Seria Kardec o autor das alterações da 5ª edição de A Gênese?
Marco Milani*
(Artigo publicado originalmente na revista Dirigente Espírita, ed. nº 177, mai/jun 2020, p. 8)
Desde a relevante pesquisa documental e bibliográfica de Simoni Privato Goidanich, publicada pela Confederação Espírita Argentina no livro El Legado de Allan Kardec, em 2017, as alterações sofridas e questões envolvendo a legitimidade da 5ª edição francesa da obra A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo, passaram a ser discutidas por entidades federativas e estudiosos espíritas de vários países.
A recente notícia de que foi localizado em uma biblioteca suíça um exemplar da 5ª edição datado em sua capa com o ano de 1869, gerou incontida euforia por alguns, curiosidade histórica e científica por outros e, para muitos adeptos, não chegou a ser o tipo de assunto pelo qual se sentem atraídos e mostram-se indiferentes.
Ao que tudo indica, o conteúdo do referido exemplar é idêntico àquele depositado legalmente na Biblioteca Nacional da França em 1872 e registrado como 5ª edição.
Mas por que esse fato despertou o interesse de muitos estudiosos? Porque a qualidade das alterações da 5ª edição são questionáveis, tanto em aspectos estruturais no texto quanto em aspectos conceituais e até doutrinários. Há também o aspecto legal, pois se houve alteração da obra sem o conhecimento e autorização de Allan Kardec em vida, caracterizaria-se uma adulteração.
Assim, criou-se uma polêmica em torno do assunto com pessoas afirmando ou negando ter sido Kardec o autor dessas alterações e a busca por evidências que contribuiriam para esse esclareceimento se intensificou desde então.
Como em tudo que envolve o ser humano, opiniões especulativas, manifestações passionais e pseudocientíficas podem ocorrer em parcela do público que acompanha o desenrolar dessa polêmica. Outros envolvidos, com um pouco mais de sobriedade, procuram fundamentar suas argumentações em fatos e, diante da dúvida e ausência de provas, optam, prudentemente, por não atestar a autoria das modificações.
Nesse sentido, é possível construir hipóteses para o caso, porém é inegável que a análise comparativa do conteúdo deva ser um elemento essencial para se discutir a questão.
A União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP), alinhada com outras entidades federativas brasileiras e internacionais, protagoniza e fomenta estudos comparativos entre a edição original e a 5ª edição desde 2018 e conta com uma coluna específica em seu jornal Dirigente Espírita dedicada às principais modificações e eventuais impactos doutrinários identificados.
As alterações ocorreram em todos os 18 capítulos da 5ª edição, algumas mais e outras menos significativas, porém bastaria uma única modificação que não tenha sido autorizada ou feita por Kardec para se ferir o aspecto legal e, igualmente, bastaria uma única modificação com desvirtuamento doutrinário para se questionar se Kardec teria se contradito e gerado prejuízo conceitual à obra.
Grupos que defendem afoitamente que Kardec teria sido o autor sem examinar a qualidade doutrinária das alterações ou, de maneira insensata, negam a priori qualquer impacto prejudicial no texto, deveriam rever tais posições.
Apenas como exemplo, aponta-se a distorção encontrada no capítulo 14, logo em seu item 1.
Na edição original, Kardec enfatiza que os fenômenos espirituais não podem ser explicados pelas leis da matéria. Isso está plenamente coerente com todas as afirmações anteriores de Kardec.
Na 5ª edição, entretanto, a palavra "matéria" foi substituída por "natureza" e claramente mudou o significado, pois as leis naturais abrangem tanto os elementos materiais quanto os espirituais e, ao fazer essa substituição, os fenomenos espirituais são excluídos das leis naturais e passam a ser "sobrenaturais". A frase fica incoerente.
Assim, conceitualmente há um problema que contradiz todos os usos que Kardec fez da expressão "leis da natureza" nesta obra. Basta se verificar o capítulo 13, o qual é imediatamente anterior a esse e expressa a compreensão de Kardec sobre o tema, nos itens 1, 8, 9, 10, 13, 16 e 17, dentre outros.
Para mais detalhes sobre essa modificação, pode-se consultar o artigo disponível no link a seguir:
Teria sido mesmo Kardec quem alterou esse texto?
Tal questionamento pode ser feito para várias das alterações, portanto, cabe a cada um comparar e analisar ponderadamente as edições, sem posições apaixonadas e desprovidas de razão, para embasar e contribuir com argumentações mais adequadas.
Essa discussão não retira a possibilidade de Kardec ter sido o autor de deturpações como essa, apesar de improvável, dado o seu cuidado doutrinário, mas antes de se afirmar isso, recomenda-se se abster se tiver dúvida.
Certamente, alguns procurarão negar tais distorções dizendo que, se somente agora esses problemas estão sendo discutidos, é porque nunca foram importantes e não seria agora que eles passariam a ser apontados como distorções.
Mas um fato pitoresco pode auxiliar a entender que o problema sempre existiu, mas não havia divulgação e investigação suficientes sobre isso. Na versão brasileira da 5ª edição pela LAKE Editora (16ª edição, do 106º ao 110º milheiros - mar/1988), a qual contou com apresentação e notas de Herculano Pires e a tradução de Victor Tollendal Pacheco, essa distorção encontrada no item 1 do Capítulo 14 foi "corrigida". A palavra "natureza" foi substituída por "matéria", como na edição original! Assim, o tradutor ou revisor percebeu a distorção da 5a. edição francesa e decidiu corrigir, arbitrariamente, o problema.
Considerando que A Gênese nunca havia recebido tanta atenção de pesquisadores como agora e, ainda, que a edição original praticamente não era divulgada, esse tipo de problema não ficava evidente. Sem estudos comparativos com a edição original, como se saberia se a 5ª edição estaria mais adequada ou não?
Fica o convite para todos os interessados em participar dessas discussões que, antes, analisem cuidadosamente o conteúdo de ambas as edições e não se baseiem em especulações afoitas para afirmarem se Kardec foi, ou não, o autor de inconsistências doutrinárias.
* Diretor do Departamento de Doutrina da USE-SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário