A POLÊMICA DA ALIMENTAÇÃO ANIMAL
E SUA RELAÇÃO COM A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL
Fernando de Oliveira Porto
Departamento de Doutrina - USE SP
(Texto publicado na Revista Dirigente Espírita - ed. 186 - nov/dez 2021 - p.40 a 42)
O consumo da alimentação animal é um assunto bastante em voga hoje em
dia e abrange diversos aspectos, não somente relacionados à saúde humana, como
também sobre sustentabilidade e mesmo aspectos éticos envolvidos. Para cada um
desses temas, no entanto, observa-se divergência entre os especialistas sobre o
impacto na saúde do ser humano e no equilíbrio da natureza.
Não nos compete analisar as questões relacionadas à nutrição
propriamente dita, afeita aos especialistas no tema. O que motiva a nossa
discussão é a defesa, por parte de determinados grupos de espíritas, da
introdução da necessidade da abstenção da alimentação da proteína animal para o
progresso do Espírito, como um princípio do Espiritismo.
Em geral, essa defesa se baseia no posicionamento de alguns Espíritos no
cenário do Movimento Espírita Brasileiro, ao tecerem severas críticas ao
consumo da carne, atribuindo consequências deletérias ao Espírito após o desencarne,
além de ressaltarem como um ato de crueldade do ser humano a exploração dos
animais.
Por maior respeitabilidade que esses irmãos espirituais mereçam da nossa
parte, considera-se, para efeito da diretriz estabelecida pela coerência
doutrinária, privilegiar-se os ensinamentos exarados na Codificação Espírita.
Nestas obras, Allan Kardec adotou o controle universal do ensino dos
Espíritos, evitando-se as opiniões isoladas e sistemáticas.
Em O Livro dos Espíritos, nas perguntas 722 a 724, foi abordada a
questão da alimentação de maneira bastante lógica e equilibrada. Os Espíritos
afirmam que todo o alimento que não prejudique a saúde do ser humano é
permitido para o consumo. Acrescentam, ainda, que em face das leis de
conservação e do trabalho, faz-se imprescindível alimentar-se bem, em benefício
da saúde e da energia, pois a “carne alimenta a carne”, de acordo com a nossa
constituição física. Somente em um caso, esclarecem eles, a abstenção do
alimento, seja ele de qualquer natureza, é meritória: quando em benefício dos
outros, isto é, “quando há privação séria e útil”.
Os Espíritos classificam de hipocrisia a privação apenas aparente
de qualquer coisa, como uma espécie de sinalização de virtude, aliás algo muito
comum em nossos dias. Vive-se de aparências e intolerância perante estilos de
vida diferentes dos nossos. É por isso que o egoísmo e o orgulho são
os grandes males a serem combatidos.
Os amigos espirituais vão mais além. Em O Céu e o Inferno, no
item intitulado Cuidar do Corpo e do Espíritos, ao esclarecerem a
necessidade dos cuidados com o envoltório material, em razão de sua influência
sobre a alma, afirmam que o corpo precisa “estar são, disposto, forte”, a fim
de que a alma “viva, divirta-se e chegue mesmo a conceber as ilusões da
liberdade”.
Mas, alegam os críticos, e quanto à afirmação de Bernard Palissy, na
Revista Espírita de abril de 1858, de que os habitantes de Júpiter se alimentam
exclusivamente de fonte vegetal, pois “o homem é o protetor dos animais”? Não
seria um indicativo de uma imposição de mudança de hábitos de nossa parte?
A primeira objeção é a de que uma afirmação isolada de um Espírito não
serve de critério infalível para o estabelecimento de uma regra de conduta. Em
segundo lugar, a Revista Espírita foi um laboratório no qual as teorias e
conceitos doutrinários foram gradativamente forjados e não um repositório de
verdades prontas.
Mas, o mais relevante argumento é a assertiva de que a alimentação dos
habitantes de Júpiter é composta de frutos e plantas, em razão da organização
etérea de seus corpos e, portanto, nossos alimentos são pesados para eles.
Muito interessante, porém, a observação de que a alimentação deles “não seria
suficientemente substancial para os nossos estômagos grosseiros”.
A sensualidade, o apego às coisas materiais e o desregramento das
paixões estão entre os fatores capazes de prejudicarem o nosso progresso
espiritual, aproximando-nos da nossa natureza animal, conforme os ditames da
matéria. Mas não são as paixões más em si mesmas, e sim o seu excesso o
problema. A moderação, a temperança e o equilíbrio aplicados às nossas
condutas, inclusive na conservação da vida, são os preceitos recomendados em
consonância com o Espiritismo.
O Espiritismo é a doutrina do livre exame e da livre consciência e não
pode ser encarado nos mesmos moldes das religiões dogmáticas existentes, nas
quais a posição de sacerdotes, pastores e instituições, em razão da solidez de
suas tradições, tem força de autoridade sobre os fiéis e seguidores.
Se o espírita considera modificar hábitos alimentares para benefício de
sua saúde, com a devida orientação médica, por considerar relevante para o seu
bem-estar, físico, psíquico e espiritual, é plenamente livre para fazê-lo. Mas
que tenha consciência que esse fator, em absoluto, não representa por si mesmo
garantia de elevação espiritual perante os seus semelhantes.
Lembremos de Jesus que, em Mateus 11:18-19, ironiza seus adversários, ao
acusarem-no de endemoninhado por comer e beber na presença de publicanos e
“pecadores”, assim como criticavam João Batista, não obstante não comesse e nem
bebesse com eles. O mestre, aliás, se sai com um epíteto curioso: “a sabedoria
é justificada pelas suas obras”.
Na intencionalidade da consciência, no sentimento bom ou mau que nos
guia, mais do que as ações exteriores, situa-se o valor de nosso procedimento,
pois, conforme o próprio Cristo ponderou sobre a questão do alimento, não é
o que entra pela boca do homem que o contamina, mas o que procede do seu
coração (Mateus 15:17-18).
Bibliografia
BÍBLIA. O Novo Testamento. Trad. Haroldo
Dutra Dias. Brasília: FEB, 2013.
KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Brasília: FEB, 2016.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Brasília: FEB, 2016.
KARDEC, Allan. Revista Espírita. Vol. I
(1858). Trad. Evandro Noleto Bezerra. Brasília: FEB, 2004.
Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2021/11/DE186.pdf
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