quarta-feira, 1 de maio de 2024

Progresso espírita e manipulação semântica

 

Progresso espírita e manipulação semântica

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 32, maio de 2024, p. 7-8

 

Allan Kardec, ao apontar como condição indispensável que todas as partes do conjunto da doutrina estivessem determinadas com precisão e clareza para assegurar a sua unidade no futuro, já reafirmava a relevância do significado das palavras.[1] Sem ambiguidades, o Espiritismo não deveria gerar interpretações variadas de seus ensinos e conceitos quando estudados de maneira sincera, responsável e intelectualmente madura.

Tal característica didática também seria uma medida adequada para se enfrentar um problema contextual. Kardec conhecia as motivações menos nobres daqueles que, por vaidade ou outros interesses, tentariam inovar e reescrever o Espiritismo objetivando satisfazer desejos e ambições pessoais, culminando por fomentar dissidências e cismas.

Outro aspecto relevante à consolidação do Espiritismo é o seu caráter progressivo, compreendido por Kardec como aquele aberto ao aperfeiçoamento das ideias que se mostrarem verdadeiras perante fatos e comprovações diretas, porém refutando propostas utópicas, fantasiosas e opinativas que carecerem de validação objetiva.

O dinamismo, portanto, está previsto na ortodoxia espírita, rejeitando-se o imobilismo, mas respeitando-se a prudência necessária para se aceitar algo novo e modificar ou abandonar o antigo.

Assim como na época de Kardec, atualmente identificam-se adeptos ávidos a reformular o Espiritismo sob interesses diversos, não somente para visibilidade pessoal, mas para o favorecimento de concepções que variam do misticismo supersticioso e fantástico à militância político-ideológica. Em geral, alegam que novas informações surgiram e não se pode ficar preso no tempo, mas nenhum deles segue a prudência metodológica para se validar objetivamente as “novidades” a serem aceitas universalmente, servindo-se fartamente de falaciosos argumentos de autoridade.

A heterodoxia, propensa a uma alteração afoita dos princípios doutrinários mediante a adoção de novidades, atribui a certos médiuns, Espíritos, palestrantes, escritores, representantes de correntes sociológicas, dentre outros, uma pretensa autoridade moral ou intelectual suficiente para negar a contemporaneidade dos ensinos contido nas obras fundamentais do Espiritismo. Sinteticamente, consideram que o conhecimento doutrinário que foi validado pelo critério da universalidade do ensino dos Espíritos está, de forma parcial ou integral, obsoleto ou inválido.

Especificamente no grupo de atualizadores com fins políticos, muitos consideram que seus modelos utópicos de sociedade representam um novo estágio moral para a humanidade e, desrespeitando a convivência democrática e a liberdade de consciência, usam a narrativa totalitária de que qualquer um que divergir de suas propostas reformistas são seres moralmente inferiores e contrários ao progresso que não mereceriam viver em sociedade. Ao transportarem sua beligerância à seara espírita, afirmam que o mundo de regeneração será implantado na Terra quando suas propostas políticas forem concretizadas e, ainda, que o caráter progressivo do próprio Espiritismo levará, naturalmente, à defesa de seus modelos utópicos. Quem for politicamente contrário, não poderá, segundo eles, ser considerado espírita pois não teria a moralidade esperada do verdadeiro adepto.

Certamente, o caráter progressivo do Espiritismo refere-se ao desenvolvimento do conhecimento doutrinário relacionado à compreensão da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal, mas não se coaduna com transitórias, enviesadas e limitadas disputas político-partidárias.

O maniqueísmo presente nas disputas de narrativas políticas reduz os adversários e contraditores a um único grupo estereotipado e estigmatizado para melhor ser combatido, assim como tenta capturar o monopólio das virtudes por declarar-se integrante do grupo “correto ou moralmente avançado”.

A manipulação semântica da palavra e do conceito de progresso e de suas derivações (progressivo, progressista etc.) para uso político, por exemplo, é fruto de má-fé intelectual com a clara intenção de ressignificar o termo, afastando-se da concepção espírita que não se atrela a qualquer tendência político-partidária. O Espiritismo está acima de qualquer legenda ou ideologia política, seja de que época ou local for.

O espírita, como cidadão, tem a liberdade de escolher o caminho político que achar mais conveniente, seja qual for essa opção, e ninguém tem autoridade e legitimidade para tentar colocar cabresto no adepto para direcionar qual regime ou sistema de governo ele deve defender.

Durante as reuniões das Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas lideradas por Kardec sentavam-se, lado a lado, indivíduos com diferentes opções políticas e sociais. Liberais, socialistas, monarquistas, republicanos e outras denominações da época estavam unidos pelo laço de fraternidade esperado aos espíritas sinceros, independentemente das divergências de suas escolhas pessoais.

O Espiritismo não se confunde com aqueles que se declaram espíritas, os quais possuem, por sua vez, diferentes graus de maturidade doutrinária e variadas preferências e ocupações na sociedade.

A manipulação semântica de termos e conceitos doutrinários promove incompreensão, ilusões, animosidades, além de fornecer armas aos detratores e incentivar cismas.

A clareza e a objetividade dos conceitos espíritas devem servir para unir os adeptos e contribuir para a transformação moral de cada um pelo conhecimento da realidade espiritual, refletindo na construção de uma sociedade melhor.[2]

 



[1] Ver Revista espírita, dez/1868, Constituição transitória do Espiritismo - Dos cismas.

[2] Ver Obras póstumas – 1ª parte – Liberdade, igualdade e fraternidade.

2 comentários:

  1. Como sempre Milani, afiado, autentico e cirúrgico em seus comentários e defesa dos princípios fundamentais do pensamento espírita. Com suas reflexões conseguimos visualizar a excelência do trabalho de Kardec, suas preocupações e posturas diante de desafios que insistem em deturpar com falácias e mas intenções a obra e o movimento espírita. Abc

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