sexta-feira, 19 de abril de 2024

Desistiu sem saber...

 

Desistiu sem saber...

 

Marco Milani

 

Recentemente, foi disponibilizado um vídeo no Youtube intitulado “Por que desisti do espiritismo?”[1], em que uma pessoa trajada com um tipo de veste religiosa na cor branca discorre sobre sua trajetória de vida, informando que ingressou na Ordem Rosacruz ao 16 anos de idade e, simultaneamente, passou a frequentar um centro espírita. O depoente afirma que, com o passar do tempo, o Espiritismo deixou de atender às suas expectativas e, segurando um exemplar de O livro dos espíritos para aparentar conhecimento sobre o assunto, elenca os três motivos que o fizeram se afastar da doutrina espírita.

               O 1º motivo é que, segundo ele, haveria uma aceitação destemperada das dificuldades e das dores como consequências de erros do passado, levando a uma acomodação dos indivíduos. Seria uma aceitação passiva da dor e do sofrimento, diferentemente da postura de resistência e transformação que ele afirmou existir em algumas escolas “iniciáticas” e gnósticas.

               Certamente o autor do vídeo não compreendeu a proposta libertadora do Espiritismo com relação ao protagonismo do ser perante seu próprio futuro em um ambiente regido pelas leis de Justiça, Amor e Caridade e que valoriza-se o esforço do próprio aprimoramento moral e intelectual. Em momento algum o Espiritismo propõe o comodismo e o apassivamento do indivíduo, ao contrário. O ensino dos Espíritos nos permite compreender a Justiça divina no processo reencarnatório em que cada um depara-se com as consequências de suas próprias ações e é incentivado pelas leis naturais a progredir. Não existem milagres ou fórmulas místicas e mágicas que definam o futuro de alguém, a não ser ele mesmo interagindo com leis perfeitas e imutáveis. Sem esforço, não se progride. Não se revoltar perante as mazelas da vida, sabendo que tudo tem uma causa justa, não significa aceitação passiva, mas conhecimento que afasta o inconformismo raivoso contra Deus e sua Justiça. Se o autor do vídeo tivesse lido com mais atenção o Capítulo V da obra O evangelho segundo o espiritismo, por exemplo, dentre inúmeras outras passagens doutrinárias que explicitam a responsabilidade de nossas ações e suas consequências, talvez tivesse uma outra abordagem sobre o assunto.

               O 2º motivo alegado é que o Espiritismo teria uma visão eurocêntrica e cristã, desmerecendo ou ignorando que todos os povos do mundo possuem seus próprios caminhos e mestres, não sendo nenhum deles melhor que os demais. Para o autor, o Espiritismo se colocaria numa posição de primazia perante outras filosofias e essa seria uma atitude arrogante.

               Novamente, o autor do vídeo parece não ter compreendido a proposta universal do ensino dos Espíritos, uma vez que as leis divinas são as mesmas em qualquer lugar. Por uma questão lógica de coerência, não se pode importar conceitos com significados próprios de doutrinas variadas, ocidentais ou orientais, e aplicá-los com outras conotações, ainda que a essência possa se assemelhar em alguns aspectos, mas diferencia-se em outros. Em momento algum o Espiritismo desvaloriza as diferentes filosofias e culturas não cristãs existentes na humanidade, pois todas refletem determinado grau de compreensão local e temporal da realidade em que vivemos, mas não é por isso que renegará o avanço do conhecimento gerado por uma nova abordagem metodológica decorrente de comunicações mediúnicas obtidas não somente na França, mas em diferentes países com os quais Kardec se correspondia, inclusive em outros continentes. Igualmente, destacará as instruções e o exemplo de Jesus, apontado pelos Espíritos como o tipo de perfeição moral que o homem pode aspirar na Terra.

               O 3º motivo apontado pelo autor do vídeo seria um menosprezo do Espiritismo às tradições esotéricas e gnósticas.

               Considerando que o autor do vídeo demonstrou compartilhar crenças respeitáveis, porém místicas, como na Ordem Rosacruz, não é de se estranhar que exista um incômodo quanto às incompatibilidades de posturas. No Espiritismo, por exemplo, não se tem qualquer nível iniciático ou abraça-se hábitos de como se vestir, ou adota-se amuletos e talismãs, muito menos reserva-se segredos e informações restritas apenas a alguns. Apontar-se a ineficácia de tais práticas não significa desrespeitar quem as aprecia.

               Entretanto, um motivo que o autor não explicitou, mas transparece em seu desconforto com a não aceitação do misticismo pelo Espiritismo, é o fato de que ele elabora e comercializa “mapas numerológicos pessoais”, como anunciado no próprio vídeo que fez. Por acreditar que exista um significado oculto nos números que influenciam o comportamento e o destino dos homens, além de vender produtos a isso relacionados, não surpreende que tenha se afastado de uma doutrina que desmistifica essas práticas e não estimula o ganho financeiro com elas.

 



[1] Vídeo disponível em: https://youtu.be/OyQhwCq6L1o?si=XLTVsy3oIxbxj-X1

Um comentário:

  1. Como se costuma dizer: "os pingos nos ís" fundamentados nos preceitos espíritas. No geral quando nos sentimos incomodados com certos conceitos que ferem frontalmente nosso modo de pensar, viver e articular interesses pessoais, vamos para a crítica e o ataque, buscando conforto ao nosso desconforto, saídas estratégicas para justificar os termos. Vai levando a semente da clareza e lógica espírita, doutrina que não é proselitista e muito menos castradora de liberdade. O Espiritismo é um processo libertador de consciência, que atinge a meta, na medida da vontade, capacidade e motivação de quem se deleita em suas propostas. As justificativas apresentadas pelo autor do artigo, fecham a questão.

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