua clareza doutrinária, sempre lado a lado com as pesquisas científicas.
ResponderExcluirGrato, Roberto.
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