segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Coerência e Método

 

Coerência e Método

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 197, set/out 2023, p.27-28.

  

A coerência doutrinária espírita se caracteriza pela concordância e nexo com os fundamentos do Espiritismo, portanto, vincula-se à compreensão e expressão do corpo teórico que identifica a própria Doutrina Espírita. Em sua origem, os princípios doutrinários foram apresentados seguindo-se o método proposto por Allan Kardec baseado na generalidade e convergência das informações. As questões duvidosas, sem a devida validação, deveriam aguardar até que fatos novos surgissem e garantissem a plena aceitação ou refutação.

A simultaneidade e a ausência de influência mútua entre as fontes são cuidados científicos que Kardec já se preocupava na adoção do critério da universalidade, como observado no item 99, Capítulo II, da obra O que é o Espiritismo.

 

Quando o mesmo princípio é ensinado em muitos pontos por diferentes Espíritos e médiuns estranhos uns aos outros e isentos de idênticas influências, pode-se concluir que ele está mais próximo da verdade do que aquele que emana de uma só fonte e é contradito pela maioria.[1]

 

          Fonte única no intercâmbio mediúnico trata-se de opinião, a qual pode ou não ser justa, cabendo a comprovação por fatos observáveis ou a validação por fontes que não influenciem-se mutuamente nem sejam correlacionadas pela origem, enviesando o processo.

          O zelo metodológico para a produção e validação do conhecimento espírita exige, portanto, a adoção de critérios que afastem a aceitação ou refutação prematura de conteúdo transmitido mediunicamente, independentemente de quem sejam os médiuns envolvidos.

          Kardec previu a discussão aberta sobre os pontos sem consenso, supondo que a maioria legitimaria a orientação sobre as divergências interpretativas e, nesse suporte, também previu um órgão (Comissão Central) que estaria sob escrutínio coletivo em congressos regulares e teria a competência de analisar princípios novos, susceptíveis de entrar no corpo da doutrina.

          Atualmente, é um desafio buscar-se a concordância generalizada e a validação de novo conhecimento doutrinário, uma vez que uma característica estrutural do movimento espírita em âmbito local, nacional ou mundial é, justamente, a não existência de redes hierarquizadas com autoridade legítima para validar e incorporar novos princípios e conceitos no corpo teórico espírita.

          Desde o surgimento dos primeiros grupos espíritas, verificam-se peculiaridades em cada um deles espalhados pelo mundo, fruto do grau de compreensão e maturidade doutrinária de seus componentes e dirigentes. Kardec reconhecia essa situação e sempre privilegiou o fundo em detrimento da forma, respeitando-se o bom senso. Simultaneamente, Kardec concitou os adeptos ao zelo doutrinário destacando ser um dever de todos os espíritas sinceros o repúdio e a desautorização de ideias e práticas que pudessem comprometer o Espiritismo para não se tornarem cúmplices e fornecer armas aos adversários.

          A coerência, portanto, é um conceito subjacente àquele que Kardec denominou de adepto sincero. A atitude coerente depende, entretanto, do que o adepto compreende e pratica com base no corpo teórico doutrinário e, principalmente, no que esse indivíduo aceita como conhecimento espírita válido.

          Só existe um Espiritismo, mas os diferentes graus de maturidade doutrinária, além de interesses particulares diversos, podem fazer com que discursos e práticas assumam contornos específicos que levem um observador desatento a supor que existam variações do Espiritismo. Equivocadamente, pode-se confundir a doutrina com os adeptos. 

          Ao validar fontes e referências que fujam do método que promoveu a consistência interna da Doutrina Espírita, o adepto tende a gerar conflitos e confusões conceituais. O simples fato de se considerar que o conteúdo de certos livros ou comunicações mediúnicas de fonte única sejam novas verdades mais atualizadas e que superam ou complementam as obras de Kardec sem a devida validação embasada metodologicamente, já promove-se a divergência interpretativa e, mesmo que diferentes adeptos autoconsiderem-se coerentes sobre pontos conflitantes, os fatos não são relativistas.

          Em síntese, há indivíduos que racionalmente posicionam-se de maneira coerente com o que acreditam ser o arcabouço conceitual do Espiritismo, mas como a compreensão particular desse arcabouço pode variar pelo grau de maturidade doutrinária e metodológica do indivíduo e inexiste no movimento espírita um órgão central capaz de definir e regular de maneira absoluta a produção e validação do conhecimento espírita além daquele devidamente apresentado por Allan Kardec, dificulta-se a concepção plena de unidade e do dinamismo doutrinário se não se valorizar um método com fontes e referências múltiplas, independentes, isentas de vieses e que sejam concordantes, bem como deve-se contar com o suporte científico para a evidenciação dos fatos e elaboração de hipóteses.

 

“O Espiritismo e a Ciência se completam um pelo outro. A Ciência sem o Espiritismo se acha impossibilitada de explicar certos fenômenos, unicamente pelas leis da matéria; o Espiritismo sem a Ciência ficaria sem apoio e exame.”[2]

  



[1] KARDEC, A. O que é o Espiritismo. Araras: IDE, 1991

[2] KARDEC, A. A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução da 4ª edição original francesa. São Paulo: USE, 2021


Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2023/10/reDE-197.pdf


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