O período religioso do Espiritismo
Marco Milani
Texto publicado na Revista Digital Candeia Espírita, nº 27, dez/2023, p.6-7
Na edição de dezembro de 1863 da Revista Espírita, Allan Kardec apontou seis períodos que marcariam a marcha evolutiva do Espiritismo. Iniciando-se pela curiosidade despertada pelos fenômenos físicos, o desenvolvimento das ideias espíritas na sociedade passaria, ainda, pelas fases filosófica, de luta, religiosa, intermediária e, finalmente, de regeneração social.
Sob uma perspectiva otimista, Kardec acreditava que no raiar do século 20 o Espiritismo já estaria plenamente disseminado no mundo a tal ponto de, efetivamente, promover relações solidárias e fraternas entre os indivíduos com reflexos diretos no aperfeiçoamento das interações sociais.
O otimismo de Kardec não se realizou no tempo predito. Isso não significa que o desenvolvimento das ideias espíritas não continue em marcha. Apenas a noção cronológica terrena não foi expressa adequadamente.
Por sinal, quando Kardec desencarnou, em 1869, o Espiritismo encontrava-se no período de luta e, ainda hoje, pode-se situá-lo nesse mesmo período [1]. A transição para o período subsequente depende, portanto, da superação de elementos contrários à propagação das ideias espíritas em sua essência e integralidade.
O quarto período exige uma compreensão contextual de como o próprio Kardec caracterizava o Espiritismo e o confrontava com os conceitos adotados de religião.
Por premissa pessoal, Kardec zelava pela objetividade e clareza, pautando-se pelo pensamento lógico. Nesse sentido, qualquer predição sobre a marcha do Espiritismo espelharia o que ele e os Espíritos indicavam como consequência natural do avanço das ideias doutrinárias sem qualquer manifestação de inconsistência lógica. Assim, ao denominar o quarto período de religioso, obviamente ele não se referiu ao conceito tradicional de religião, ao qual ele terminantemente negava haver semelhança com o Espiritismo.
Conforme explicitado em seu discurso proferido na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, no dia 1º de novembro de 1868 e publicado na edição de dezembro de 1868 da Revista Espírita, o Espiritismo pode ser entendido como religião exclusivamente no sentido filosófico, fortalecendo os elos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, tendo como base as leis da natureza.
Nesse mesmo discurso, Kardec rejeitava a classificação de religião ao Espiritismo sob a ótica tipicamente aceita e vinculada às práticas de culto e todas as outras já manifestas nas chamadas religiões constituídas.
Logo, não se deve associar a denominação usada por Kardec ao período religioso sob a ótica tradicional, mas sob a perspectiva filosófica de laço que une seus adeptos em torno de um mesmo ideal doutrinário e da promoção da caridade como prática comum.
Atualmente, o conceito popular de religião permanece atrelado a culto e práticas exteriores, o que distorce a compreensão do quarto período previsto por Kardec, se assim considerado.
Para reflexão: uma contradição lógica é uma situação em que duas afirmações ou proposições se opõem de tal forma que ambas não podem ser verdadeiras simultaneamente no mesmo contexto. Em termos lógicos, a relação entre duas declarações que são mutuamente exclusivas não podem coexistir devido à sua incompatibilidade direta. Sendo o Espiritismo uma religião no sentido filosófico, e não no sentido tradicional, comete uma contradição lógica quem supõe que o período religioso proposto por Kardec vincule-se ao conceito tradicional de religião.
Em síntese, o período religioso será assim reconhecido quando for marcado pelos laços de afeição entre os seus adeptos, pela fé raciocinada que fortalece sua unidade doutrinária e pela prática da caridade em sua essência [2].
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[1] Ver o artigo “O período de luta do Espiritismo”, de minha autoria, publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 197, set/out 2023, p. 18-19. Link: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2023/10/reDE-197.pdf
[2] Ver questão 886 de O livro dos espíritos.
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