Progresso espírita e manipulação semântica
Marco Milani
Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 32, maio
de 2024, p. 7-8
Allan Kardec, ao apontar como condição indispensável
que todas as partes do conjunto da doutrina estivessem determinadas com
precisão e clareza para assegurar a sua unidade no futuro, já reafirmava a
relevância do significado das palavras.[1]
Sem ambiguidades, o Espiritismo não deveria gerar interpretações variadas de
seus ensinos e conceitos quando estudados de maneira sincera, responsável e
intelectualmente madura.
Tal característica didática também seria uma medida adequada
para se enfrentar um problema contextual. Kardec conhecia as motivações menos
nobres daqueles que, por vaidade ou outros interesses, tentariam inovar e
reescrever o Espiritismo objetivando satisfazer desejos e ambições pessoais,
culminando por fomentar dissidências e cismas.
Outro aspecto relevante à consolidação do
Espiritismo é o seu caráter progressivo, compreendido por Kardec como aquele
aberto ao aperfeiçoamento das ideias que se mostrarem verdadeiras perante fatos
e comprovações diretas, porém refutando propostas utópicas, fantasiosas e
opinativas que carecerem de validação objetiva.
O dinamismo, portanto, está previsto na ortodoxia
espírita, rejeitando-se o imobilismo, mas respeitando-se a prudência necessária
para se aceitar algo novo e modificar ou abandonar o antigo.
Assim como na época de Kardec, atualmente
identificam-se adeptos ávidos a reformular o Espiritismo sob interesses diversos,
não somente para visibilidade pessoal, mas para o favorecimento de concepções
que variam do misticismo supersticioso e fantástico à militância
político-ideológica. Em geral, alegam que novas informações surgiram e não se
pode ficar preso no tempo, mas nenhum deles segue a prudência metodológica para
se validar objetivamente as “novidades” a serem aceitas universalmente,
servindo-se fartamente de falaciosos argumentos de autoridade.
A heterodoxia, propensa a uma alteração afoita dos
princípios doutrinários mediante a adoção de novidades, atribui a certos
médiuns, Espíritos, palestrantes, escritores, representantes de correntes
sociológicas, dentre outros, uma pretensa autoridade moral ou intelectual suficiente
para negar a contemporaneidade dos ensinos contido nas obras fundamentais do
Espiritismo. Sinteticamente, consideram que o conhecimento doutrinário que foi
validado pelo critério da universalidade do ensino dos Espíritos está, de forma
parcial ou integral, obsoleto ou inválido.
Especificamente no grupo de atualizadores com fins
políticos, muitos consideram que seus modelos utópicos de sociedade representam
um novo estágio moral para a humanidade e, desrespeitando a convivência
democrática e a liberdade de consciência, usam a narrativa totalitária de que
qualquer um que divergir de suas propostas reformistas são seres moralmente inferiores
e contrários ao progresso que não mereceriam viver em sociedade. Ao
transportarem sua beligerância à seara espírita, afirmam que o mundo de
regeneração será implantado na Terra quando suas propostas políticas forem
concretizadas e, ainda, que o caráter progressivo do próprio Espiritismo
levará, naturalmente, à defesa de seus modelos utópicos. Quem for politicamente
contrário, não poderá, segundo eles, ser considerado espírita pois não teria a
moralidade esperada do verdadeiro adepto.
Certamente, o caráter progressivo do Espiritismo
refere-se ao desenvolvimento do conhecimento doutrinário relacionado à
compreensão da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas
relações com o mundo corporal, mas não se coaduna com transitórias, enviesadas e
limitadas disputas político-partidárias.
O maniqueísmo presente nas disputas de narrativas
políticas reduz os adversários e contraditores a um único grupo estereotipado e
estigmatizado para melhor ser combatido, assim como tenta capturar o monopólio
das virtudes por declarar-se integrante do grupo “correto ou moralmente
avançado”.
A manipulação semântica da palavra e do conceito de
progresso e de suas derivações (progressivo, progressista etc.) para uso
político, por exemplo, é fruto de má-fé intelectual com a clara intenção de
ressignificar o termo, afastando-se da concepção espírita que não se atrela a
qualquer tendência político-partidária. O Espiritismo está acima de qualquer
legenda ou ideologia política, seja de que época ou local for.
O espírita, como cidadão, tem a liberdade de
escolher o caminho político que achar mais conveniente, seja qual for essa
opção, e ninguém tem autoridade e legitimidade para tentar colocar cabresto no
adepto para direcionar qual regime ou sistema de governo ele deve defender.
Durante as reuniões das Sociedade Parisiense de
Estudos Espíritas lideradas por Kardec sentavam-se, lado a lado, indivíduos com
diferentes opções políticas e sociais. Liberais, socialistas, monarquistas,
republicanos e outras denominações da época estavam unidos pelo laço de
fraternidade esperado aos espíritas sinceros, independentemente das
divergências de suas escolhas pessoais.
O Espiritismo não se confunde com aqueles que se declaram espíritas, os quais possuem, por sua vez, diferentes graus de maturidade doutrinária e variadas preferências e ocupações na sociedade.
A
manipulação semântica de termos e conceitos doutrinários promove incompreensão, ilusões, animosidades, além de fornecer armas aos
detratores e incentivar cismas.
A clareza e a objetividade dos conceitos espíritas
devem servir para unir os adeptos e contribuir para a transformação moral de
cada um pelo conhecimento da realidade espiritual, refletindo na construção de
uma sociedade melhor.[2]
Como sempre Milani, afiado, autentico e cirúrgico em seus comentários e defesa dos princípios fundamentais do pensamento espírita. Com suas reflexões conseguimos visualizar a excelência do trabalho de Kardec, suas preocupações e posturas diante de desafios que insistem em deturpar com falácias e mas intenções a obra e o movimento espírita. Abc
ResponderExcluirGrato, Sergio! Abs.
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